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1. No tempo do Advento a liturgia oferece-nos um companheiro de caminho. É o profeta Isaías. Poderia perguntar-se quem é este profeta que iluminou os caminhos do Povo de Deus no meio das suas dificuldades. Os estudiosos da Sagrada Escritura sabem que o Livro do Profeta Isaías tem três partes de autores diferentes. A primeira parte, escrita por volta de 750 a.C., faz a história do povo de Israel com a promessa de um Messias que iria libertar Jerusalém das grandes dificuldades que suportava. O Deutero-Isaías, escrito por volta de 587 a.C., segunda parte, descreve o Servo de Javé, o Messias Redentor, que ao entrar na história do Povo de Deus irá sofrer por ele, para dar-lhe a salvação. É o tempo do cativeiro da Babilónia. A última parte, escrita por volta de 520 a.C., terceiro Isaías, canta o regresso do Povo de Israel a Jerusalém, depois de todas as angústias vividas no cativeiro. A liturgia deste tempo de Advento oferece textos retirados de partes diversas do Livro de Isaías, mas a proposta é sempre a da esperança na salvação.
A promessa do Messias, razão de toda a esperança, é oferecida num texto carregado de beleza (v. Is 11, 1-10).
• “Sairá um ramo do tronco de Jessé e um rebento brotará das suas raízes”. É o primeiro grande anúncio do Salvador. O tronco de Jessé é David e o Messias prometido será da sua descendência. O senhor virá.
• “Sobre ele repousará o Espírito do Senhor, espírito de sabedoria, de inteligência, de conselho, de fortaleza, de conhecimento, de temor de Deus. A justiça será a faixa dos seus rins e a lealdade a cintura dos seus flancos”. Na força do Espírito todas as coisas se podem transformar e um mundo novo vai surgir.
• “O lobo viverá com o cordeiro, a pantera dormirá com o cabrito, o leão comerá feno com o boi, e o menino meterá a mão na toca da víbora”. Esta é uma descrição maravilhosa do tempo novo a surgir com a chegada do Messias, com a certeza de que ninguém vai praticar o mal, porque o Senhor estará sempre presente em tudo e em todos.
No mundo de hoje ninguém se deixa conduzir pelo Espírito, não se acolhe Jesus, o Messias de sempre. Daí resultam os egoísmos, que geram conflitos, os interesses que provocam violência, os orgulhos acumulados que destroem a paz: é urgente abrir o coração ao rebento de Jessé, a Jesus que vem para transformar a Terra.
2. O Povo de Israel atravessava tempos de dificuldade. O rei Acaz não acreditava ser possível a transformação do seu reino. Não tinha, porém, coragem de pedir a Deus um sinal de esperança. Isaías foi ao seu encontro com anúncio claro da vinda do Salvador: “Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho e o seu nome será Emanuel”. Os historiadores referem que esta virgem, uma donzela, seria a mulher de Acaz e que veio a ter um filho, razão de esperança para o rei. Este acontecimento, porém, adquiriu dimensão profética, porque a salvação deveria ser muito mais profunda, quando Deus enviasse ao mundo o seu próprio filho. (v. Is 7, 10-14).
• Uma virgem conceberá – é o anúncio de Maria, a mãe do Filho de Deus. Ela soube dizer sim ao projecto da redenção. Perante a proposta do Anjo Gabriel, soube discernir e acabou por dizer com toda a verdade: “eis a escrava do Senhor”, isto é, servirei o Senhor como Ele quiser. É um sim sem condições.
• E dará à luz um filho – é a certeza do nascimento de um Menino a quem será dado o nome de “Jesus”, isto é, aquele que vem salvar. A história de Jesus será depois a história da redenção da humanidade.
• O seu nome será Emanuel – é a afirmação clara de que a redenção e a salvação são dons de Deus, já que Emanuel quer dizer Deus connosco. O mistério do nascimento do Salvador, a que vulgarmente se chama Natal, outra coisa não é que um extraordinário gesto de amor de um Deus que ama tanto o mundo que lhe dá o seu Filho Unigénito (cf. Jo 3, 16).
Os cristãos de hoje assumem a sua responsabilidade perante os problemas do mundo. Se no tempo da promessa, Isaías anunciou um Emanuel, se no tempo da realização da promessa veio Jesus como Salvador, no tempo actual o cristão, intervindo na história, torna-se nova encarnação do Deus que salva, presença viva de Jesus que transforma o mundo. É missão dos cristãos tratarem da ordem temporal, para que esta glorifique o Criador e Redentor.
3. Todo o projecto exige uma execução em tempo. De que vale ter ideias maravilhosas se não se converterem na prática. A própria fé sem obras é morta. Neste tempo de Advento, Isaías continua a ensinar que há coisas concretas para fazer. O terceiro livro de Isaías começa mesmo por evocar a Deus, dizendo: “o Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu e me enviou” (Is 61, 1). Esta palavra do profeta supõe uma intervenção clara na cidade dos homens. O Emanuel que vem, não quer que o ser humano se relacione apenas com Deus, quer que olhe o outro e o sirva com generosidade. (v. Is 61, 1-11). De facto, o Messias é enviado:
• Para dar a boa nova aos pobres, e boas notícias não são apenas as palavras de conforto, exige-se o conhecimento das dificuldades, a partilha de bens e uma presença continuada que se torna sacramento de salvação.
• Para curar os corações atribulados, o que supõe tempo para conversar, silêncio para reflectir, sorriso para dar esperança, apoio concreto naquilo que se revelou dificuldade maior.
• Para dar a liberdade aos prisioneiros e a redenção aos cativos, pois nada pior do que a perda da decisão nos momentos mais importantes da vida, uma vez que a liberdade é condição fundamental para a dignidade humana.
• Para promulgar o ano da graça do Senhor, uma vez que do Senhor só pode vir a capacidade de perdão, de reconciliação, de paz.
Jesus na sinagoga de Nazaré irá fazer seu este texto de Isaías, chamando os cristãos a serem eles no tempo presente anunciadores da Boa Nova, solidários com os pobres e oprimidos, capazes de acompanharem todos os que sofrem, instaurando um tempo novo, um tempo de reconciliação e de paz (cf Lc 4, 19 ss). Neste Advento os cristãos têm o dever de concretizar no seu espaço de vida, a família, o trabalho, o grupo social, esta exigência de acção que nos vem do profeta Isaías e que Jesus nos convida a viver.
4. Na comunidade paroquial do Campo Grande deixar-se conduzir por Isaías no tempo do Advento será deixar entrar Jesus Menino na vida de cada um e ser capaz de O fazer crescer nas actividades em que se está envolvido. Não se prepara o Natal sem provocar a vinda do Senhor, não Jesus de há 2000 anos, mas o Jesus de hoje que é o Jesus de sempre. Descubra cada um de nós, membros da comunidade paroquial, como vai provocar o nascimento do Menino Jesus.
Pe. Vitor Feytor Pinto - Prior
Advento, tempo de espera. Não apenas de um dia, mas daquilo que os dias, todos os dias, de forma silenciosa, transportam: a Vida, o mistério apaixonante da Vida que em Jesus de Nazareth principiou.
Advento, tempo de redescobrir a novidade escondida em palavras tão frágeis como "nascimento", "criança", "rebento".
Advento, tempo de escutar a esperança dos profetas de todos os tempos. Isaías e Bento XVI. Miqueias e Teresa de Calcutá.
Advento, tempo de preparar, mais do que consumir. Tempo de repartir a vida, mais do que distribuir embrulhos.
Advento, tempo de procura, de inconformismo, até de imaginação para que o amor, o bem, a beleza possam ser realidades e não apenas desejos para escrever num cartão.
Advento, tempo de dar tempo a coisas, talvez, esquecidas: acender uma vela; sorrir a um anjo; dizer o quanto precisamos dos outros, sem vergonha de parecermos piegas.
Advento, tempo de se perguntar: "há quantos anos, há quantos longos meses desisti de renascer?"
Advento, tempo de rezarmos à maneira de um regato que, em vez de correr, escorre limpidamente.
Advento, tempo de abrir janelas na noite do sofrimento, da solidão, das dificuldades e sentir-se prometido às estrelas, não ao escuro.
Advento, tempo para contemplar o infinito na história, o inesperado no rotineiro, o divino no humano, porque o rosto de um Homem nos devolveu o rosto de Deus.
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Frei Bento Domingues, O. P.
Tornou-se convencional dizer que o Advento convida à vigilância e à meditação, para entrar no misterioso sentido do tempo. Não apenas o que é medido pelo relógio e desfolhado nos calendários, no fluxo cósmico das estações, no ritmo biológico que vai dizendo o nosso desgaste inexorável. No entanto, como diz S. Paulo, não nos deixemos abater. Pelo contrário, embora o nosso aspecto exterior vá caminhando para a sua ruína, a nossa vida interior renova-se dia a dia (…) pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno (2 Co 4, 16-18).
A pergunta mais importante desta quadra litúrgica não é sobre as nossas experiências de outono da vida, mais chuvoso ou mais ameno. Poderia talvez ser formulada assim: qual é a graça regeneradora, para não aceitarmos - usando as palavras do Papa Francisco – que milhões de seres humanos, nossos irmãos, vegetem e morram com o estatuto de sobrantes e descartáveis?
Este livro, de José Manuel Bernal, não tem nada a ver com a abundante literatura de lugares comuns do ritualismo e do espiritualismo moralista ou das folhinhas e receitas do agrado da ignorância homilética. Pretende contribuir para que os pastores consigam organizar celebrações de qualidade onde seja possível uma profunda experiência do mistério transformante. Espero regressar a esta obra, sobretudo ao capítulo fundamental sobre os rituais sagrados da “regeneração do tempo”.
Falar do Advento é pensar no Natal. A. Cunha de Oliveira[2], sacerdote católico, dispensado do ministério, casado e notável exegeta da Bíblia, publicou uma obra minuciosa, erudita, volumosa, fundamentada e extremamente clara, cuja leitura é indispensável para quantos se interessam pela verdade, pelas lendas e mitos em torno do Natal. Não conheço nada de comparável, em português.
O Natal significa que no cristianismo a salvação não se atinge pela fuga ou desprezo do mundo, embora seja essa uma das tentações que, periodicamente, o assaltam.
Foi inscrito, pela pena de S. Lucas, no devir da história universal, colocando a figura mítica de Adão como o primeiro antepassado de Jesus Cristo. No impressionante hino cósmico da Carta aos Colossenses, surge como princípio e sentido de todas as realidades, visíveis e invisíveis. No conhecido poema que abre o Evangelho de S. João, o Verbo eterno fez-secarne, fragilidade humana. Numa dramática poesia de S. Paulo (Fl 2, 6-11), Cristo é reconhecido como divino na suprema humilhação da cruz.
Como escreveu E. Schillebeeckx, O.P.[3], a história dos seres humanos é a narrativa de Deus. Fora do mundo não há salvação, neutralizando o nefasto e abusado aforismo: “fora da Igreja não há salvação”.
Recordo-me, como se fosse hoje, do espanto de muitos quando ele surgiu, no congresso internacional de teólogos dominicanos, em Valência (1966), a defender a obrigatória inclusão do mundo na lista dos clássicos “lugares teológicos”.
Quem melhor escreveu acerca desta virtude do Advento foi o poeta- teólogo, Charles Péguy[4]: O que me espanta, diz Deus, é a esperança./ E disso não me canso./ Essa pequena esperança que parece não ser nada./ (…) Que veio ao mundo no dia de Natal do ano passado./ (…) Ama o que será./ No tempo e na eternidade.
A esperança merece todos os elogios. Sem ela é impossível viver. Mas melhor do que esperar é ter a certeza de que somos desejados e esperados. Afinal é este o evangelho dentro do Evangelho, a célebre parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-31). Deus tem eternas saudades de nós.
Público, 30.11.2014
[1] José Manuel Bernal, O Ano Litúrgico, Gráfica de Coimbra, 2001
[2] Natal: Verdade, Lenda, Mito, Instituto Açoriano de Cultura, 2012
[3] L´histoire des hommes, récit de Dieu, Cerf, 1992
[4] Os portais do mistério da segunda virtude, Paulinas, 2013