Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
A. Um combate sem fim
De facto, o que neste mundo parece triunfar é a severidade e não a compaixão, a intolerância e não a clemência, o juízo e a não a misericórdia. Para nosso mal, não parece haver grande futuro para o bem.
É que, para Deus, a misericórdia triunfa sempre e triunfa sobre tudo. Até sobre o juízo a misericórdia triunfa (cf. Tgo 2, 13). Para Deus, a misericórdia é mais forte que o juízo. Para Deus, a misericórdia é o critério para tudo, inclusivamente para o juízo. O próprio juízo de Deus é alimentado pela misericórdia. O próprio juízo de Deus é cheio de misericórdia.
B. Quem nunca falha?
3. O episódio que o Evangelho deste Domingo nos apresenta é um confronto entre a mera justiça e a misericórdia. Trata-se de um combate entre uma justiça sem misericórdia e uma justiça habitada pela misericórdia.
É preciso ter presente que Jesus não é contra a Lei, nem Se apresenta como um sem-Lei. Só que Jesus vê mais fundo e chega mais longe. Para Jesus, a Lei, sendo importante, não é um absoluto. E, afinal, quem pode garantir que cumpre sempre a Lei? Quem pode garantir que cumpre integralmente todas as leis?
Assim sendo, que cada um comece por limpar os seus olhos (cf. Mt 7, 5) e só depois estará em condições para ver o eventual cisco que está sobre os olhos dos outros. Nesse caso, até poderá acontecer que chegue à conclusão de que o cisco que parecia estar sobre os olhos dos outros estava, sim, sobre os seus próprios olhos.
C. O fogo começa a arder em quem o ateia
5. Muitas vezes, não é a vida dos outros que não está limpa. Muitas vezes, são os nossos olhos que estão sujos. Um dedo pronto para acusar esconde, quase sempre, uma vida que deixa muito a desejar. Habitualmente, uma vida suja procura sujar a vida dos outros. O sujo não descansa enquanto não suja. Frequentemente, o que se pretende não é acabar com o mal, é acabar com os outros de quem se suspeita mal.
É por isso que batemos nos outros com a verdade e, ainda mais, com a própria mentira. Há quem, além de não ter misericórdia, também não tenha escrúpulos. A delação dá, quase sempre, cobertura à corrupção.
Há quem diga que «onde há fumo, há fogo». É preciso, contudo, ver de onde vem o fogo. O fogo começa a arder em quem o ateia. Antes de arder na terra, o fogo começa a arder em quem incendeia a terra. Às vezes, o fogo não está na vida dos acusados, mas na vida de quem acusa. O mecanismo da projecção leva a que alguns atribuam a outros aquilo que só eles são capazes de fazer. Muito cuidado, pois, com o que se diz: com que se diz em privado e com o que diz em público.
D. Todos eram pecadores, mas só uma pecadora se mostrou arrependida
7. A honra de uma pessoa é sagrada, pelo que a difamação e a calúnia são atentados muito graves. Falemos com as pessoas e evitemos falar das pessoas. Quando houver motivo, falemos às pessoas das suas falhas e não falemos das falhas das pessoas.
Se repararmos, não foi apenas esta mulher que era adúltera (cf. Jo 8, 3). Os que a acusavam não eram menos adúlteros. Esta mulher adulterou os seus deveres de esposa, mas os seus acusadores adulteraram o sentido da justiça. No fundo, o que eles pretendiam era usar a Lei — e a mulher que infringiu a Lei — para enrascar Jesus, para montar uma cilada a Jesus. No seu entendimento, Jesus iria sair-Se sempre mal deste debate. Se não reconhecesse o mal praticado pela mulher, diriam que Jesus não respeitava a Lei. Se mandasse liminarmente cumprir a Lei, alegariam que, afinal, Jesus não era tão misericordioso como parecia.
A denúncia pode ser importante, mas a delação é sempre injustificada. A delação nunca conduz à conversão. A delação só conduz à desconfiança, à perversão. Neste episódio, não havia ninguém que não tivesse pecado. Quando Jesus convidou os que não tinham pecado a atirar a primeira pedra, todos se retiraram (cf. Jo 8, 7-9). Afinal, todos eram pecadores. Era bom, por isso, que aqueles que apontam os pecados dos outros se retirassem também. E se convertessem. Foi o que faltou a estes homens: converter-se
E. Deus está à nossa espera, como a Primavera
9. Depois de Jesus acabar de escrever — diga-se que é a única vez em que Jesus escreveu alguma coisa — (cf. Jo 8, 8), notou que só a mulher estava à sua frente. Afinal, só ela estava disponível para receber a misericórdia. Já os que a acusaram — e que, no fundo, também reconheceram ser pecadores — recusaram-se a receber a misericórdia que Jesus também tinha para lhes oferecer. Hoje em dia, continua a haver muita gente a dizer que não peca. Pudera. Como passam a vida a reparar nas falhas dos outros, nem tempo têm para reparar nas suas próprias fraquezas. Só que, deste modo, perdem sucessivas oportunidades de mudar, de melhorar.
Por conseguinte, sejamos indulgentes para com os outros e exigentes para connosco. E não nos esqueçamos de começar por nós a mudança que gostaríamos de ver à volta de nós. A melhor maneira de contribuir para a mudança dos outros é mudando-nos a nós mesmos.
Não esqueçamos jamais que o primeiro cristão a entrar no céu foi um ladrão (cf. Lc 23, 43). Ninguém está excluído da proposta. Ninguém se deve sentir demitido de uma resposta. A salvação não é para quem nunca falha, até porque todos nós falhamos. A salvação é para quem está disposto a sempre recomeçar mesmo depois de muito falhar. Deus está à nossa espera, como o está a Primavera. A Sua misericórdia está sempre a vir para que na nossa vida possa florir!
Do blogue THEOSFERA