1. Durante séculos, no início da Quaresma, em Quarta-Feira de Cinzas, o rito da imposição das cinzas tinha esta fórmula: “Lembra-te ó homem que és pó e que em pó te hás-de tornar”. Era o convite a que cada cristão pensasse na morte e através desse tempo de reflexão ensaiasse fórmulas de mudança de vida. Com o Concílio Vaticano II, a renovação litúrgica propôs uma fórmula diferente, não centrada no pensamento da morte mas no desafio missionário que é a marca dos cristãos. A fórmula da imposição das cinzas é agora assim: “Arrependei-vos e acreditai no Evangelho”. De facto, não basta pensar nos erros cometidos e na urgência de uma conversão: é fundamental viver os valores do Evangelho e depois anunciá-lo em toda a parte pelo testemunho de vida e pela acção missionária. Não pode esquecer-se “que o sonho missionário é para todos”. O Papa Francisco, na sua mensagem para a Quaresma de 2015, refere quatro atitudes no caminho que percorremos para a Páscoa:
O arrependimento pessoal e comunitário vencendo todas as formas de egoísmo constitui o primeiro passo para vencer a globalização da indiferença. É o mesmo Papa que diz que “a caridade fraterna é uma ilha de esperança no oceano da indiferença generalizada”.
A consciência de que quando alguém sofre os cristãos sofrem com ele. Esta certeza nasce do facto de sermos Igreja, corpo místico de Cristo, em que todos somos membros uns dos outros, e que com os outros estamos nas alegrias e nos sofrimentos. É esta a essência da Igreja de Jesus.
A preocupação pelos outros leva a perguntar onde está o meu irmão? Esta é responsabilidade das comunidades cristãs, não ficarem à espera daqueles que sofrem, mas ir em busca deles para os ajudar no concreto das suas vidas.
Para tudo isto é fundamental a fortaleza do coração. Só com um coração novo, atento aos outros, se pode exercer a caridade verdadeira, aquela em que os problemas dos outros são assumidos com generosidade. Com razão o profeta Ezequiel dizia “Senhor, tira do meu peito o coração de pedra, põe nele um coração de carne, capaz de amar”.
A mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2015 tem então duas linhas de acção: a da conversão pessoal e comunitária com total mudança de vida; e a do serviço aos irmãos, sobretudo os mais pobres e os que mais sofrem.
2. O itinerário quaresmal convida os cristãos a percorrerem ao longo de seis semanas um caminho de autêntica renovação de vida. Começa-se por procurar vencer as tentações no difícil mundo que nos rodeia. Aponta-se depois um projecto, a transfiguração completa da vida. Exige-se, logo a seguir, a purificação do templo que cada um é, uma vez que “Somos templo de Deus que habita em nós”. Continua-se, depois, com a afirmação da fé, seguindo o exemplo de Nicodemos, que não teve medo de procurar Jesus. Aceita-se, então, dar a vida pelos grandes valores do Evangelho, porque “se o grão de trigo não morrer, não pode dar fruto”. Termina-se com a consagração da vida significada na entrada na Nova Jerusalém e na entrega da vida na cruz de cada dia. É um itinerário de grande beleza.
O ponto de partida – Jesus, antes de começar a vida pública, esteve 40 dias no deserto e ali foi tentado pelo demónio. Os cristãos têm um sonho missionário, uma missão para realizar, mas, envolvidos nas inúmeras tentações do mundo actual, devem aprender com Jesus a vencê-las. Só assim serão melhores. – 1º Domingo.
O projecto indispensável – Na transfiguração, no Monte Tabor, Jesus faz a síntese do Antigo Testamento, convidando os discípulos a descerem para o mundo recriando a Lei e os Profetas. Os cristãos têm hoje um sonho, transfigurar o mundo com os valores do Evangelho. Só com responsabilidade missionária o poderão fazer. – 2º Domingo.
A purificação necessária – Foi violenta a entrada de Jesus no Templo deitando abaixo as bancas dos cambistas e dizendo que aquela casa não era lugar de negócios. Os cristãos deverão libertar-se de todas as “cangas” que os impedem de ser fiéis a Jesus Cristo e de transformarem os ambientes em que vivem. – 3º Domingo.
Reafirmar a fé – Jesus escutou Nicodemos, um homem preocupado e que queria conhecê-l’O. Foi uma conversa fundamental para aquele sinedrita que acabou amigo de Jesus. Os cristãos têm de encontrar-se muitas vezes com Jesus, conversar com Ele, aceitar as suas sugestões para assim crescerem na fé e afirmá-la sem medo. – 4º Domingo.
A conversão também pede sofrimento – A palavra é de Jesus “se o grão de trigo não morrer, nunca poderá dar fruto”. Os cristãos terão de aperceber-se que viver a sua fé não é nada fácil, sofrerão incompreensões e por vezes até um certo martírio. Mas é este sacrifício no ser cristão que gera novas vidas para a prática do Evangelho. Em pleno terceiro milénio continua a haver muita gente a morrer por Cristo, e o sangue dos mártires é semente de novos cristãos (cf Tertuliano). – 5º Domingo.
A alegria e a dor na vida cristã – Jesus é aclamado na entrada de Jerusalém pela mesma multidão que cinco dias depois pedirá para Ele a morte e a morte de cruz. O cristão não pode deixar de saber que a vida na fé, sendo fonte de alegria, traz consigo muitas vezes incompreensão, marginalização e até perseguições. – 6º Domingo.
É este o itinerário litúrgico da Quaresma, segundo S. Marcos. Seria maravilhoso que cada cristão aproveitasse estas seis semanas para rever-se à luz do Evangelho e assim encetar uma vida nova que o afirme melhor como cristão na cidade dos homens. Se todos os cristãos afirmarem a sua fé com coragem, generosidade e alegria, a cidade dos homens poderá voltar a ser cristã.
3. Toda a Quaresma está dominada por três grandes coordenadas que acompanham este tempo privilegiado de conversão. Foi o desafio de Quarta-Feira de Cinzas com o lindíssimo texto de S. Mateus no seu capítulo 6. Neste tempo de oração e penitência ninguém pode ser hipócrita, não pode fazer nada para ser visto pelos homens, caso contrário não recebe de Deus qualquer recompensa. Se o mundo está marcado por três falsos absolutos, o ter, o poder e o prazer, os cristãos têm que lhes contrapor a esmola, a oração e o jejum.
A esmola contraria o ter, uma vez que convida à partilha generosa com os mais pobres, com os que mais sofrem, com os desempregados, com os idosos, com todos os que não têm recursos.
A oração contraria o poder, uma vez que só em Deus se encontra quem tem a maior autoridade sobre o ser humano. Ele é Pai, ama todos os humanos, garante-lhes o pão, afirma-lhes o perdão e dá a todos a liberdade. São estes os bens que se pedem no Pai-Nosso.
O jejum contraria o prazer, uma vez que há muitas coisas a que se pode renunciar a fim de se estar disponível para quantos precisam de ajuda.
Que cada cristão saiba inventar as formas de partilha, de oração e de renúncia neste tempo santo da Quaresma.
4. A conversão não é só pessoal, é também comunitária. Por isso se propõem formas diversas de vivermos na vida da comunidade paroquial o sonho missionário, de conversão, que é para todos.
Pe. Vítor Feytor Pinto