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É breve e para poucos a sobrevivência na memória afectuosa dos familiares e amigos. Chegamos tarde em relação ao passado e demasiado cedo em relação às maravilhosas promessas da ciência e da técnica.
Por outro lado, a louca persistência das guerras e os absurdos que as provocam, impondo a lei de matar, ser morto ou fugir, geram cepticismo acerca da possibilidade global de humanização da história[1].
A verdadeira vida e a morte dependem dos afectos. Fora deles, há apenas estatística.
Os mais idosos vão sofrendo a desertificação das relações de familiares e amigos. Mário Brochado Coelho, a propósito da morte de Nuno Teotónio Pereira e do desaparecimento de outros companheiros, manifestou aos amigos, de modo comovente, que embora tudo seja natural, ficamos com o sentimento de uma grande orfandade.
Há outras pessoas que alimentam o desejo de um Deus de memória afectuosa, transfiguradora e universal, para si e para os outros, um coração que as acolha.
Cada uma dessas fases e faces deixou imagens diferentes naqueles que com ele conviveram. No entanto, o próprio se explicou longamente sobre os tempos e acontecimentos que viveu. Quem voltar a ler as suas crónicas no Público[2], a última entrevista a José Pedro Castanheira, publicada no Expresso[3] e o testemunho ditado para o Encontro do ISTA e do NAM[4], pode formar uma opinião mais abrangente, não apenas acerca dele, como da sua primeira mulher, a extraordinária Maria Natália Duarte Silva.
É conhecido que ambos, nos anos 60, me associaram à criação do Direito à Informação, à Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, à Iniciativa dos Terceiros Sábados e ao trabalho de encontrar esconderijos para clandestinos.
O Nuno ajudou-me também a encontrar, em Portugal, a pista das pessoas percursoras do Vaticano II, algumas das quais marcaram a sua mudança de rumo e as expressões militantes do seu profundo catolicismo.
Tentei, quando ainda não havia quase nada estudado a esse respeito, apresentar um esboço nas Artes de ser católico português[5]. Desde a Voz de Santo António (1895-1910) até D. António Ferreira Gomes, passando pelos irmãos Alves Correia (Manuel e Joaquim), pelo Movimento e edições Metanoia, dos anos 40-50, pelo Padre Abel Varzim e pela aceleração dos anos 50, em vários ramos da Acção Católica, podem-se encontrar tentativas, obras e correntes que foram reconhecidas no Vaticano II e abafadas pela hierarquia portuguesa, com raras excepções.
« (…) Pode ser que seja necessário passarem uma ou duas gerações para que isto aconteça: são acontecimentos para o próximo século. Mas talvez suceda que a mensagem evangélica, por um lado, e a crença numa sociedade mais justa e solidária, por outro, sejam dois fachos que não se apaguem na marcha da Humanidade e que poderão até ser convergentes, com surpresa para muitos. (…) É preciso que qualquer coisa renasça ou nasça de novo para nos devolver a esperança».
O texto do Papa Francisco, sobre a «Igreja de saída», que transcrevi no passado domingo e apresentei no funeral de Nuno Teotónio Pereira, parece-me o começo de realização desta esperança.
José Pedro Castanheira, na última entrevista, perguntou-lhe: deixou de ser crente? «A certa altura, sim, muito por causa do episódio da morte da minha mulher. Não foi imediato, mas ficou sempre uma ferida. Depois meti-me na política e acabei por chegar à conclusão que o sobrenatural não me dizia nada. Mas, olhando para toda a minha vida e para a minha formação, acho que sou católico, ainda que não praticante. Sou crente».
Santa coerência.
Frei Bento Domingues, O.P.
Público, 31.01.2016
https://www.publico.pt/sociedade/noticia/a-memoria-afectuosa-de-deus-1721809