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UM CONTO DE NATAL

por Zulmiro Sarmento, em 12.12.14

O quarto Rei Mago

 


Como toda a gente sabe, os três reis magos ofereceram presentes ao Menino Jesus: ouro, incenso e mirra. Nossa Senhora e S. José agradeceram. Mas o Menino piscou os olhos com o brilho do ouro, começou a tossir com o cheiro do incenso; e não achou graça nenhuma à mirra. Os três reis, que se tinham ajoelhado, levantaram-se e foram-se embora pouco satisfeitos, porque o Menino os não tinha tratado com a consideração a que achavam que tinham direito.

Já eles iam longe, quando apareceu o quarto rei. Este rei vinha do Golfo Pérsico. No dia em que tinha visto a estrela que anunciava o nascimento do Messias, dispôs-se logo a partir. Foi à câmara subterrânea onde guardava os seus tesouros, abriu um cofre e retirou aquilo que tinha de mais valioso, três pérolas muito grandes e muito brancas. Mandou ajaezar o seu camelo mais forte e partiu na direcção da estrela.

Alguns dias depois, viu o presépio, mesmo por debaixo da estrela. O pior é que chegava atrasado, os reis seus colegas até já se tinham ido embora. E, pior ainda, já não tinha presentes…
Mesmo assim, abriu devagarinho a porta da cabana. Lá estavam, o Menino, sua Mãe e S.José. Começava a ficar escuro. S. José ajeitava a palha para se deitarem. O Menino Jesus estava ao colo de Maria, que o embalava, cantando em surdina uma canção.

O rei do Golfo Pérsico entrou a medo, e ajoelhou aos pés do Menino e de sua Mãe. Com ar envergonhado, começou a falar:

«Senhor, cheguei atrasado. Vejo que os meus colegas já Te prestaram as suas homenagens, já Te ofereceram os seus presentes, e já partiram.

Eu também Te trazia uma prenda: eram três pérolas muito grandes e muito bonitas, três pérolas verdadeiras, do mar do Golfo Pérsico.

Peço muita desculpa. Sabia que os outros reis vinham à minha frente, e tinha a certeza de que os ia apanhar. Mas entrei numa estalagem para jantar. Bebi um bocadinho de mais e apeteceu-me ficar lá nessa noite. Mas ao sair da sala de jantar, vi um velho estendido no chão ao pé da lareira e a tremer de febre. Ninguém sabia quem ele era, não tinha dinheiro e iam pô-lo na rua.

Senhor, era um velho muito velho, magro e macilento, com uma barba branca mal tratada. Fez-me lembrar o meu pai. Senhor, desculpa-me: peguei numa das três pérolas que eram para ti e dei-a ao dono da estalagem para que chamasse um médico, desse comida e alojamento ao velho, e o enterrasse de maneira digna se ele não resistisse à doença e morresse.No dia seguinte, retomei o caminho. Batia no meu camelo para ver se ele andava mais depressa e alcançava os meus amigos. Mas ao passar num desfiladeiro ouvi gritos. Eram salteadores que queriam fazer mal a uma rapariga. Eram muitos e eu não tinha possibilidade de os atacar e vencer. Gritei-lhes que lhes dava uma pérola muito grande se soltassem a rapariga. Quando viram a pérola, disseram logo que sim. Deixaram a rapariga , que fugiu a correr para os montes. E eu dei-lhes a pérola, que era para ti. Desculpa-me!

Já só tinha uma pérola, mas essa não a queria perder. Já passava do meio-dia, e eu obrigava o meu camelo a andar cada vez mais depressa. Passei então por uma aldeia. Estava cheia de soldados de Herodes, que procuravam os meninos de menos de dois anos e os matavam à espada. Já só restava um e iam deitá-lo a uma fogueira. A mãe da criança gritava e chorava, como se a estivessem a matar a ela. Senhor, desculpa-me, peguei na última pérola e dei-a aos soldados para que entregassem o miúdo à mãe. Eles aceitaram. A mulher nem me agradeceu. Pegou no filho, vivo, e fugiu a correr muito.

Senhor, já não tenho pérola nenhuma. Desculpa-me!»

O rei calou-se. Não se ouvia zumbir uma mosca. Prostrado no chão, ousou finalmente levantar a cabeça. S. José tinha acabado de ajeitar a palha e aproximava-se. Maria olhava fixamente para Jesus, ao seu colo. E o Menino, será que estava a dormir?

Não. O Menino Jesus não estava a dormir. Voltou a cabeça para o rei do Golfo Pérsico. Tinha um ar muito contente. Estendeu as mãozinhas para as mãos vazias do rei. E sorriu-lhe.

JOANNES JOERGENSEN, in Contes de Noël, Éd.du Seuil,1961. (Adaptação)

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publicado às 13:44

FALTAM PRESÉPIOS VIVOS

por Zulmiro Sarmento, em 03.12.14
 
 
1. Por esta altura é já grande a fadiga e incontrolável a ansiedade. Até as crianças já perderam o encantamento da surpresa e a fantasia da expectativa do que poderão receber naquela noite santa. Agora fazem exigências, ainda por cima dispendiosas. Nos hipermercados acotovelam os pais: «Quero isto. E mais isto. E mais isto»…

 

Aos idosos, levamos apressadamente uma peça de roupa ou um bolo. E lá continuam eles na cama. Tantas vezes sozinhos. Quando muito, são convidados para a «consoada». Só que, na manhã de Natal, são reconduzidos ao abandono de há muito. À solidão de sempre.

 

Urge, pois, desmaterializar as ofertas de Natal. É preciso recordar que o maior presente é a presença. É a companhia. É o afecto. É o apoio. É a certeza de que alguém pode contar connosco.

 

Não nos esqueçamos de que, para muitos, a noite de 24 para 25 deste mês vai ser uma noite triste. Uma noite sofrida. Uma noite chorada.

 

A casa até pode estar repleta de coisas. E a alma também poderá estar cheia. Mas de mágoas. De dores. De ingratidões sem fim…

 

 

2. O Natal é habitualmente associado às crianças. Está certo. Na verdade, o Filho de Deus apareceu no mundo em forma de Menino. Mas será que já nos lembramos dos velhinhos? Será que já demos pela presença de Deus neles?

 

Será que já tivemos a preocupação de passar pelo leito em que se encontram e de depositar um beijo na sua face enrugada? Será que já tivemos a percepção de que beijar um velhinho é, hoje em dia, uma nova forma de beijar o Deus Menino?

 

É bonito ver tanta gente a oscular, comovida, a imagem de barro do Menino Jesus. Mas porque é que não mostramos a mesma reverência ante a Sua imagem de carne e osso? Não percas de vista, irmão, que o Menino não está só no presépio. Encontra-se igualmente no berço e nos hospitais. Tantas vezes, ignorado. Tantas vezes, esquecido e rejeitado.

 

 

3. Os tempos do Messias são marcados pela surpresa. Tudo é desconcertante. Maravilhoso. Arrebatador.

 

O que é incompatível compatibiliza-se. O que é inconciliável concilia-se. O que é impossível (finalmente) realiza-se. A novidade d'Aquele que há-de vir é a paz. A convivência. A harmonia universal.

 

Sucede que Ele já veio no tempo. Será, contudo, que O deixamos vir até nós? Se o lobo habita com o cordeiro, porque é que os humanos não conseguem conviver entre si? Na verdade, estamos num mundo que ainda não aprendeu a ser mundo. E somos homens que ainda não aprenderam a ser homens…

 

 

4. Há presépios lindos. Há presépios engenhosos. Há presépios deslumbrantes. Há presépios originais. Há presépios interessantes. Há presépios surpreendentes. E até há presépios ao vivo. Faltam, contudo, presépios vivos. Que, a bem dizer, são os únicos presépios necessários. Aqueles que são construídos não nas ruas ou nas casas. Mas no coração humano. No meu. No teu. No nosso.

 

É aí, irmão, que Ele — o Senhor — quer (re)nascer hoje. Vais consentir que Ele seja atirado novamente para um estábulo, como há dois mil anos? Não tardes, meu Deus! Acorda-nos da sonolência que nos envolve e da indiferença que nos cega!
 
Do blogue Na Paz a Verdade

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publicado às 10:03

‘Boas festas’!...

por Zulmiro Sarmento, em 04.01.12

Um destes dias cruzei-me na rua com uma figura política conhecida no espaço onde agora vivo. Depois de breves frases de circunstância, o senhor rematou: ‘boas festas!’

Fiquei a pensar no que podia significar tal desejo, visto que – tanto quanto se sabe – o senhor que tal expressão manifestou não é crente em Deus, embora ocupe um lugar de destaque na sociedade politico-autárquica... e pretenda ser bom cidadão.
- Embora este desejo de ‘boas festas’ ande no andar: que poderá significar tal pretensão, à luz do (não) Festejado no Natal?
- Se bem que este desejo de ‘boas festas’ possa resumir uma espécie de anseio: que alcance poderá ter para quem não reconhece que o (tal) Aniversariante nos faz irmãos?
- Atendendo a que o desejo de ‘boas festas’ pode incluir um (quase) ritual social: que significado poderá envolver, se fazemos festa a nós mesmos, desconhecendo Quem motiva a pretensa festança?

= ‘Boas festas’ de quem?
Na medida em que a sociedade se foi descristianizando, urge recolocar as referências do Natal nas palavras e no comportamento pessoal, familiar e coletivo: este é o aniversário do nascimento de Jesus, acontecido em Belém da Judeia... com o qual se fez a divisão da era histórica e social – antes de Cristo e depois de Cristo – Ele é a marca divisória inclusiva e universal. Com efeito, por muito que se enfadem certas correntes filosóficas, culturais e/ou exotéricas, ninguém divide o tempo da História entre antes ou depois de Marx, de Freud ou de Nitzeche, de Sócrates ou de César... Nem certas correntes agnósticas e (pseudo)-ateias conseguirão excluir da mentalidade as referências a Jesus Cristo, pois, muitas vezes, fazem-no por oposição a Ele, tendo de reconhecer a Sua existência e a sua influência na cultura... desde há mais de vinte séculos.
Nem a bizarra figura do ‘pai natal’ conseguirá interferir na prossecução do advento de Cristo, pois quem está subjacente àquela figura é – nem mais nem menos – um bispo católico (São Nicolau), embora explorado, no início da década de trinta do século vinte por uma marca de refrigerantes americana. Não deixa de ser sintomático que possamos refletir – neste nosso tempo dito de ‘crise’ – sobre essa ‘grande depressão’, que se abateu sobre o mundo entre as duas grandes guerras. Pode(re)mos agora exorcizar esse símbolo do consumismo, dando espaço e oportunidade ao verdadeiro sinal que celebramos no Natal.

= ‘Boas festas’, porquê?
Quando tantos e muitos dos nossos concidadãos passam dificuldades de vária ordem – económica e financeira, familiar e de emprego, alimentar e sobre as rendas de casa, etc. – porque havemos de desejar ‘boas festas’, se estas são mais alienação do que motivo de celebração. De fato, quando a ‘crise’ faz encolher os gastos e turvar o semblante das pessoas, será sinal de que as ‘boas festas’ estavam, sobretudo, centradas em coisas e não ideais ou sob objetivos de vida consentâneos com a fé.
Efetivamente, as luzes eram mais para nos seduzir e enganar e não para nos alumiar a partir de Cristo, luz do mundo e centro da nossa fé cristã.
Eis chegada, então, a oportunidade de viver o espírito do presépio – esse espaço de pobreza e de desafio à complexidade do nosso mundo – numa atitude de simplicidade, vivendo centrados no essencial, sem enfeites ou papel luzidio... onde muito se vende e tão pouco se vivencia.
Queira Deus que saibamos aproveitar este momento histórico e espiritual de entrarmos no novo ano com nova energia – 2012 é o ‘ano internacional da energia’ – dando nova condição à paz, educando – como diz o tema da mensagem do Papa Bento XVI para a celebração do dia mundial – os jovens para a justiça e para a paz.

António Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)
AGÊNCIA ECCLESIA

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publicado às 04:10

Oração para o Dia de Natal

por Zulmiro Sarmento, em 25.12.11
  

Eu queria um Deus resplandecente e forte,
que se impusesse aos poderosos
e que mudasse radicalmente o mundo,
e ele apareceu na fragilidade de um bebé,
dependente e indefeso,
nascido numa gruta de pastores
e deitado numa mangedoira de animais;

Eu queria um Deus que miraculosamente acabasse
com a injustiça e a hipocrisia,
que fizesse chover do céu a ordem,
o bem estar, a segurança
e ele apareceu na figura de uma criança
que os grandes rejeitaram
e que só os pobres, os simples,
os marginalizados acolheram;

Eu queria um Deus cujo poder atingisse
cada canto da terra,
que se impusesse aos projectos maquiavélicos
dos senhores do mundo,
que transformasse a história humana
com a força do seu braço
e ele nasceu numa pequena cidade sem história,
no seio de um povo pequeno e insignificante,
cuja voz nunca foi escutada
nos grandes areópagos
onde se discute o destino do mundo;

Eu queria um Deus exigente,
que não deixasse cada um fazer o que quisesse
e encontrei um Pai universal, paciente e bondoso,
com coração e com sentimentos,
capaz de compreender e desculpar
as falhas e as debilidades dos homens,
que nem castiga nem se vinga, mas perdoa sempre;

Eu queria um Deus que se impusesse,
que não nos deixasse fazer asneiras
nem conduzir o mundo
por caminhos de egoísmo e de sofrimento
e encontrei um Pai que sabe respeitar
as decisões de cada homem ou mulher,
que promove até ao fim a liberdade humana
e a respectiva responsabilidade;

Eu queria um Deus
que fosse solução eficiente e rápida
para todos os problemas e dúvidas
que inquietam o meu coração
e encontrei um Deus que não me dá respostas feitas,
mas me ensina a procurar,
no diálogo com os meus irmãos,
o caminho a percorrer;

Eu queria um Deus racional,
que eu entendesse à luz da minha lógica
e encontrei um Deus desconcertante,
com uma lógica estranha,
que parece privilegiar certos valores
que os homens desprezam
e desprezar certos valores que os homens amam;

Foi esse Deus, frágil, discreto,
desconcertante, cheio de amor
que, há cerca de dois mil anos, nasceu em Belém
e que hoje continua a querer nascer
no coração de cada homem ou mulher.

 

Padres dehonianos

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publicado às 03:15

Abrir-se ao dom

por Zulmiro Sarmento, em 14.12.11

Recuperar a verdade do Natal é abrir-se ao dom, deixar que Cristo se forme em nós

OMP

Acende-se, neste tempo, a nostalgia nos nossos corações. E quando escrevo "nossos", estou a pensar em quantos ainda viveram um Natal religioso, familiar e feliz; afinal os que conheceram outra realidade diferente desta pressa anónima, irrefletida e comercial que hoje nos afoga.

Nostálgicos, exclamamos que "já não é como dantes". Estranhamente, porém, resignamo-nos, qual pedaço de esferovite perdido na corrente: apesar de flutuar, está decididamente rendido a uma força estranha!

Foi já há mais de uma dezena e meia de anos que me confrontei com um grito de alarme numa revista espanhola: "Roubaram-nos o Natal". Mas aonde nos levou esta constatação? Que reação provocou, para além do estranho sentimento de perda? Às indefinições que vivemos…

Sempre tive grande dificuldade em lidar com a resignação, mesmo quando ma apresentavam vestida de suposta virtude. Realmente, tenho medo de cobardias dóceis ou cómodas abdicações.

É por isso mesmo que defendo uma urgência: recuperar a verdade do Natal -- lavando-a de todas contaminações e "distrações", para usar a ideia expressa pelo Papa Bento XVI no Angelus do passado domingo.

Se o fizermos, torna-se natural o anúncio e a partilha da impensável notícia: "Deus amou tanto o mundo, que lhe deu o seu Filho unigénito".

Reconheça-se que muitos cristãos assim procedem, trabalhando para que os sinais do Amor não desapareçam das casas, das ruas e, sobretudo, dos gestos. Deparamo-nos, por isso, com exposições, presépios, estandartes às janelas e campanhas que levam ao encontro do outro - que é sempre o lugar de encontro com Deus. Mas são demasiados os embrulhados numa mera generosidade de coisas; ou em atitudes simplesmente protocolares, vividas com o desencanto de quem eterniza indiferenças, ainda que escritas sob o manto de "cordiais saudações"!..

Recuperar a verdade do Natal é abrir-se ao dom, deixar que Cristo se forme em nós. Sem medo, pois que quanto mais fugirmos de Deus, mais nos desumanizamos.

João Aguiar Campos

 

AGÊNCIA ECCLESIA

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publicado às 09:50

Natal com menos... Natal melhor

por Zulmiro Sarmento, em 07.12.11

Frei Fernando Ventura, franciscano capuchinho

Ser hoje luz num tempo de sombras, parece ser o “destino” de cada um de nós no tempo que passa, num tempo que passa e que dói, que dói esta dor funda da impotência, da impotência diante dos gigantes das sombras que se agigantam e que parecem querer tomar de assalto tudo o que mexe, tudo o que respira e tudo o que sonha.

Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor!

 

O mundo, o país e cada um de nós, vive tempos de esperança e de mudança, em que o novo surge como a nova fronteira a conquistar, mas onde o medo e os medos teimam em formar barreira diante dos olhos, destes olhos feitos para ver a luz, feitos para encarar o medo, feitos para não terem de ver o sol só refletido nos charcos.

Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor!

 

Se calhar, a maior conquista do tempo do medo que passa, foi precisamente esta de nos ter tirado a capacidade de ousar levantar a cabeça, de ousar olhar para além do imediato do já, em direção ao menos “imediato” do ainda não, mas que está e vive em tensão de devir, de futuro, de projeção para diante, num diante que encontra a utopia e faz dela o sonho, um sonho que vence o medo, um sonho que se abre à luz.

Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor!

 

É por aqui que passa o segredo, este segredo que invejosamente levamos dentro sem partilhar, que envergonhada e pudicamente escondemos e que não conseguimos dar à luz e que nos faz gemer, gemer as dores do parto que tarda, gritar o grito das vozes caladas.

Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor!

 

E no entanto, a gravidez do tempo existe, as dores do parto afligem-nos, o nascimento tarda em acontecer, e o meu povo sofre, e a minha gente grita, o grito surdo que a voz rouca não é capaz de calar, mas que o medo embota, e que o desespero não deixa encontrar a paz.

Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor!

 

Neste tempo de vozes que gritam, que gritam a esperança que não é, que gritam promessas que não são, que esboçam sorrisos que são só esgares, eu paro e pasmo, qual basbaque embrutecido diante do palácio da ignomínia alcandorado em conto de fadas, das mil e uma noites de uma aurora boreal que é só ilusão e nada, de um nada que teima em ser e de um ser que já não é.

Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor!

 

E eu caminho, oh sim, caminho ao mesmo tempo em direção ao nada e ao ser, em direção ao outro e a mim, em direção ao nada e ao tudo, deixando para trás o passado que já foi, indo ao encontro do futuro que parece tardar em vir, no presente que cada vez que se deixa tocar no futuro que se torna passado, porque afinal, não existe.

Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor!

 

E é aqui que começa a minha “crise”, a crise de saber quem sou, onde estou, como estou, quem serei, como serei, onde estarei, como estarei! E é aqui que me dou conta de mim, da minha pequenez de ser, mas de um ser que é, de um ser chamado à existência nesse espaço virtual entre o já e o ainda não, entre o abismo do tudo e a profundidade do nada, num silêncio às vezes só habitado por fantasmas e por vozes, onde a minha se confunde, mas não deixa de existir e de falar. E de dizer NATAL!

Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor!

 

Fantasmas e vozes de mim, deste ser que me habita e que eu procuro, deste ser que é e que é eternidade, uma eternidade que é já, que é este hoje do meu ser, que é ao mesmo tempo nada e tudo, porque sou eu, em relação comigo, em sorrisos e lágrimas, em alegrias e desesperos, em sonhos e fantasias, em “nadas” e em “tudos” que me habitam, que me “moram” onde eu moro, seja onde for, porque o meu “eu” não tem “lugar”, é, simplesmente, e pronto, comigo, em mim e para além de mim, porque infinito, porque eterno, porque tudo e porque nada, porque é, ao mesmo simultaneamente eternidade e tempo, imanência e transcendência, limite e infinito, kairós e eskaton, já e ainda não.

Por isso hoje é tempo de NATAL com menos, mas um Natal melhor!

FELIZ NATAL!

Frei Fernando Ventura, franciscano capuchinho

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publicado às 10:15

Não nasci na China

por Zulmiro Sarmento, em 04.01.11

FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

1. Li, não sei onde, que nenhum dos grandes mestres da humanidade – Buda, Confúcio, Sócrates, Cristo – teria currículo para se candidatar a um modesto lugar de professor de qualquer Universidade. É verdade. Não escreveram nada, mas continuam a encher bibliotecas. Parece que Jesus Cristo sabia ler, mas também não deixou nada escrito. Consta que se entreteve a rabiscar na areia, não sei lá o quê, enquanto se preparava para gozar os mestres da hipocrisia moral que pretendiam justificar o apedrejamento de uma mulher surpreendida, sozinha, em flagrante adultério.

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 19 de Dezembro de 2010

 

Quando chegam as festas do Natal e da Páscoa, encontro sempre pessoas que, exibindo o seu relativismo cultural e a sua distância em relação ao cristianismo, dizem com ar de grande descoberta: se fosses chinês, tinhas poucas hipóteses de participar nestas celebrações, reduzidas agora a festas familiares, sem qualquer conteúdo cristão. Respondo, com Paul Ricœur, que não estão a falar de mim, mas de alguém que desconheço. Eu não tive nem tenho nenhuma hipótese de escolher os meus antepassados nem os meus contemporâneos. Não sou chinês nem por nascimento nem por herança. Cresci na fé cristã, de tradição católica romana, em Terras de Bouro, à qual fui aderindo, cada vez mais.

Como aprendiz de teólogo, tenho procurado aprofundar as razões da minha esperança, descobrindo, acolhendo, reelaborando os argumentos que me parecem mais plausíveis e afastando aqueles que se manifestam menos adequados a exprimir o que há de mais central na minha adesão. No plano do estudo, esta minha herança foi e é sempre confrontada com várias outras tradições, compatíveis ou adversas, que surgem nos meus caminhos. No diálogo com pessoas nascidas noutras tradições e adesões, tento perceber os seus percursos, as suas doutrinas – incorporando-as muitas vezes – e apresentando, também, os motivos e as razões das minhas preferências. O mito bíblico da Torre de Babel e da chamada dispersão e confusão das línguas não podem ser interpretados como

uma catástrofe, mas como “a simples verificação da pluralidade característica de todos os fenómenos humanos”. Aliás, como diz Desidério Murcho, o valor epistémico da diversidade de opiniões é permitir que as ideias mais díspares sejam defendidas por quem genuinamente acredita nelas. Por outro lado, “mistério é o dom que nem sempre vê quem olha de fora” (H. Helder).

2. Para todas aquelas pessoas que se deixam impressionar pelas narrativas evangélicas do Presépio e acreditam que aquele menino é verdadeiramente o Emanuel, Deus-connosco, têm a vantagem de o não poderem ver como uma divindade prepotente que nos tem sob controlo ou sob ameaça. Como bem diz o catalão José Antonio Pagola, Deus nem sequer é “omnipotente”. Não pode, por exemplo, abusar de nós, manipular, humilhar ou suprimir a nossa liberdade. Nunca poderá prejudicar-nos ou fazer-nos mal. Resta-lhe fazer o que pode o amor da pura gratuidade. Aliás, para agredir, destruir, prejudicar não é preciso ter muito poder. Pelo contrário, para acolher, perdoar, respeitar – “passar fazendo o bem”, como se diz de Jesus – é preciso ser grande, não com a grandeza que esmaga, mas com aquela que o amor liberta.

Foi a partir do itinerário de Jesus, do seu percurso humano, nos seus momentos felizes e trágicos – testemunhados nos escritos do Novo Testamento – que os discípulos acolheram a revelação de um Deus diferente, um Deus na fragilidade, na carne, na cruz e nos testemunhos de uma misteriosa vitória sobre a morte. Segundo esses textos, o segredo deste ser humano para os outros, sem restrição, mas a partir dos mais abandonados – o verdadeiro “homem novo” – encontra-se na relação filial com Aquele que tratava, em linguagem nada litúrgica, familiar, por Abba, o Pai que não faz acepção de pessoas ou de povos. Todos os seres humanos, de todas as eras e de todas as culturas, formam uma só família. A identidade do cristianismo só pode ser apreendida a partir dessa experiência e não das deformações da cristandade. Os chamados impérios cristãos são traições.

3. Quem visita, hoje, o verdadeiro Presépio? A resposta pode ter uma dupla versão. Não é difícil admitir, pelo menos teoricamente, que, quando alguém adere verdadeiramente a Jesus Cristo, descobre a sua presença em todos os seres humanos – ateus, agnósticos, crentes de qualquer religião ou sem religião – que servem, desinteressadamente, seja em que circunstância for, a alegria dos outros.

De novo, segundo os textos cristãos, quem, pelo contrário, não tendo nenhuma referência explícita religiosa, se dedica voluntariamente a socorrer aqueles que precisam de ajuda, só e unicamente porque precisam, encontra-se, mesmo sem o saber, com o Deus de Jesus Cristo, o grande clandestino da história humana (Mt 25, 37-40).

Não pretendo fazer cristãos à força de subtilezas teológicas. Na prática do Jesus de Nazaré, uns viram uma traição à pátria e ao império, outros descobriram o salvador do mundo (Jo 4, 42).

Não nasci na China, mas creio que Jesus Cristo nasce todos os dias, em qualquer lugar, no coração de todos os que reconhecem, no outro, o seu irmão feliz ou atribulado. Nesta lógica dos pequenos passos, vai nascendo a globalização da solidariedade, o Presépio da nossa esperança. Bom Natal!

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publicado às 05:24

Como Jesus

por Zulmiro Sarmento, em 03.01.11

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publicado às 09:49

Manifestação do Menino

por Zulmiro Sarmento, em 02.01.11

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publicado às 01:03

Jesus curioso

por Zulmiro Sarmento, em 28.12.10

 

Já foi moda colocar um pai Natal pendurado das janelas. Mas, felizmente, no ano passado, começou a aparecer a bela imagem do Menino Jesus, o verdadeiro Rei das Festas do Natal. Apresenta-se sobre fundo vermelho, olhando em frente, de braços abertos, como quem espera por um abraço, pelo nosso abraço. Alguém, mais atrevido, entendeu que lhe pedia colo: agarrou-o, aconchegou-o a si e…o Bebé fez-lhe festas na barba, deixando-lhe o coração ainda mais enternecido.

Assisti à cena, através da minha imaginação, e vi o desconhecido levá-lo para casa. Tentou deitá-lo na cama do filho, mas Jesus apontava para a janela e para a janela o levaram, divertidos. Jesus olhava com atenção e espreitava para cada casa. Sorria encantado sempre que descobria um novo estandarte com a Sua imagem e abençoava aquele lar. Mesmo em frente, por uma janela de sacada, viu uma família reunida entre caixas e figuras. Estavam a montar um Presépio e Jesus rejubilava. Ergueu a mãozita e abençoou-os todos. Pouco depois, pela janela aberta, ouvia-se cantar. Tinham-se reunido à volta do Presépio para cantar ao Menino. E Jesus ouvia, do outro lado da rua. Uma rapariga tocava viola e entoava a segunda voz, um pequenito tocava guizos ao ritmo suave da melodia, o pai tinha um acordeão sobre os joelhos e acompanhava o coro infantil com a sua voz de barítono bem afinada, a mãe, entre duas filhas, aguentava as primeiras vozes daquele Adeste Fideles encantador. Alguns peões paravam em baixo para escutar. E Jesus abençoava uns e outros, debruçando-se mais para melhor ver e ouvir.

Mais para a esquerda, outra janela permitia ver um quarto de cama com uma velhinha deitada. Sobre a mesa-de-cabeceira, já alguém colocara um pequeno presépio de barro pintado em tons sépia. A doente olhava-o enternecida e parecia rezar. Jesus, sempre ao colo, esticava-se: parecia querer ouvir aquela avó tão débil. Sim, queria fazer-lhe todas as vontades. E abençoava-a, e às pessoas por quem ela pedia.

Tive então uma ideia: fui visitar os meus tios, que moram mesmo defronte da varanda onde Jesus estava e postei-me na varanda para me mostrar. Disse-lhe adeus, atirei-lhe beijos e…o Menino não me abençoava. Fiquei triste e desapontado. Não havia bênção para mim? Sentei-me então com o meu computador portátil e comecei a escrever sobre o meu Menino à janela, que não parava de espreitar, mas não me via a mim. De repente, deu um salto para o meu colo, afastou a minha gravata, abriu-me a camisa e espreitou para o meu coração. Assustei-me com a cara que fez. Pareceu-me que ia chorar, com o beicinho a tremer. Não resisti ao impulso: “Não chores, meu Menino. Gosto tanto de Ti. Se quiseres, vou já ter contigo, primeiro no confessionário, para que me perdoes, e depois no Sacrário onde Te escondes tão bem”. Parou logo de chorar e abençoou-me! Sim! Abençoou-me, finalmente! E deu um salto para a janela, à tua procura, meu caro leitor. Quer ver-te bem mais perto de Si, neste Natal.

Isabel Vasco Costa
in ECCLESIA

 

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