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Repensar as manifestações religiosas populares

por Zulmiro Sarmento, em 14.06.11

D. António Vitalino, bispo de Beja e presidente da Comissão Episcopal da Mobilidade Humana, fala à Agência ECCLESIA da importância da piedade popular e do seu entendimento, à luz da fé e da necessidade de festa

MC/Ecclesia

D. António Vitalino, bispo de Beja e presidente da Comissão Episcopal da Mobilidade Humana, fala à Agência ECCLESIA da importância da religiosidade popular e do seu entendimento, à luz da fé e da necessidade de “festa” que é sentida por todos os seres humanos. Para este responsável, é fundamental que as duas dimensões se encontrem e se promova uma síntese que não deixe de lado a verdadeira motivação religiosa.

 

Agência ECCLESIA (AE) – Na estação do verão, as festas e procissões são uma constante nas paróquias portuguesas. Na linha do documento dos bispos «Repensar juntos a Pastoral da Igreja em Portugal» o capítulo da religiosidade popular tem sido estudado?

D. António Vitalino (AV) – A religiosidade popular tem de ser repensada e renovada. Com o fluxo dos tempos inserem-se aspetos que não provêm da inspiração evangélica. No entanto, não se pode colocar de lado que o homem necessita de festas, romarias e peregrinações. A religiosidade popular tem a particularidade de lhe dar esses símbolos concretos.

Em Portugal realizam-se muitas festas, mas a principal procissão é a do «Corpo de Deus». A Eucaristia é o centro de toda a religiosidade cristã. Depois, vêm as festas de Nossa Senhora e em honra dos santos dos padroeiros. Todavia, nem sempre elas estão, totalmente, sintonizadas com o objetivo de honrar o padroeiro.

 

AE – Muitas vezes, o lado lúdico prevalece em relação à vertente religiosa.

AV – O lado lúdico e cultural são necessários, mas as motivações das festas nem sempre são as mais corretas. Nem sempre, as pessoas que se juntam para uma festa têm mesma fé e visão festiva. Mas há uma coisa que as une: o desejo de conviver com os outros e de alegrar-se com as outras pessoas. Se repararmos, o Natal tem muita religiosidade popular à sua volta.

 

AE – Mas um Natal tem um momento preparatório – o Advento -, suponho que tal não acontece em relação às festas em honra do padroeiro?

AV – Antigamente havia…. Nalguns lados ainda existe o tríduo preparatório, mas é concorrido por pouca gente. Noutros, a festa da Imaculada Conceição é preparada por uma novena.

Prepara-se a festa mais do lado exterior (arranjos dos andores e outras coisas) do que do lado interior. O aspeto económico, cultural e lúdico prevalece.

 

AE – Os párocos estão sensibilizados para alterar a vertente preparatória da festa?

AV – Alguns estão. Outros menos. É sempre altura de muito cansaço porque se acrescenta algo àquilo que é o dia a dia. Dada a escassez do clero, há muita dificuldade em encontrar padres disponíveis para ajudar.

 

AE – A diocese de Beja tem poucos padres. Como conseguem conciliar a vida pastoral do dia a dia com estes «extras»?

AV – Alguns padres têm duas festas no mesmo dia. Às vezes, os párocos vizinhos dão uma ajuda, mas é impossível estar em simultâneo em dois lados. Após a Páscoa até meados de setembro há muitas festas em todo o Alentejo.

 

AE – E os cristãos conhecem a história do santo/a que celebram?

AV – Alguns dos santos têm séculos e nem sempre se sabe a vida deles. Mas há aspetos que passaram para a mentalidade do povo e sabem, sobretudo, do que é que eles são padroeiros. Sabem que a Santa Bárbara é padroeira dos mineiros, São Sebastião é das pestes… Às vezes, fazem-se sermões à volta da vida do padroeiro, só que no ambiente de festa exterior nem tudo se ouve e percebe…

 

AE – É fundamental a renovação pastoral para que os cristãos sejam mais adultos na fé.

AV – Neste repensar é preciso muito cuidado, sobretudo quando se mexe na religiosidade popular. Por vezes, as pessoas herdaram as tradições e não estão abertas à novidade. Dizem: «sempre foi assim e vai continuar assim».

Este processo exige muito diálogo e preparação. É fundamental evitar tocar em aspetos sensíveis ou, então, explicar e ver se a reação é positiva. Outras vezes deve-se permutar com outro aspeto que seja mais realista. Não se deve entrar em choque.

 

AE – Não considera que o evangelho, muitas vezes, é servido de «forma enlatada» e sem novidade?

AV – Na pastoral temos de usar os meios todos, mesmo os meios interativos. Confesso que faço muita coisa através do email porque é mais personalizado. Através deles faço formação e catequização.

 

AE – No entanto é urgente educar…

AV – Às vezes acontecem problemas devido à educação rápida. Isto é um processo lento, visto que são tradições que cristalizaram durante séculos. Muitas vezes, as razões dos padres ainda não se tornaram as razões das pessoas. Faz parte da sensibilidade profunda religiosa das pessoas.

 

AE – A dimensão sacrificial ainda existe no povo?

AV – Basta ver Fátima.

 

AE – Mas a realidade de Fátima é diferente

AV – Nas procissões também temos pessoas que fazem promessas. Ainda existe o aspeto de sacrifício, mas nota-se que, atualmente, a devoção e religiosidade das pessoas não é tão profunda. Quando entregam esmolas ou velas é porque acharam que foi por intercessão do santo que se evitou tal mal ou curou-se tal doença.

 

AE – Nos momentos de crises, como o vivido atualmente, as promessas aumentam?

AV – Se a crise atinge a pessoa e a família, as promessas aumentam. Tentam superar a crise através de promessas ou novenas.

 

AE – A região do Alentejo tem algum santo predileto?

AV – É Nossa Senhora com os mais diferentes títulos: Conceição, Guadalupe, Cola, Penha, Graça e Carmo

 

AE – Os alentejanos são mais marianos do que cristológicos?

AV – Maria está mais difundida no Alentejo, mas também existem muitas festas em honra do Santíssimo Sacramento. Na cidade de Beja, o «Corpo de Deus» é a festa por excelência. Nossa Senhora é aquela que tem mais festas nas paróquias. No entanto, no mês de maio e outubro introduziu-se muito a devoção a Nossa Senhora de Fátima.

 

AE – Quando se realizam as festas as igrejas estão cheias e nos outros domingos?

AV – No Alentejo, as mulheres e crianças vão à igreja. Os homens ficam cá fora à espera da procissão. Por isso, não diria que no dia da festa tem muito mais gente na igreja. Os homens, quando as festas têm a parte folclórica, estão ocupados na organização.

 

AE – Essa é a dimensão do voluntariado. A igreja tem sensibilizado para esta área?

AV – As festas trabalham muito com o voluntariado: limpar, organizar e adornar.

 

AE – A vivência da religiosidade popular não é o lado infantilizado da fé?

AV – Não diria que é infantil, mas uma expressão – para alguns um pouco infantil ainda – adulta da fé. As pessoas saem do espaço litúrgico (do templo) e vão para a rua. Sabemos que em meios adversos as pessoas são apontadas.

 

AE – Ainda existe esse estigma?

AV – No Alentejo sim. Em algumas partes criou-se a mentalidade que o homem não deve ir à igreja. Muitas vezes afirmo: “o alentejano fora do Alentejo é um cristão muito empenhado”. Basta ver na grande Lisboa e nas migrações, o empenho dos alentejanos.

 

AE – Têm medo de professar a sua fé?

AV – As pessoas agem por motivações e pressões sociais. Evitamos fazer determinadas coisas quando somos marginalizados. Mas aqueles que participam mostram que são adultos e não têm medo de enfrentar as críticas.

 

AE – Quando se realiza a festa, as localidades recebem os «filhos da terra» que migraram.

AV – Normalmente, os conterrâneos voltam a terra natal. Muitos, fazem questão de marcar as férias na altura das festas da sua terra. Outros marcam casamentos e batismos para esse tempo. Como estão ausentes muito tempo do ano, não recebem a catequização. Às vezes, «armam» conflitos porque não acompanharam o processo.

 

AE – Nesses casos, o bispo desempenha um papel moderador.

AV – Recebo cartas, telefonemas e delegações. Em primeiro lugar, tenho de ouvir o padre e aconselhá-lo. Depois tento que as pessoas resolvam o problema em paz. Às vezes, os padres têm de ceder para evitar conflitos de maior. É um trabalho que temos de fazer ao longo do ano: formar e informar as pessoas sobre o evangelho.

 

Repensar a Pastoral

AE – O documento «Repensar juntos a Pastoral da Igreja em Portugal» foi publicado há cerca de um ano. Já existem diretivas após este tempo de reflexão?

AV – As dioceses e grupos enviaram as respostas sobre as luzes e sombras pastorais até ao final de março. Na diocese de Beja – apesar de ser dispersa – convidámos os colaboradores de todas as paróquias (não apenas o conselho pastoral) para ouvir as suas propostas.

 

AE – O que retiraram desses trabalhos?

AV – Em primeiro lugar, que a igreja tem de ouvir mais os leigos. Não pode ser o bispo a ditar ou o seu conselho presbiteral, mas coordenar. Temos de ouvir e assumir muita coisa porque Deus fala por todos.

 

AE – Essa é uma sombra que poderá tornar-se luz brevemente?

AV – Poderá tornar-se luz se mudarmos a nossa prática pastoral. Os leigos não estão sempre disponíveis para tudo, mas temos alguns que colaboram e estão muito dispostos desde que sejam escutados.

 

AE – Que não sejam considerados cristãos de segunda?

AV – De segunda ou «paus mandados». O padre não pode ser o «faz tudo». Mais vale fazer pouco, mas com os outros do que ir sozinho. Quando as pessoas ficam para trás, não se constrói igreja. A comunidade constrói-se com as pessoas. A igreja tem de agir de maneira sinodal.

Os métodos de evangelização têm de mudar muito. Não podem ser só os tradicionais de debitar um catecismo ou uma homilia. Bento XVI falou-nos no «dinamismo dos movimentos». Se calhar temos de apostar no dinamismo da família, dos pequenos grupos e dos serviços.

Por outro lado, temos de ultrapassar o juridismo e burocracia geográfica paroquial porque, atualmente, existe uma grande mobilidade humana.

 

AE – Perante estes dados, conclui-se que a igreja tem mesmo de repensar a sua pastoral?

AV – Está na «Hora H». O II Concílio do Vaticano alertou-nos, mas essa renovação ficou muito no aspeto litúrgico. A vida cristã não é apenas o aspeto litúrgico. No acompanhamento da fé dos adultos e da família fizemos pouco.

LFS

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