1. Este é um daqueles momentos em que ficamos (mesmo) sem palavras.
E ainda que as houvesse, mais valia que as guardássemos para nós.
Que palavras haverá para descrever um horror desta magnitude? Que palavras sobrarão para amenizar uma tragédia desta dimensão?
A morte pertence ao silêncio. Aliás, nas línguas semitas, as letras com que se escreve palavra são as mesmas com que se escreve peste: d, b, r.
Isto não deixa de ter um significado acrescido nos tempos que correm. Não são, tantas vezes, as palavras que empestam a nossa convivência?
Pode a morte ser dita? Como falar do que aconteceu no Haiti?
Bastaram 35 segundos para ceifar dezenas (quiçá centenas) de milhar de vidas!
2. Quando a terra treme, o coração estremece. São bem frágeis, de facto, os tentáculos que nos ligam à terra e nos prendem à vida.
Muitos projectos podem ser feitos. Muitos sonhos podem ser sonhados. Basta que a terra abale e tudo cai. Literalmente.
É bem pertinente o que disse Fernanda Winter: «Deus perdoa sempre, o Homem perdoa às vezes, a natureza não perdoa nunca».
E não selecciona ninguém. Devora grandes e pequenos. Engole idosos e crianças. É cruel o seu império. É sumamente impiedosa a sua eficácia.
Mas é nestas alturas que mais vêm ao de cima as desigualdades que nos envolvem.
Fazemos todos parte da mesma (e única) humanidade, mas, nesta aldeia em que se transformou o mundo, parece que há homens mais iguais que outros.
Já tem havido terramotos com maior intensidade que o ocorrido no Haiti sem qualquer vítima.
Como é óbvio, um país pobre e desgovernado, com construções vulneráveis, fica muito mais exposto.
3. Muita gente, em ocasiões como esta, volta-se — e, por vezes, revolta-se — contra Deus.
Porque é que Deus não intervém? Porque é que não avisa? Porque é que consente tudo isto?
Nem os que estavam a rezar escaparam. A catedral de Port-au-Prince foi devassada tendo morrido quantos lá se encontravam.
Também não escapou o bispo da diocese. Como não escaparam os sacerdotes, os religiosos, os seminaristas e tantos leigos.
É nestas alturas que mais dói o silêncio de Deus. Apetece-nos interpelar com S. Gregório de Nazianzo: «Oh Tu, o além de tudo, não será tudo o que se pode dizer de Ti?»
Não nos esqueçamos que o próprio Papa deu voz a todo este clamor numa pungente alocução que proferiu em Auschwitz.
«Porque é que Deus Se silencia? Como pode tolerar o excesso de destruição e o triunfo do mal? Desperta, Senhor, porque dormes? Desperta e não nos rejeites para sempre! Porque escondes a Tua face e Te esqueces da nossa miséria e tribulação?».
Como sucedeu na segunda guerra mundial, também no drama do Haiti é a humanidade que atravessa um espesso «vale escuro».
4. Onde esteve Deus em Auschwitz? Onde estava Deus no Haiti?
Deus quanto mais Se revela mais Se esconde e quanto mais Se esconde mais Se revela.
Apesar da obscuridade que, muitas vezes, adorna a Sua presença, eu vi Deus no Haiti.
Vi Deus no Haiti, perdido nas ruas, a embalar as crianças, a afagar o pranto, a acariciar as feridas, a receber os mortos.
Vi Deus no Haiti a tentar semear um sorriso em tantos rostos magoados de dor e regados de lágrimas.
Vi Deus no Haiti. Vi Deus a correr. Vi Deus a chorar. Vi Deus a soluçar. Vi Deus de joelhos, a sangrar, entre os escombros.
Deus não precisa de sofrer. Ele sofre porque quer, porque ama. Ele não sofre por carência de ser. Ele sofre por superabundância de ser. Ele pode tanto que, por amor, pode fazer Seu o nosso sofrimento, a nossa penúria.
Dói muito estar no fundo do poço. Mas, como afirmou Etty Hillesum, na humanidade, «há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus, soterrado. Então é preciso desenterrá-Lo».
Deus também ficou soterrado no Haiti. Desenterremos Deus com a nossa oração, a nossa solidariedade, o nosso amor.
Sejamos humanos uns para com os outros enquanto podemos. Pois não sabemos por quanto tempo podemos.
O amor não pode esperar!
João António Pinheiro Teixeira
padre