por Zulmiro Sarmento, em 10.06.09
por Frei Bento Domingues
Com Com o evoluir da sociedade, será normal que, na graduação do poder, as mulheres venham a ocupar todos os lugares.
1. Num debate televisivo sobre o sacerdócio feminino nas diversas religiões, deparei com o desenho de uma pirâmide para mostrar a situação das mulheres na Igreja Católica. No cimo dessa pirâmide, vinha o Papa, abaixo, os cardeais, mais abaixo ainda, os bispos, seguiam-se, na descida, os padres e, na base da pirâmide, vinham os diáconos. Ali, não havia mulheres. Estava tudo no masculino.
O que mais me espantava, nesse desenho, não era a evidente exclusão das mulheres desses lugares de poder. Estava-se a debater, de forma comparativa, o papel das mulheres na direcção das diferentes religiões, a nível global e local. Não vem ao caso, agora, apreciar o que se passa nas outras religiões. No campo cristão, há Igrejas nas quais a pirâmide do poder já conta com presenças femininas e, com o evoluir da sociedade, será normal que, na graduação do poder, as mulheres venham a ocupar todos os lugares. Há quem diga que tempo virá, no qual será preciso, nessas Igrejas, como nos partidos, parlamentos e governos, lutar por uma quota de homens.
O insuportável, naquele gráfico, era a tentativa de identificar a Igreja Católica, Apostólica, Romana com a Hierarquia. Os esforços desenvolvidos, sobretudo ao longo do século XX, para acabar com essa identificação - uma das maiores reconquistas do Concílio Vaticano II (1962-1965) - parecia que não tinham servido para nada.
Depois, mais a frio, pensei: não há razões especiais para me irritar. Aquela pirâmide é, de facto, a representação que continua a vigorar no imaginário de católicos e não católicos. Quando se fala, bem ou mal, da Igreja - e não só nos meios de comunicação social -, pensa-se no que dizem e fazem o Papa, os bispos e os padres. Quem pensará que a Igreja é, em primeiro lugar, constituída pela rede mundial de comunidades cristãs mais densas ou mais raras, segundo os países e continentes? Compreendi, então, que já Santo Agostinho (354-430) tivesse sentido a necessidade de dizer: "para vós sou bispo, convosco sou cristão". A sua glória não estava em ser bispo, mas em ser cristão: alguém que a graça do Espírito Santo transformara num discípulo de Cristo.
Porque será que, mesmo depois de toda a ênfase posta pela Lumen Gentium do Vaticano II, naquilo que é comum a todos os cristãos (n.º 10) e de ter destacado que os vários ministérios da Igreja se destinam ao bem de todo o corpo (n.º 18), se continue a confundir a Igreja com a Hierarquia e esta transformada numa hierarquia sacerdotal?
2. A linguagem do sacerdócio nunca é utilizada, no Novo Testamento, para designar os ministérios ou serviços da comunidade. A usada é de carácter funcional para fazer ressaltar a sua diferença absoluta em relação ao sacerdócio veterotestamentário ou gentio. Por isso, os ministros das comunidades são designados como presbíteros (anciãos), bispos (vigilantes), pastores, presidentes, chefes, dirigentes, guias, etc.. A linguagem sacerdotal é aplicada só a Cristo, único mediador (Carta aos Hebreus), e, de forma colectiva, ao povo cristão, não para oferecer a Deus sacrifícios "materiais", mas a própria vida (Rm 12; 1Pd 2, 4-10).
A partir dos finais do século II, voltou-se a utilizar, no cristianismo, a linguagem veterotestamentária para designar os seus ministros, mas num sentido analógico, metafórico ou, mais exactamente, tipológico. Depois, de forma variável, desenvolveu-se a terminologia sacerdotal que vai sacralizar os ministérios cristãos à maneira do Antigo Testamento, como tendo parte no sagrado, no divino. Como diz o jesuíta Joseph Famerée, na época moderna, a partir da corrente espiritual francesa de Pierre de Bérulle (1575-1629), far-se-á do padre um "outro Cristo" como se, pela sua ordenação, tivesse sido ontologicamente transformado num ser novo. Nesta identificação, é "transubstanciado" num alter Christus, num mediador necessário entre Deus-Cristo e os humanos.
Esta visão sacerdotalizante e ontológica do padre é, para o autor citado, na linha de muitos outros, inaceitável (1).
3. Dir-se-á que, no referido documento conciliar, "o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, apesar de diferirem entre si essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se um para o outro mutuamente; de facto, ambos participam, cada qual a seu modo, do sacerdócio único de Cristo". Ao dizer "sacerdócio comum", poderia supor-se que a diferença essencial corre a favor do chamado "sacerdócio ministerial ou hierárquico". Erro grosseiro. Como dizia Tomás de Aquino, o que há de mais importante, de mais decisivo, no cristianismo, é precisamente o acolhimento da graça do Espírito Santo, anterior a qualquer forma de ministério ordenado. É ela que transforma a vida.
Na altura do Concílio, não foi possível chegar a acordo para que "sacerdócio" ficasse como próprio de Cristo e de todos os fiéis, como vem no Novo Testamento. O consenso possível foi o da justaposição de duas Escolas.
Quem pode o mais também pode o menos, isto é, se as mulheres podem ser cristãs, também poderão ser chamadas, ao mesmo título que os homens, a exercer qualquer ministério ordenado ou não, dentro da Igreja. Nem Deus nem Cristo fazem acepção de pessoas.
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(1) Sacerdote et eucharistie chez Léon Dehon, in La Vie Spirituelle, n.º 782, Maio 2009, p. 240-241.
[FONTE: Público, 31 de Maio]
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