Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
O cristianismo só pode viver saudavelmente a partir de um presente criador. Quando enfatiza o passado, afoga-se no depósito da Fé ou na indústria da conserva dogmática. Quando foge para o Paraíso, perde a terra e o céu. Um dos dramas do catolicismo na época moderna foi sintetizado numa expressão luminosa de Yves Congar: a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião. Tinha-se perdido o sentido da incarnação contínua do divino no humano.
O que este Papa tem de tão especial é a capacidade de nos mostrar que não adianta desviar os olhos da complexidade do mundo actual, em qualquer latitude. Não é para nos resignarmos! O que lhe importa, e que nos deve interessar, é a resposta a esta pergunta: como poderemos transformar esta situação num mundo melhor? É a exigência de lucidez para o nosso presente que o impele a ir beber a todas as fontes e momentos da tradição cristã, sem nunca esquecer o contributo das diversas sabedorias, religiosas ou seculares, do presente e do passado, sem ficar prisioneiro de nenhuma.
Esta atitude na acção pastoral, apesar de todas as correcções que lhe possam introduzir, é um desastre.
Quando, no catecismo, se pergunta o que nos faz discípulos de Cristo, responde-se que é o Baptismo. Resposta certa, mas que não evita o inconveniente da ideia de um automatismo. Fez-se a cerimónia, está baptizado. A pergunta mais fecunda é um pouco diferente. Como nos tornamos cristãos? Uma pessoa não se torna subitamente cristã: é um processo.
O autor referido confessa que quantas mais pessoas acompanha na preparação para o Baptismo e quantas mais baptiza, mais se apercebe que o baptismo é um sacramentodinâmico. Tal como o Matrimónio e a Ordem, o Baptismo é um acontecimento que não fica completo no momento em que é conferido, mas que tem efeito de permear o futuro de uma vida, se consentirmos activamente nesse processo. É um fermento que precisa de ser levedado.
Se T. Halík já tinha falado da ressurreição contínua, ao referir-se à vitória de Jesus sobre a morte, pode, agora, falar dos sacramentos como acção contínua. Deus não está ligado aos Sacramentos. Está presente na sede espiritual das pessoas, seguindo um processo complexo, muitas vezes como uma peça de teatro fascinante, com muitos actos, com inesperadas viragens no enredo, além de intervalos e catarses.
A obra de Isidro Lamelas[iii] é indispensável para beber nas melhores fontes. Fazia muita falta dispor dos verdadeiros clássicos do cristianismo, traduzido para português das línguas originais. Bem-haja!
A investigação só atrapalha a preguiça ou o medo. É curioso que ao completar 100 anos das chamadas Aparições de Fátima, o contributo das ciências humanas, das experiências pastorais, das narrativas testemunhadas, dos percursos espirituais dos peregrinos, da reflexão teológica sejam de uma magreza de escrita muito estranha. A maior peregrinação do Ocidente confia no seguinte: cada peregrino tem a sua Fátima e ninguém tem nada com isso. A hierarquia apenas lhe dá um cenário litúrgico, mas o colectivo, como colectivo só se reconhece na Procissão das Velas e no Adeus. Que dizer da devoção à imagem de N. Senhora de Fátima obrigada a ser ainda mais peregrina do que os peregrinos?
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 15.05.2016
Ninguém dispõe da fórmula exacta para realizar o mundo de novos céus e nova terra, sem lágrimas de dor ou de luto . Ao sair da Missa onde foi anunciado esse sonho antigo, dizia-me um amigo: nos anos 50 do século passado, o P. Lombardi e o P. Vieira Pinto, contentavam-se com modestas propostas para um “mundo melhor” e nem aí chegamos! A própria União Europeia perdeu a pouca alma que tinha, desistiu da ousadia e caiu na burocracia.
Sem condições para comentar a significação do papel dos sonhos de uma “terra sem males”, comum a várias culturas arcaicas – com frutos amargos quando se tentou convertê-los em “programas científicos” de ordem social e política –, observei apenas que também a opção pelos “paraísos fiscais” talvez não seja a festa da ascensão aos céus da população mundial. Por aí ficamos.
No Domingo passado, transcrevi uma breve passagem da extraordinária Exortação, A Alegria do Amor, na qual o Papa Francisco se referia a duas lógicas que percorrem toda a história da Igreja, desde o concílio de Jerusalém até hoje: marginalizar e reintegrar. Jesus, morto por uma coligação táctica, foi excluído de Israel e do Império romano .
A lógica que Bergoglio deseja adoptar é, sem dúvida, a da reintegração. Quando é possível. Perante situações escandalosas que envenenaram o serviço que a Cúria vaticana deve prestar à Igreja – os escândalos bancários, a vida faustosa de alguns cardeais e a situação de eclesiásticos pedófilos – impõem-lhe a destruição dessa falsa paz alimentada por corruptos. A justiça que é devida às vítimas desse nojo não é matéria de negociação. As manobras dos lobistas, desde há muito estabelecidas, não são fáceis de neutralizar, embora o Papa afirme que não desiste da linha de actuação anunciada, desde o começo. Ele não é omnipotente. Uma verdadeira reforma não se decreta nem se consegue apenas com a mudança de alguns nomes. Por vezes, quando se pensa que se conseguiu um bom colaborador encontrou-se um judas.
Os obstáculos à sua lógica de reintegração revestem-se, muitas vezes, de razões pseudo dogmáticas e de doutrinas ditas irreformáveis, sobretudo no tocante aos ministérios ordenados, à moral sexual, à situação da Mulher na Igreja e às chamadas situações familiares irregulares.
O Papa abriu um debate que, por ele, teria sido muito mais fecundo se a consulta às dioceses tivesse sido mais ampla, mais aprofundada e com menos boicotes. Mesmo assim, não se deixou intimidar pelas manobras que ameaçavam rupturas irreparáveis. Pelo contrário, geriu, com muita firmeza, os conflitos, mantendo aberto o diálogo entre todas as tendências, para que todos pudessem aprender com todos. Fez do diálogo e da firmeza o seu comportamento.
O livro admirável dos Actos dos Apóstolos – uma obra sem epílogo, abrindo apenas o futuro – oscila entre uma imagem idílica da comunidade cristã dos começos e a do conflito entre hebreus e helenistas , apresentando, depois, uma suave abertura aos gentios , muito diferente da relatada por Paulo . O seu projecto não esconde a lógica das tentativas de marginalização, mas a opção do seu projecto literário é marcar a vitória da lógica da integração, mostrando os resultados da boa gestão dos conflitos.
Hoje, celebra-se a festa da Ascensão do Senhor. S. Lucas já tinha, no primeiro volume da sua obra, tocado nesta metáfora de fim de carreira . Agora, nos Actos dos Apóstolos, desenvolve o cenário com mais cuidado. Tem de resolver duas situações. A primeira é a da ânsia de poder que continua a dominar os discípulos de Jesus: o único poder que vos garanto é o do Espírito Santo que vos vai meter em trabalhos até aos confins da terra. A segunda é a do medo: preparai-vos para acolher essa divina energia e não fiqueis pasmados a olhar para o céu. Há muito que fazer .
Igrejas sem conflitos? Nem ontem nem hoje nem amanhã. A grande sabedoria consiste em não os negar nem os acirrar. As comunidades católicas não deveriam dispensar bons gestores de conflitos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 08.05.2016