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EVANGELHO SÓ HÁ UM, O DE CRISTO E MAIS NENHUM (Nono Domingo do Tempo Comum)

por Zulmiro Sarmento, em 30.05.16
 

A. Mudar é tão belo, mas (também) tão difícil

  1. Sabemos todos que, para melhorar, é preciso mudar. Mas, no fundo, estamos sempre à espera de que as coisas mudem fora de nós. Afinal, mudar dentro de nós custa mais do que pensamos. Daí que estejamos sempre a clamar por mudança e, ao mesmo tempo, a resistir à mudança.

Esquecemos que há uma única mudança que depende de nós: é a mudança dentro de nós. Podemos — e devemos — contribuir para a mudança fora de nós. Mas essa já não depende só de nós. A mudança que depende de nós é a mudança que estivermos dispostos a fazer dentro de nós.

 

  1. É por tudo isto que Jesus insiste na mudança dentro de nós. É por isso que Jesus insiste na conversão. A conversão não é feita só de mudanças na vida. A verdadeira conversão é feita de uma (permanente) mudança de vida. Não basta, pois, mudar o exterior. É preciso mudar tudo: o exterior e o interior.

A mudança do exterior tem de começar pela mudança no interior. A mudança que se há-de ver por fora tem de começar por dentro. Daí que Jesus censure os Seus contemporâneos por apostarem tudo nas aparências exteriores. Para eles, a aparência contava mais que a essência. Jesus, porém, não Se revê nesta conduta e lamenta: «Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim»(Mc 7, 6).

 

B. É pelo interior que tem de começar a mudança

 

3. Jesus quer que nos transformemos a partir do fundo, a partir de dentro, a partir do nosso interior. Desde logo, porque é no nosso interior que está a raiz dos nossos problemas: «Não há nada fora do homem que, ao entrar nele, o possa tornar impuro» (Mc 7, 14). É do interior do homem que «saem os pensamentos perversos, as imoralidades, os roubos, os assassínios, os adultérios, a cobiça, as más acções, a má fé, a devassidão, o orgulho e a loucura» (Mc 7, 21-22).

Assim sendo, é pelo interior que temos de começar a conversão. Que adianta um exterior bem apresentado se o interior permanece descuidado?

 

  1. Fica, pois, bem claro que Jesus não quer só uma mudança externa, feita de coisas repetidas apenas por hábito e, muitas vezes, sem sentido (cf. Mc 7, 7). Jesus quer a mudança total. Daí que, logo no início da Sua missão, Ele lance este pregão: «Arrependei-vos e acreditai no Evangelho» (Mc 1, 15).

O apelo é dirigido a todos e, consequentemente, a proposta é enviada a cada um. Todos têm de se arrepender, todos têm de se converter. Cada um encontra atitudes de que tem de se arrepender. Cada um encontra, por conseguinte, motivos para mudar.

 

C. A tentação de alterar o Evangelho

 

5. Trata-se de um desafio de máxima exigência, mas também de supremo encanto. Não há dúvida de que é muito difícil mudar de vida. Mas também não há nada mais belo do que mudar de vida.

Acontece que, muitas vezes, passa por nós a tentação dos cristãos da Galácia que S. Paulo denuncia na carta que lhes escreveu. Trata-se da tentação de passar para um Evangelho diferente (cf. Gál 1, 6) ou, o que é pior, da tentação de alterar o próprio Evangelho (cf. Gál 1, 7).

 

  1. Perante isto, o Apóstolo usa de uma linguagem muito contundente e inequivocamente clara. No primeiro caso, diz que «não há outro Evangelho» (Gál 1, 7) além do Evangelho de Jesus Cristo. Para quem estiver envolvido no segundo caso, vai ao ponto de cominar uma maldição: «Se alguém […] vos vier anunciar um evangelho diferente daquele nós vos anunciamos, venha sobre ele a maldição» (Gál 1, 7).

É uma linguagem invulgarmente dura, o que significa que estamos perante um fortíssimo agravo. Tanto assim que, logo a seguir, São Paulo repete o que disse: «Se alguém vos anunciar um evangelho diferente daquele que recebestes, venha sobre ele a maldição» (Gál 1, 9).

 

D. Nós é que temos de mudar (não é o Evangelho)

 

7. De facto, estas são as duas coisas mais graves que podem acontecer: deixar o Evangelho ou alterar o Evangelho. Mas alterar o Evangelho ainda é pior do que deixar o Evangelho. Mas não será que esta tentação nos passa, tantas vezes, pela cabeça? Eis, portanto, um forte tópico para o nosso discernimento. Não é o Evangelho que tem de mudar, nós é que temos de mudar em função do Evangelho.

É preciso ter muito cuidado com aquilo que dizemos e com aquilo que fazemos. Será que, nas nossas palavras e nos nossos actos, estamos a apresentar o Evangelho ou não estaremos, muitas vezes, a (pretender) alterar o Evangelho? Tenhamos sempre presente que Evangelho só há um: o de Cristo e mais nenhum.

 

  1. A nenhum de nós é lícito cortar, esbater ou acrescentar seja o que for ao Evangelho de Jesus transmitido pelos Apóstolos. Enquanto cristãos, não agimos em nome próprio, mas no nome de Jesus. É o Evangelho de Jesus que devemos apresentar: na sua inteireza, na sua radicalidade e na sua exigência. Importa não esquecer que a integridade do Evangelho combina a máxima exigência com a máxima bondade. O Evangelho exige muito porque está disposto a dar tudo.

Não somos nós — nem os nossos tempos — que funcionam como critério para o Evangelho. O Evangelho é que desponta como critério para nós. Não é o Evangelho que tem de se adequar à nossa vida. A nossa vida é que tem de se adequar ao Evangelho. A esta luz, o Evangelho não pode ser mudado. A nossa vida é que tem de mudar segundo o Evangelho. Não é a nossa vontade que tem de ser feita. É, como diz o Evangelho, a vontade de Deus que tem de ser realizada: «Seja feita a Vossa vontade» (Mt 6, 10).

 

E. Que a nossa vontade seja fazer — sempre — a Sua vontade

 

9. Só quando procuramos fazer a vontade de Deus é que a nossa vida faz sentido. E só quando fazemos a vontade de Deus é que nos podemos considerar crentes e cristãos. Ninguém se pode imaginar cristão à sua maneira. Aliás, esta expressão encerra logo uma contradição. É que cristão remete logo para Cristo; cristão vem de Cristo; cristão vai para Cristo. Só podemos ser cristãos procurando ser como Cristo.

Alguém dizia há tempos, na televisão, que «esta não era a sua igreja». Ouvi, registei e pasmei. Pasmei por causa do ar de espanto de quem falava. De facto, a Igreja é de Cristo. Em relação à Igreja, Cristo usa o possessivo: «Minha Igreja» (Mt 16, 18). A Igreja é d’Ele, é de Cristo. Pertencer à Igreja significa — e implica — pertencer a Cristo. De resto, São Paulo, nesta mesma Carta aos Gálatas, percebeu isso muito bem: «Não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim» (Gál 2, 20). Se algum problema afecta a Igreja é o facto de ela, por vezes, apresentar mais as nossas marcas do que as marcas de Cristo.

 

  1. A Igreja está — e tem de estar cada vez mais — voltada para o homem, mas não pode estar centrada nos critérios dos homens. A Igreja não é «humanocentrada», mas «teocentrada». Ela não está centrada no homem, mas em Deus. E o mais reconfortante é sentir que, quanto mais a Igreja estiver centrada em Deus, tanto melhor ela servirá o homem. É que, em si mesmo, o homem é aspiração de Deus, paixão por Deus.

Voltando à linguagem de S. Paulo, não pretendamos agradar aos homens. Aos homens devemos servir e servir nem sempre passa por agradar. Às vezes, é quando menos se agrada que mais se serve. A nossa preocupação deve ser receber «a aprovação de Deus» (Gál 1, 10). Só assim seremos verdadeiramente «servos de Cristo» (Gál, 10) e servidores do Seu Evangelho. Não procuremos, por isso, ser aplaudidos nem louvados pelos homens. Que a nossa vontade seja apenas — e sempre — fazer a (santa) vontade de Deus!

Do blogue THEOSFERA

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publicado às 09:38

DEUS É ÚNICO, MAS NÃO É UM (Solenidade da Santíssima Trindade)

por Zulmiro Sarmento, em 23.05.16
 

A. Resta-nos o silêncio?

  1. Falar sobre o homem já é difícil. Como é que haveria de ser fácil falar sobre Deus? Como notou Karl Barth, «tudo o que diga sobre Deus é apenas um homem que o diz», pelo que fica infinitamente aquém do que pretende dizer. Nenhuma palavra humana é capaz de dizer Deus, nem a própria palavra «Deus». Como percebeu Karl Rahner, «tal palavra nada diz sobre o que significa».

É claro que, segundo o mesmo Rahner, de todas as palavras, esta será a menos imprópria para indicar Deus: é tão pequena que mal chega à língua, logo desaparece dos lábios. É, pois, uma palavra que cumpre a sua missão: convida mais a escutar do que a conversar, apelando mais à contemplação do que à discussão. Que, pela sua natureza, seria necessariamente interminável.

 

  1. Restar-nos-á então o silêncio? É certo que, sobre Deus, falamos sempre melhor quando nos calamos. Sobre Deus, calar é falar e falar é calar. Só que nem todo o silêncio será santo. O silêncio tanto pode significar disponibilidade para acolher como rejeição ou desinteresse.

É por isso que só nos calamos no fim do esforço de falarmos o mais adequadamente possível daquela realidade para a qual não há nenhuma palavra adequada. Só no fim é que o silêncio será digno e santo.

 

B. Jesus fala de Deus, mostrando-nos o Pai

 

3. Curiosamente, nem Jesus, o revelador de Deus, falou muito sobre Deus. Segundo os Evangelhos, a palavra «Deus» só por duas vezes aparece nos lábios de Jesus e, mesmo assim, para citar o Salmo 22: «Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonaste?»(Sal 22, 1). Sobre Deus, Jesus falou mais com a vida do que com os lábios. Como observou González-Faus, Jesus revela Deus não tanto «falando sobre Ele, mas deixando-O transparecer, praticando-O, pondo-O em acto nas circunstâncias concretas da Sua vida».

Jesus é sobretudo aquele que nos mostra Deus. É Ele quem, como assinala S. João, no-Lo dá a conhecer (cf. Jo 1, 18). Quando fala de Deus, Jesus fala do Pai, fala d’Ele como Filho e fala do Espírito Santo. Dir-se-ia que o Pai é o Silêncio, o Filho é a Palavra e o Espírito Santo é o Encontro. É na escuta do Espírito que encontramos a Palavra de Jesus que nos desvenda o que, para nós, permanece em silêncio. A Trindade não é asoma das pessoas, é o sumo que as sustenta.

 

  1. Para nós, Jesus é o portador da Santíssima Trindade. Percebe-se, pois, que, como alerta S. Gregório de Nazianzo, os cristãos, quando dizem Deus, digam Pai, Filho e Espírito Santo. A palavra «Trindade» não está na Bíblia; foi criada por Tertuliano para expressar o que está na Bíblia, mais propriamente no Novo Testamento. Antes de Tertuliano, Teófilo de Antioquia tinha proposto uma outra palavra semelhante: «trias».

Sobre Deus, o Novo Testamento recorda uma verdade e oferece-nos uma enorme novidade. Deus é único, mas, sendo único, não é um. S. Paulo lembra que «há um só Deus»(Ef 4, 6). Acontece que o único Deus, que é «Pai de todos»(Ef 4, 6), é um com o Filho (cf. Jo 10, 30) e com o Espírito Santo (cf. Jo 14, 26). Não são três deuses, mas três pessoas da única divindade. O Pai, o Filho e o Espírito Santo têm a mesma substância, como confessa o Concílio de Niceia, e como tal são «adorados e glorificados», segundo a formulação do Primeiro Concílio de Constantinopla. Por tal motivo não damos glória ao Pai nem damos mais glória ao Pai. Nós, cristãos, damos igual glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo.

 

C. Como dizer a Trindade?

 

5. Como entender tudo isto? Na Santíssima Trindade, como anotou Matias Schebeen, tocamos o mistério estrito («mysterium stricte dictum»). Seria mais fácil, como diz o Menino que apareceu a Sto. Agostinho, transportar toda a água do mar para um pequeno buraco na praia do que decifrar o mistério da Santíssima Trindade.

Apesar disso, os esforços prosseguiram. Apareceram não só os conceitos mais sofisticados, mas também as imagens mais criativas. Até à dança e ao riso se recorreu para explicar a Santíssima Trindade.

 

  1. Com o termo «pericorese», pretende-se indicar a igualdade e a diferença entre as pessoas divinas. Na sua raiz, «pericorese» significa «dança à volta de», designando uma mesma dança interpretada por diferentes pessoas de mãos dadas. Esta imagem serve para ilustrar que, na Santíssima Trindade, as pessoas são simultaneamente iguais e diferentes: iguais na divindade, diferentes como pessoas.

Entretanto, para vincar a eterna unidade na Trindade, o Mestre Eckhart socorre-se da analogia do riso: «O Pai ri para o Filho e o Filho ri para o Pai, e o riso gera prazer, e o prazer gera alegria, e a alegria gera amor».

 

D. Uma «explosão» anterior ao «big bang»

 

7. É, de facto, o amor que identifica Deus. É pelo amor que conseguiremos identificar Deus. Deus é amor no tempo, Deus é amor desde toda a eternidade (cf. 1Jo 4, 8.16). Deste modo, a única forma de conhecer Deus é amá-Lo. É por isso que, para falar de Deus, a razão não basta e as palavras não chegam. Acerca de Deus, só o amor é eloquente. Daí a conhecida máxima de Sto. Agostinho: «Se vês a caridade, vês a Trindade». Quem vive o amor, vive em Deus. Percebe-se, então, que o mesmo Sto. Agostinho tenha feito do amor a súmula da vida trinitária. Dizia ele que o Pai é o amante, o Filho é o amado e o Espírito Santo é o amor. O Espírito Santo é precisamente o «vínculo do amor» («vinculum amoris») que une o Pai e o Filho.

À luz do amor, percebe-se melhor por que Deus, embora único, não é um. Diria que, se Deus fosse um, seria a solidão; se Deus fosse dois, haveria a separação (um é diferenciado do outro) e a exclusão (um não é o outro); mas Deus é três. O três evita a solidão, supera a separação e ultrapassa a exclusão. A Trindade significa a abertura, o acolhimento, a comunhão.

 

  1. As diferenças não são factor de exclusão, são reforço da união. Na Santíssima Trindade, conjuga-se a máxima diferença com a máxima unidade. Ninguém é tão diferente como o Pai, o Filho e o Espírito Santo e ninguém é tão unido como o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É este amor que está na origem de tudo. Diria que, antes da explosão do «big bang», houve uma outra explosão que deu origem ao mundo: a «explosão» do amor trinitário de Deus.

Em Deus, o amor é tão forte que não cabe em si e, portanto, «explode» na criação. Tal como cada obra tem as marcas do seu autor, o mundo criado por Deus contém sobejas marcas do Criador. A esta luz, o mundo está cheio de «vestígios da Trindade» («vestigia Trinitatis»), a começar pelo homem, verdadeira «imagem da Trindade» («imago Trinitatis»). Sendo o homem imagem e semelhança de Deus (cf. Gén 1, 26) e sendo Deus uma trindade, então o homem é imagem e semelhança da Trindade. É por isso que a realização por excelência da imagem e semelhança de Deus está na família. Hans Urs von Balthasar reconheceu que «a família é a mais expressiva imago Trinitatis inscrita na criatura». A família humana é a grande imagem da família divina. Cada família humana deve procurar viver à imagem da família divina.

 

E. Nem pessoa sem comunidade nem comunidade sem pessoa

 

9. Por aqui se vê como, ao contrário do que dizia Immanuel Kant, não é indiferente que Deus seja um ou que Deus seja três. No fundo, o mistério da Santíssima Trindade é, afinal, um mistério muito concreto, muito prático. Ele instaura um modelo de humanidade onde não há superiores nem inferiores.

A Santíssima Trindade constitui a alternativa mais consistente quer às pulsões individualistas, quer às derivas massificantes. Numa existência à imagem da Trindade, nem a pessoa se fecha à comunidade nem a comunidade se sobrepõe à pessoa. Numa existência à imagem da Trindade, cada pessoa está aberta à comunidade e a comunidade nunca pode deixar de estar aberta a cada pessoa.

 

  1. No mundo, a Igreja é chamada a ser o grande sinal da Trindade. Como proclama o Vaticano II citando S. Cipriano, a Igreja é o «povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo». Para a Igreja, a Trindade não é um mero termo de comparação, mas uma causa e uma fonte. Jesus já tinha pedido ao Pai: «Que (todos) sejam um,como Nós»(Jo 17, 11; cf. 18.21). Segundo os estudiosos, este «como» não é comparativo, mas causal. Ou seja, porque Deus é unidade, a Igreja de Deus tem de procurar viver em unidade.

É por isso que, seguindo a vontade expressa de Jesus, somos baptizados «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo»(Mt 28, 19). É por isso que começamos — e terminamos — cada Eucaristia «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo». Estamos, assim, tatuados para sempre pela unidade divina. Honremos esta unidade, crescendo na comunhão e fortalecendo a fraternidade. A melhor maneira de mostrar que somos filhos de Deus é respeitarmo-nos como irmãos!

Do blogue THEOSFERA

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publicado às 09:42

O ESPIRITO DA TEOLOGIA

por Zulmiro Sarmento, em 18.05.16

 

  1.     O que verdadeiramente custa é o presente. Quando o presente é difícil de enfrentar, refugiamo-nos no passado, no culto da memória, ou sonhamos com um futuro consolador. Na celebração do Pentecostes, passamos de uma Igreja apavorada, com sonhos de um império que nunca mais chegava, para um presente que varria todos os medos e impulsionava os mais assustados a percorrer os caminhos do mundo. Um impetuoso vendaval desatou todas as cadeias. Apareceram umas línguas de fogo que encheram os discípulos de uma corajosa sabedoria: tornara-se possível entender que Deus estava mesmo do lado das opções de Jesus Cristo. Doravante, a causa do Evangelho podia ser de plena actualidade, em qualquer língua, povo ou cultura. O futuro começava no presente. O próprio desentendimento entre hebreus e helenistas anunciava que a alegria do Evangelho não podia ser propriedade privada de nenhum povo ou cultura. Não é a globalização que arrasa as diferenças: cada um os ouvia na sua própria língua[i].

O cristianismo só pode viver saudavelmente a partir de um presente criador. Quando enfatiza o passado, afoga-se no depósito da Fé ou na indústria da conserva dogmática. Quando foge para o Paraíso, perde a terra e o céu. Um dos dramas do catolicismo na época moderna foi sintetizado numa expressão luminosa de Yves Congar: a uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião. Tinha-se perdido o sentido da incarnação contínua do divino no humano.

O que este Papa tem de tão especial é a capacidade de nos mostrar que não adianta desviar os olhos da complexidade do mundo actual, em qualquer latitude. Não é para nos resignarmos! O que lhe importa, e que nos deve interessar, é a resposta a esta pergunta: como poderemos transformar esta situação num mundo melhor? É a exigência de lucidez para o nosso presente que o impele a ir beber a todas as fontes e momentos da tradição cristã, sem nunca esquecer o contributo das diversas sabedorias, religiosas ou seculares, do presente e do passado, sem ficar prisioneiro de nenhuma.

  1. A concepção dinâmica do cristianismo, comoressurreição contínua, foi aplicada por Tomáš Halík[ii] à própria celebração dos sacramentos. É importante para não se cair em automatismos mecânicos ou místicos. Tínhamos um catolicismo de baptizados com mais ou menos sacramentos e assunto arrumado.

Esta atitude na acção pastoral, apesar de todas as correcções que lhe possam introduzir, é um desastre.

Quando, no catecismo, se pergunta o que nos faz discípulos de Cristo, responde-se que é o Baptismo. Resposta certa, mas que não evita o inconveniente da ideia de um automatismo. Fez-se a cerimónia, está baptizado. A pergunta mais fecunda é um pouco diferente. Como nos tornamos cristãos? Uma pessoa não se torna subitamente cristã: é um processo.

O autor referido confessa que quantas mais pessoas acompanha na preparação para o Baptismo e quantas mais baptiza, mais se apercebe que o baptismo é um sacramentodinâmico. Tal como o Matrimónio e a Ordem, o Baptismo é um acontecimento que não fica completo no momento em que é conferido, mas que tem efeito de permear o futuro de uma vida, se consentirmos activamente nesse processo. É um fermento que precisa de ser levedado.

Se T. Halík já tinha falado da ressurreição contínua, ao referir-se à vitória de Jesus sobre a morte, pode, agora, falar dos sacramentos como acção contínua. Deus não está ligado aos Sacramentos. Está presente na sede espiritual das pessoas, seguindo um processo complexo, muitas vezes como uma peça de teatro fascinante, com muitos actos, com inesperadas viragens no enredo, além de intervalos e catarses.

  1. A actualidade cristã, para conservar a sua frescura, tem de regressar às fontes, mas não pode ser um trabalho de pura arqueologia ou de visita às bibliotecas patrísticas. Seria perder-se no passado. A viagem de ir e vir das fontes para a actualidade e da actualidade para as fontes é a única que nos pode guiar para abrir janelas para o futuro.

A obra de Isidro Lamelas[iii] é indispensável para beber nas melhores fontes. Fazia muita falta dispor dos verdadeiros clássicos do cristianismo, traduzido para português das línguas originais. Bem-haja!

A investigação só atrapalha a preguiça ou o medo. É curioso que ao completar 100 anos das chamadas Aparições de Fátima, o contributo das ciências humanas, das experiências pastorais, das narrativas testemunhadas, dos percursos espirituais dos peregrinos, da reflexão teológica sejam de uma magreza de escrita muito estranha. A maior peregrinação do Ocidente confia no seguinte: cada peregrino tem a sua Fátima e ninguém tem nada com isso. A hierarquia apenas lhe dá um cenário litúrgico, mas o colectivo, como colectivo só se reconhece na Procissão das Velas e no Adeus. Que dizer da devoção à imagem de N. Senhora de Fátima obrigada a ser ainda mais peregrina do que os peregrinos?

Frei Bento Domingues, O.P.

        in Público 15.05.2016

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publicado às 13:24

UMA IGREJA SEM CONFLITOS?

por Zulmiro Sarmento, em 18.05.16

 

  1. Igreja sem conflitos? Nem hoje nem ontem nem amanhã. A própria evocação dos seus mortos mais célebres serve, muitas vezes, para levantar conflitos entre os vivos.

Ninguém dispõe da fórmula exacta para realizar o mundo de novos céus e nova terra, sem lágrimas de dor ou de luto . Ao sair da Missa onde foi anunciado esse sonho antigo, dizia-me um amigo: nos anos 50 do século passado, o P. Lombardi e o P. Vieira Pinto, contentavam-se com modestas propostas para um “mundo melhor” e nem aí chegamos! A própria União Europeia perdeu a pouca alma que tinha, desistiu da ousadia e caiu na burocracia.

       Sem condições para comentar a significação do papel dos sonhos de uma “terra sem males”, comum a várias culturas arcaicas – com frutos amargos quando se tentou convertê-los em “programas científicos” de ordem social e política –, observei apenas que também a opção pelos “paraísos fiscais” talvez não seja a festa da ascensão aos céus da população mundial. Por aí ficamos.

 No Domingo passado, transcrevi uma breve passagem da extraordinária Exortação, A Alegria do Amor, na qual o Papa Francisco se referia a duas lógicas que percorrem toda a história da Igreja, desde o concílio de Jerusalém  até hoje: marginalizar e reintegrar. Jesus, morto por uma coligação táctica, foi excluído de Israel e do Império romano .

A lógica que Bergoglio deseja adoptar é, sem dúvida, a da reintegração. Quando é possível. Perante situações escandalosas que envenenaram o serviço que a Cúria vaticana deve prestar à Igreja – os escândalos bancários, a vida faustosa de alguns cardeais e a situação de eclesiásticos pedófilos – impõem-lhe a destruição dessa falsa paz alimentada por corruptos. A justiça que é devida às vítimas desse nojo não é matéria de negociação. As manobras dos lobistas, desde há muito estabelecidas, não são fáceis de neutralizar, embora o Papa afirme que não desiste da linha de actuação anunciada, desde o começo. Ele não é omnipotente. Uma verdadeira reforma não se decreta nem se consegue apenas com a mudança de alguns nomes. Por vezes, quando se pensa que se conseguiu um bom colaborador encontrou-se um judas.

  1. O desígnio pastoral de Bergoglio continua o de um verdadeiro pontífice: fazer pontes onde outros levantam muros, voltar os nossos olhos para a vergonha de um mundo sem os mínimos éticos e tornar a Igreja um exemplo de democracia participativa. Isto exige um clima eclesial onde a união se realize na diversidade criadora. Mas, para ser autenticamente pastoral, precisa de se deslocar para as periferias existenciais, o centro esquecido das comunidades cristãs.

Os obstáculos à sua lógica de reintegração revestem-se, muitas vezes, de razões pseudo dogmáticas e de doutrinas ditas irreformáveis, sobretudo no tocante aos ministérios ordenados, à moral sexual, à situação da Mulher na Igreja e às chamadas situações familiares irregulares.

O Papa abriu um debate que, por ele, teria sido muito mais fecundo se a consulta às dioceses tivesse sido mais ampla, mais aprofundada e com menos boicotes. Mesmo assim, não se deixou intimidar pelas manobras que ameaçavam rupturas irreparáveis. Pelo contrário, geriu, com muita firmeza, os conflitos, mantendo aberto o diálogo entre todas as tendências, para que todos pudessem aprender com todos. Fez do diálogo e da firmeza o seu comportamento.

  1. As origens do cristianismo não foram um mar de rosas. Estão semeadas de conflitos e dois mil anos de história das igrejas também não são o deslisar de um rio pacífico, muito pelo contrário.

O livro admirável dos Actos dos Apóstolos – uma obra sem epílogo, abrindo apenas o futuro – oscila entre uma imagem idílica da comunidade cristã dos começos  e a do conflito entre hebreus e helenistas , apresentando, depois, uma suave abertura aos gentios , muito diferente da relatada por Paulo . O seu projecto não esconde a lógica das tentativas de marginalização, mas a opção do seu projecto literário é marcar a vitória da lógica da integração, mostrando os resultados da boa gestão dos conflitos.

Hoje, celebra-se a festa da Ascensão do Senhor. S. Lucas já tinha, no primeiro volume da sua obra, tocado nesta metáfora de fim de carreira . Agora, nos Actos dos Apóstolos, desenvolve o cenário com mais cuidado. Tem de resolver duas situações. A primeira é a da ânsia de poder que continua a dominar os discípulos de Jesus: o único poder que vos garanto é o do Espírito Santo que vos vai meter em trabalhos até aos confins da terra. A segunda é a do medo: preparai-vos para acolher essa divina energia e não fiqueis pasmados a olhar para o céu. Há muito que fazer .

Igrejas sem conflitos? Nem ontem nem hoje nem amanhã. A grande sabedoria consiste em não os negar nem os acirrar. As comunidades católicas não deveriam dispensar bons gestores de conflitos.

Frei Bento Domingues, O.P.

 

in Público 08.05.2016

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publicado às 13:23

O «ANIVERSÁRIO DA IGREJA» (Solenidade do Pentecostes)

por Zulmiro Sarmento, em 15.05.16
 

A. O começo da Igreja no princípio do mundo

  1. Grande e muito bela é a festa deste dia. Celebramos hoje o «aniversário» da Igreja: não especificamente o «aniversário» do seu nascimento, mas, por assim dizer, o «aniversário» do seu começo. Teologicamente e como já reconheciam os antigos, a Igreja nasce com Jesus. Mas o início da sua missão ocorre precisamente no dia de Pentecostes, após a vinda do Espírito Santo. Em síntese, a Igreja nasce com Jesus e começa com o Espírito Santo.

Refira-se, a propósito, que o Pentecostes já era um importante dia de festa para os judeus. Situada cinquenta dias após a Páscoa, era uma festa agrícola, em que se agradecia a Deus a colheita da cevada e do trigo. Mais tarde, tornou-se também a festa da aliança, assinalando o dom da Lei no Sinai e a constituição do primeiro Povo de Deus. A partir de agora, o Pentecostes marca o começo da Igreja, novo Povo de Deus.

 

  1. Como sabemos, a fundação da Igreja não é instantânea, é progressiva; não é formal, é processual. Ou seja, não resulta de um acto formal, mas de um longo processo que remonta ao princípio do mundo. Como reconhece o Concílio Vaticano II, «desde a origem do mundo, a Igreja foi prefigurada e admiravelmente preparada». De resto, já em plena antiguidade, escritores como Hermas notavam que «o mundo foi criado em ordem à Igreja».

Todo o Antigo Testamento é uma longa e contínua preparação para o nascimento da Igreja: «A preparação longínqua da reunião do Povo de Deus começa com a vocação de Abraão, a quem Deus promete que será o pai de um grande povo. A preparação imediata tem o seu início com a eleição de Israel como povo de Deus».

 

B. Da Cruz ao Pentecostes

 

3. A vida e a missão de Cristo constituem o nascimento da Igreja. De que modo? Como observa o Concílio, «o Senhor Jesus deu origem a Sua Igreja pregando a Boa Nova».

A Igreja nasceu «do dom total de Cristo para nossa salvação, antecipado na instituição da Eucaristia e realizado na Cruz». O nascimento da Igreja é significado pelo sangue e pela água que saíram do lado aberto de Jesus crucificado. Retomando uma máxima dos primeiros tempos, o Concílio recorda que «foi do lado de Cristo adormecido na Cruz que nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja».

 

  1. E eis que chegamos ao Pentecostes: «Terminada a obra que o Pai havia confiado ao Filho para cumprir na terra, foi enviado o Espírito Santo no dia de Pentecostes para santificar continuamente a Igreja». Foi então que «a Igreja se manifestou publicamente diante da multidão e começou a difusão do Evangelho com a pregação».

Concretizando, a Igreja nasce em Jesus e inicia a sua actividade com a vinda do Espírito enviado por Jesus. Não esqueçamos que, antes de morrer, Ele tinha garantido aos discípulos que «o Espírito Santo, que o Pai enviará em Meu nome, vos ensinará todas as coisas, e recordar-vos-á tudo quanto vos tenho dito»(Jo 14, 26).

 

C. O templo e o tempo do Espírito

 

5. A Igreja é, por conseguinte, o templo e otempo do Espírito Santo. Como bem disse Sto. Ireneu de Lyon, o «Filho e o Espírito são como que “as duas mãos” pelas quais o Pai nos toca». Pelo Filho somos tocados de uma maneira mais visível, pelo Espírito Santo somos tocados de uma maneira mais invisível, o que não quer dizer que seja menos real.

Houve quem, como o célebre Joaquim de Fiori, intentasse estratificar a presença das pessoas divinas no mundo. Segundo ele, o Antigo Testamento era o tempo do Pai, o Novo Testamento era o tempo do Filho e a Igreja seria o tempo do Espírito Santo. Não foi, porém, aceite esta doutrina. Na Igreja, está efectivamente o Espírito Santo e, como não podia deixar de ser, estão também o Filho e o Pai. É na unidade do Espírito Santo que, como proclamamos na doxologia que finaliza a Oração Eucarística, chegamos ao Pai através do Filho, Jesus Cristo.

 

  1. A Igreja não é, portanto, uma mera «continuadora» de Cristo. Note-se, a este propósito, que costumamos falar em «sucessores dos apóstolos», mas não em «sucessores de Cristo». Só há sucessão de quem já não está presente. Os apóstolos têm sucessores porque já não estão presentes. Mas Jesus continua presente. Jesus continua presente no mundo precisamente através da Sua Igreja. Esta, a Igreja, é a nova presença de Cristo, o novo corpo de Cristo, não uma sucessora de Cristo.

É por isso que Sto. Agostinho fala do «Cristo total» («Christus totus»), que tem Jesus como cabeça e cada um de nós como membros do Seu corpo. S. Paulo sustenta que cada um de nós faz parte do corpo de Cristo (cf. 1Cor 12, 27). O corpo é único: o corpo de Cristo. Os seus membros são muitos: todos nós, os baptizados.

 

D. O «laço» que nos «entrelaça»

 

7. Todos os membros deste corpo são diferentes: legítima e desejavelmente diferentes, aliás. A unidade entre eles é assegurada por Deus, por Cristo, pelo Espírito e pelo Baptismo. É S. Paulo quem no-lo recorda ao dizer que «há um só Senhor, uma só fé, um só baptismo, um só Deus e Pai»(Ef 4, 5) e «um só Espírito»(1Cor 12, 13). Somos muitos e, sendo muitos, estamos unidos não em função das nossas afinidades, mas em razão da presença do mesmo Deus que nos une.

Isto significa que, quando não estamos unidos, é porque não estamos a ser verdadeiramente fiéis ao nosso Baptismo, ao Espírito que nele recebemos e a Jesus Cristo que nos conduz para a unidade. Com efeito, é Cristo que nos une e é no Seu Espírito que nos devemos deixar re+unir cada vez mais.

 

  1. Não é por acaso que Sto. Hilário de Poitiers considera o Espírito Santo como o «laço» que une o Pai e o Filho. É neste sentido que o mesmo Espírito Santo nos une ao Pai e ao Filho e nos une uns aos outros. É, pois, o Espírito Santo que nos «enlaça», que nos «entrelaça». No mesmo Espírito, nunca estamos «deslaçados». No mesmo Espírito, estamos todos «entrelaçados» uns nos outros.

É o Espírito que inspira, é o Espírito que nos inspira para a missão, para os múltiplos — e surpreendentes — serviços da missão. Estes serviços são chamados «carismas», uma vez que resultam de dons suscitados pelo Espírito Santo. S. Paulo garante que os trabalhos da missão são muitos, «mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos»(1Cor 12, 6) com vista «ao bem comum»(1Cor 12, 7). A missão começa sempre na oração porque é na oração que se acolhe o sopro do Espírito. O grande empreendimento missionário de S. Paulo foi desencadeado por uma forte experiência de oração (cf. Act 13, 1-3).

 

E. O «vento» que abana e nunca abala

 

9. No dia de Pentecostes, os apóstolos estavam seguramente em oração (cf. Act 2, 1). O Espírito vem para animar e fortalecer os apóstolos. Não é em vão, de resto, que Espírito também é entendido, frequentemente, como sinónimo de ânimo, de força. O Espírito desce «por um rumor semelhante a forte rajada de vento»(Act 2, 2). O Espírito é, muitas vezes, apresentado como «ruah», como vento: às vezes, em forma de brisa, desta vez em forma de rajada.

Também hoje, precisamos de fortes rajadas de Espírito. Deixemos que o Espírito, também hoje, deposite em nós «línguas de fogo»(Act 2, 3) pelas quais possamos aquecer e iluminar as vidas de toda a gente. Precisamos, hoje também, de cristãos «cheios do Espírito Santo»(Act 2, 4) que não se cansem de anunciar «as maravilhas de Deus»(Act 2, 11). Precisamos, hoje também, de cristãos que exalem o perfume do Espírito e propaguem o sabor do Espírito. Precisamos, hoje também, de cristãos de escuta, de espera e de esperança, que ofereçam ao mundo as incontáveis surpresas de Deus.

 

  1. A Igreja não é propriedade nossa. Já Sto. Inácio de Antioquia notava que o Espírito Santo é o «bispo invisível» que conduz a Igreja. E é por Ele que o impossível se torna possível. Mais do que competência própria do que precisamos é de fidelidade à iniciativa do Espírito de Deus. É que, como notou Atenágoras, «sem o Espírito Santo, Deus fica longe, Cristo permanece no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja é uma simples organização, a autoridade é um simples poder, a missão transforma-se em propaganda, o culto parece uma velharia e o agir cristão uma coisa de escravos». Pelo contrário, «no Espírito Santo, Cristo torna-Se presente, o Evangelho faz-se poder e vida, a Igreja realiza a comunhão trinitária e a autoridade transforma-se em serviço que liberta».

Para que seja o Espírito a agir em nós, deixemo-nos habitar pelos Seus dons: pelo dom da fortaleza, pelo dom da sabedoria, pelo dom da ciência, pelo dom do conselho, pelo dom do entendimento, pelo dom da piedade e pelo dom do temor de Deus. Não fujamos da realidade do mundo, mas procuremos olhá-la e transformá-la a partir do Espírito Santo. O espiritual não é o que se opõe ao real. O espiritual é o que anima e transforma o real. É o Espírito Santo que nos transforma e nos renova. No Espírito Santo, nunca envelhecemos, mesmo que os anos passem. O Espírito é a novidade que torna tudo novo. O Espírito Santo é este vento que abana e nunca abala. Quem está no Espírito Santo nunca fica no chão mesmo que tenha caído. Escutemos a voz do Espírito. Porque o Espírito está sempre a soprar. O Espírito está sempre a surpreender-nos!

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publicado às 13:19

O QUE RESTA DO RASTO DE JESUS? (Solenidade da Ascensão do Senhor)

por Zulmiro Sarmento, em 09.05.16
 

A. Não uma despedida, mas uma presença nova

  1. Faltam-nos as palavras para descrever o mistério que celebramos hoje. Acompanhamos Jesus no último momento da Sua peregrinação pela terra. Só que, a bem dizer, Jesus não Se ausenta. Acompanhamos Jesus no Seu regresso ao Pai. Só que, em boa verdade, Jesus nunca tinha deixado o Pai: Ele e o Pai foram — são — sempre um só (cf. Jo 10, 30).

A Ascensão não assinala uma despedida, mas inaugura um tempo novo e uma vida renovada. Jesus não deixou o Pai quando veio até ao mundo e, agora, não deixa o mundo quando volta até ao Pai. Jesus trouxe-nos o Pai, Jesus (e)leva-nos para o Pai. É também a nossa humanidade redimida, salva e transfigurada que vai com Ele. Nós (já) estamos com Ele na eternidade; Ele (ainda) está connosco no tempo. Enfim, o Céu continua na Terra e a Terra como que já está no Céu. Em Jesus Cristo, a eternidade e o tempo entrelaçam-se: não subsistem um sem o outro. No tempo que vivemos na Terra, já somos verdadeiramente «cidadãos do Céu»(Fil 3, 20), habitantes da «Casa do Senhor»(Sal 122, 1).

 

  1. A Ascensão de Jesus é o alicerce e a certeza da ascensão da humanidade. O destino de Jesus será o destino da humanidade quando os caminhos da humanidade forem os caminhos de Jesus. Jesus desceu até à humanidade para que a humanidade possa subir com Jesus. Verdadeiramente e como terá notado S. Francisco Xavier, «para Deus, sobe-se descendo». A Ascensão ilumina e aprofunda o significado da Ressurreição, à qual aliás está intimamente ligada: aquele que sobe às alturas do Céu é o mesmo que desceu às profundidades da Terra.

Eis a lição desta solenidade e, mais vastamente, de toda a vida de Jesus Cristo. Só se sobe quando se desce. Só se ganha quando se perde. Só se recebe quando se dá. A máxima exaltação veio após a suprema humilhação. Deus exaltou maximamente aquele que Se humilhou completamente (cf. Fil 2, 6-11).

 

B. Nós (já) com Ele na eternidade; Ele (ainda) connosco no tempo

 

3. Em Jesus Cristo, Deus vem até nós de uma forma totalmente humanizada. Em Jesus Cristo, nós vamos até Deus de uma forma totalmente divinizada. Não se trata de uma conquista nossa, mas de um puro dom de Deus. Trata-se não de endeusamento, mas de divinização («theosis»). Entramos no Céu pela porta de Cristo, pela porta que é Cristo (cf. Jo 10, 7). Como diziam os antigos, «Cristo sobe, levando conSigo os homens cativos da morte. Ele, o primeiro, Deus incarnado, entra no Céu». E, ao entrar, faz-nos entrar com Ele.

É por isso que a Ascensão, enquanto celebração do triunfo de Cristo, é também celebração do triunfo da humanidade unida a Cristo. Ele, que fez Seu o nosso sofrimento, permite que façamos nossa a Sua glória.

 

  1. Entretanto, Jesus continua presente no mundo, acompanhando os Seus discípulos em missão. S. Marcos diz-nos que o Senhor consolida a palavra dos Seus enviados (cf. Mc 16, 20). E S. Mateus refere a Sua promessa de que Ele estará sempre connosco, até ao fim dos tempos (cf. Mt 28, 20).

É, aliás, sobre a missão dos discípulos que incide o encontro de Jesus narrado pelo Livro dos Actos dos Apóstolos. Nele, Jesus pede aos discípulos que não se afastem até que venha o Prometido do Pai (cf. Act 1, 4). O Prometido do Pai é o Espírito Santo (cf. Act 1, 5). É o Espírito Santo que vai dar aos discípulos uma força suave — e uma suavidade forte — para que sejam testemunhas de Cristo «até aos confins da Terra»(Act 1, 8).

 

C. Este é o momento de caminhar na Terra, não de «olhar para o Céu»

 

5. Segundo o referido Livro dos Actos dos Apóstolos, foi após estas palavras que Jesus Se elevou (cf. Act 1, 9). Os discípulos deixaram de ver aquele que tinham visto e que, segundo os «dois homens vestidos de branco»(Act 1, 10), voltarão a ver quando voltar (cf. Act 1, 11). A partir de agora, podemos ver — e fazer ver — Jesus através do testemunho, através do testemunho da missão. Este ainda não é, pois, o momento de «olhar para o Céu» (cf. Act 1, 11). Este é o momento de «pisar a Terra». Este é o momento de trilhar todos os «caminhos da Terra». Este, em suma, é o tempo da Igreja, a nova corporeidade de Jesus (cf 1Cor 12).

Que resta, então, do rasto de Jesus? O que resta do rasto de Jesus chama-se precisamente Igreja. É na Igreja que Jesus dilata o Seu Corpo. É na Igreja que Jesus estende a Sua presença. É à Igreja que Jesus confia o Seu Evangelho: não apenas o Evangelho escrito, mas sobretudo oEvangelho inscrito; não apenas o Evangelho que encontramos no livro, mas acima de tudo o Evangelho que reencontramos na vida. O Evangelho é um permanente começo: é um começo a que nenhum tropeço consegue pôr fim.

 

  1. A Igreja, de todos fazemos parte, não é, por conseguinte, uma mera continuação da «causa de Jesus». A Igreja, de que todos fazemos parte, é uma nova presença do próprio Jesus. Eis, portanto, a boa — e bela — notícia que transportamos connosco: a presença de Jesus no mundo, a presença de Jesus em cada pessoa que há no mundo.

Não é por acaso que a Igreja assinala, neste Domingo da Ascensão, o Dia Mundial das Comunicações Sociais. A comunicação social, desde os meios mais clássicos até aos mais novíssimos recursos, faz-se portadora de notícias. Acontece que as notícias mais difundidas nem sempre são boas. E nem sempre as notícias boas são as mais difundidas. Como se isto não bastasse, há uma espécie de contágio. Parece que as notícias negativas atraem factos negativos. Quanto mais se fala de uma tragédia, tanto mais essa tragédia parece multiplicar-se.

 

D. A Igreja existe para comunicar

 

7. É claro que não podemos ignorar o que acontece. Mas também não desistamos do que pode vir a acontecer.

A comunicação social não pode limitar-se a ser um eco da realidade. Ela tem de procurar ser um agente de transformação da realidade.

 

 

  1. Nesta interacção inevitável, salta à vista que a comunicação social, para o bem e para o mal, foi alterando o perfil e o funcionamento da família. Será que a família não poderá alterar o perfil e o funcionamento da comunicação social?

Muitas vezes, confunde-se o combate ao preconceito com a ausência de critérios. Temos de reconhecer que nem sempre a comunicação social é amiga da família. Nem sempre os valores que ela veicula correspondem ao que se espera que sejam os valores da família. Talvez sem querer, a comunicação social arrisca-se, frequentemente, a contribuir mais para a destruição dos laços familiares do que para a consolidação desses mesmos laços familiares.

 

E. Nem tudo é para mostrar, nem tudo é para consumir

 

9. É certo que não podemos exigir que a comunicação social faça o que deve ser feito pela família. Mas pode ajudar ou, pelo menos, pode não complicar mais. A vida das famílias já não é fácil. Era bom que, sem contender com um sadio pluralismo, todos déssemos as mãos para não a tornarmos mais difícil.

Precisamos, por isso, de uma ética: não só para a produção, mas também para a utilização da comunicação social. Nem tudo é para mostrar, nem tudo é para consumir. Não se trata de advogar a censura, sempre abominável, mas de defender um necessário sentido crítico.

 

  1. Não pode ser a comunicação social a definir e a comandar a vida das famílias. As famílias é que devem definir e comandar a sua relação com a comunicação social. É preciso perceber que, não raramente, para se acompanhar o que se passa nos extremos do mundo, deixamos de acompanhar como devíamos o que se passa ao nosso lado. Trata-se de uma espécie de «comunicação incomunicante», uma comunicação que não comunica com quem está na nossa casa, com quem faz parte da nossa família.

O que celebramos na Ascensão é um poderoso estímulo para a missão, também na comunicação social. Procuremos converter as dificuldades em oportunidades. Não nos limitemos a pôr de lado os meios de comunicação social. Procuremos fazer tudo para que eles possam ser também meios de evangelização. Afinal, há tanto Evangelho para espalhar na vida. E há tanto Deus para semear no coração das pessoas!

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publicado às 11:02

A ALEGRIA DO AMOR (III)

por Zulmiro Sarmento, em 02.05.16

 

  1. “Não é necessário acreditar em Deus para se ser boa pessoa. Em certo sentido, a ideia tradicional de Deus não está actualizada. Pode-se ser espiritual, sem se ser religioso. Não é preciso ir à Igreja e dar a esmola. Para muitas pessoas, a natureza pode ser uma igreja. Na história, algumas das melhores pessoas não acreditavam em Deus, enquanto alguns dos piores actos foram cometidos em Seu nome.”

Estas declarações, atribuídas a este Papa, circulam na internet, em forma de postal. Talvez não tenham sido ditas assim de seguida. Parecem-me um arranjo de várias declarações. Servem aos seus adversários para dizerem que temos um Papa a difundir a indiferença religiosa; para os seus admiradores, ele é tão firme e límpido na sua fé cristã, que não a confunde com o sectarismo ideológico ou religioso. A verdade e o amor venham de onde vierem, são fruto do Espírito Santo. Vejamos.

Não se pode esquecer a declaração de S. João: Nunca ninguém viu a Deus[i]. Jesus, em tudo o que fez, disse e sofreu, mostrou que Ele é um amor infinitamente mais misterioso do que poderíamos imaginar. Devemos, no entanto, como dizia S. Tomás de Aquino, procurar saber como Deus não é para não cair na tentação de O encarcerar nos nossos conceitos e favorecer o ateísmo.

 O amor que Deus nos tem não depende nem dos nossos méritos, nem das nossas catalogações religiosas, morais ou ideológicas. Não pode ser privatizado. Quem se atreve a dizer que Deus é nosso, da nossa Igreja e de mais ninguém, perdeu o sentido do ridículo.

As metáforas que forjamos acerca da divindade precisam de ser revistas, pois podem envelhecer e morrer. Metáforas mortas não ajudam a viagem mística, a pregação do Evangelho da alegria nem a descoberta de novos caminhos da graça divina.

Como observa o teólogo Tomáš Halík[ii], que nos próximos dias estará em Portugal, Deus vem ao nosso encontro mais como pergunta do que como resposta. A sua pergunta é inquietante: “que fizeste do teu irmão?” Toda e qualquer religião, que não seja purificada pelo alcance universal desta pergunta, absolutiza o desejo de dominar em “nome de Deus”. Como diz C. S. Lewis, é a suprema perversão: de todos os homens maus, os religiosos são os piores.

  1. Chegados a este ponto, perguntar-se-á: mas que tem isto a ver com os Sínodos dos Bispos, acolhidos e interpretados na Amoris Laetitia? Eles não se reuniram para discutir a ideia de Deus! Nesta época de aceleradas mudanças sociais e culturais, o que está em causa são as formas de ajudar as famílias a redescobrirem hoje a alegria do amor, pois tudo o que temos no Novo Testamento é para que a nossa alegria seja completa[iii]. A pastoral da Igreja é para que todos tenham vida e a tenham em abundância[iv].

No Comunicado de Imprensa do movimento Nós Somos Igreja – já o lembrámos no passado Domingo - o Papa entregou o futuro das famílias aos bispos, aos teólogos, às Igrejas locais, mas não concluiu: tivemos um tempo de debate em que os Bispos, depois de consultarem as suas dioceses, disseram o que tinham a dizer. Agora acabou. Apliquem o que foi decidido!

Puro engano. O Papa Francisco não se contentou com recolher e transmitir o que recebeu dos dois Sínodos, acrescentando alguns retoques. Com esta Exortação alargou, de forma activa, o Sínodo a toda a Igreja. Inaugurou uma nova época de responsabilização das Igrejas locais, não só dos bispos, pois a Igreja local não se confunde com os bispos e as cúrias diocesanas. O cap. VIII exige a mobilização de todos os católicos para enfrentar os novos desafios, vendo, ouvindo e acolhendo os contributos das outras Igrejas cristãs, das outras religiões e de todas as pessoas de boa vontade, para agir com sabedoria e misericórdia.

  1. Na Exortação A Alegria do Amor, Bergoglio explicitou a lógica da sua orientação: “O Sínodo referiu-se a diferentes situações de fragilidade ou imperfeição. A este respeito, quero lembrar aqui uma coisa que pretendi propor, com clareza, a toda a Igreja para não nos equivocarmos no caminho: Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (...) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita. Por isso, temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações e é necessário estarmos atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição“.[v]

Já não há muitas famílias católicas quimicamente puras. Que espiritualidade cultivar, nestas situações complexas, para encontrar os caminhos da alegria do Amor?

Frei Bento Domingues, O.P.

in Público 01.05.2016

 




[i] Jo 1,18

[ii] Quero que tu sejas!, Podemos Acreditar no Deus do Amor?, Paulinas, 2016, pp 15, 61-62; 45

[iii] 1Jo 1, 1-4

[iv] Jo. 10, 10

[v] Amoris Laetitia, Paulus, 2016, nº 296, cf. todo o cap. VIII

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publicado às 11:07

O «EVANGELHO SEGUNDO AS MÃES» (Sexto Domingo da Páscoa)

por Zulmiro Sarmento, em 02.05.16
 

A. Maio rima com Mãe

  1. Maio, Maria, Mulher, Mãe. Eis os quatro m’s deste novo mês. Não é possível pensar em Maio sem pensar em Maria, modelo de Mulher, modelo de Mãe. Mãe é fonte de vida e oceano infindo de amor. Nem todos podem ser mãe. Mas todos deveriam saber o que significa ter mãe. É por isso que a coisa mais triste é perder a mãe. Só que a mãe nunca se perde. Nem a morte perde a mãe. Aqui, no tempo, ou além, na eternidade, mãe nunca deixa de ser mãe!

Maio rima com Mãe. Para nós, dizer Mãe é, antes de mais, dizer Maria. Para nós, dizer Maria é, acima de tudo, dizer Mãe. Até Deus quis ter Mãe! Até Deus é Mãe! Como alguém terá dito, Deus é um Pai que nos ama com amor de Mãe. E Maria é o mais belo rosto desta «paternidade maternal» de Deus.

  1. Se até Deus quis ter uma Mãe, como é que nós não havemos de ser gratos para com a nossa Mãe? Será sempre pouco o que damos a quem nos dá tanto, a quem nos deu tudo. É por isso que a Mãe simboliza o amor puro, o amor em estado puro. É importante que haja amor no mundo. É desejável que façamos tudo para que só haja amor no mundo. Porém, nunca haverá amor como o de Mãe.

O amor de Mãe é o amor que nunca passa, mesmo quando tudo passa. É ao amor da Mãe que se regressa quando todas as promessas de amor cessam. O amor de Mãe é o amor da vida, é o amor para a vida. É, sem dúvida, um amor único, o amor de Mãe. Razão tem, pois, quem escreveu aquele epitáfio que se encontra, em forma de verso, no cemitério da minha terra natal: «Minha Mãe era uma santa/por quem sempre rezarei/porque amor igual ao dela/ nunca mais encontrarei»!

 

B. Dia para que muitos filhos se lembrem que têm mãe

 

3. Não existe Dia do Filho já que, para a Mãe, todos os dias são dias para os filhos. Mas existe um Dia da Mãe até porque não faltará quem só neste dia se lembre que tem mãe. Não faltará quem só neste dia se lembre da sua mãe. Mesmo quando a memória vai faltando, uma mãe nunca esquece os seus filhos. Será que todos os filhos se lembram da sua mãe? Será que todos os filhos expressam a gratidão pela sua mãe? Uma mãe é capaz de cuidar de muitos filhos e, por vezes, muitos filhos não cuidam de uma mãe. Uma mãe pode não ter muitos lugares em casa, mas tem sempre imensos lugares no seu coração.

No Dia da Mãe — que é também Dia do Pai —, é importante que todos aprendamos a ser filhos. Daí que estes devam ser verdadeiros dias da família, em que se fortaleça a união na família, o amor na família e a gratidão em família.

  1. Por aqui se vê como este não é um dia para ser comprimido em 24 horas. O Dia da Mãe é um dia esticado, uma manhã dilatada, uma primavera interminavelmente estendida. Este é um dia em que o sol nunca se põe. Este é o dia que nunca anoitece. Mãe nunca adormece. Mesmo a dormir, ela dorme como mãe. Ela é a mais pura guardiã do amor, o santuário onde a vida nunca deixa de palpitar. Uma mãe antecipa-se sempre. Este dia só consegue «postecipar». Os gestos de gratidão deste dia são sempre um mínimo diante do máximo: diante do máximo de doação, do máximo de amor.

É muito grande o que há numa mãe. Mãe nunca deixa de ser mãe. Nem a morte mata a mãe. Mãe sobrevive sempre. Ninguém seria nada sem Mãe. Mãe é o que fica, mesmo quando tudo passa.

 

C. Mãe nunca deixa de ser mãe

 

5. Este, a bem dizer, não é o dia da mãe. É, possivelmente, o dia em que muitos se lembram que existe mãe. Dia da mãe tem de ser cada dia. Mãe que é mãe nunca se cansa de ser mãe e nunca descansa como mãe. Mãe que é mãe está sempre em funções, está sempre em funções de mãe. Mãe que é mãe pensa sempre como mãe, sente sempre como mãe, age sempre como mãe, sofre sempre como mãe, chora sempre como mãe e morre sempre como mãe.

Há muitas condecorações neste país e neste mundo, mas haverá herói maior que uma mãe? Haverá maior escola de vida que uma mãe? Uma mãe dá tudo sem cobrar nada. Mesmo quando não há reconhecimento, a Mãe não mostra ressentimento. É comovente sentir como a Mãe também tem lugar para a dor. Mas só o amor vem aos lábios. A dor fica alojada na alma. Quando muito, pode escorrer em algumas lágrimas furtivas. Mas Mãe que é mãe diz sempre o melhor de seus filhos. Não poderíamos aprender com as mães?

  1. Mãe é a mão que nos livra da queda. Mãe é o colo que nos ampara na fraqueza. Mãe é a luz que nos aponta o caminho e nos acompanha na estrada. Pode-se ter tudo, mas não há nada que se compare a uma mãe.

Mãe é o que fica mesmo quando tudo parece passar. Mãe nunca adormece. Mesmo a dormir, ela dorme como mãe. É por isso que Mãe nunca se reforma. Mãe nunca morre. Mãe é sempre Mãe. Mãe nunca deixa de ser mãe. Nem a morte mata a mãe. Mãe sobrevive sempre.

 

D. Tanto para aprender com as mães

 

7. Mãe é palavra. Mãe é sobretudo gesto, gesto que não cabe em qualquer palavra. É com a Mãe que aprendemos a falar. E pode ser com a Mãe que podemos aprender a perceber o que Deus nos quer dizer. Adverte-nos S. João para que «não amemos com palavras nem com a língua, mas por obras e em verdade»(1Jo 3, 18). Quem como a Mãe consegue ilustrar esta afirmação? Muita gente pode saber o que é o amor, mas só as mães sabem verdadeiramente o que é amar. É por isso que a Mãe é obra de Deus. A Mãe é como um eco de Deus no nosso mundo. Se queremos saber o que é amar, olhemos para a Mãe.

Eu diria — e peço que me compreendam — que Mãe não tem coração. Ou, melhor, Mãe não tem só um coração. Mãe tem muitos corações. O coração da Mãe está transplantado no coração dos filhos. Mãe que é mãe hipoteca tudo, a começar pelo seu coração. «Obrigado» é tão pouco para lhe agradecer tanto. Mas talvez seja tudo o que nos resta para lhe dizer. Não lho digamos, contudo, só com os lábios. Digamos «obrigado» à nossa Mãe com a nossa vida, com a nossa presença, com o nosso auxílio, com o nosso reconhecimento, com a nossa oração.

  1. Que melhor exegese do que a Mãe para compreender o que nos é dito no Evangelho deste Sexto Domingo da Páscoa? Jesus assegura que nos dá a paz, a paz como só Ele sabe dar. Que paz é essa? A Sua paz (cf. Jo 14, 27). É esta paz de Jesus que nos chega através das nossas mães. Por isso, não nos perturbemos (cf. Jo 14, 27). Tal como o filho não se perturba quando está com a mãe, nós nunca ficamos perturbados quando estamos com Jesus.

Como nos garante S. Paulo, «tudo podemos em Cristo que nos dá força»(Fil 4, 13). Neste sentido, se permanecermos em Cristo, se acolhermos as Suas palavras, tudo será concedido e tudo será conseguido. Deus quer que demos muito fruto (cf. Jo 15, 8).

 

E. Na escola de Jesus ao colo da Mãe

 

9. Nenhum ser humano é alguma coisa sem Mãe. Nenhum discípulo é alguma coisa sem Mestre. Nenhum cristão é alguma coisa sem Cristo. A Mãe pode ser vista, portanto, como um Evangelho vivo. Tal como a existência da Mãe se prolonga na existência do filho, também a vida de Cristo se prolonga na existência do cristão. E tal como a melhor herança que a Mãe pode deixar aos filhos é o seu exemplo, também o maior legado que Jesus nos deixa é o Seu testemunho.

Estas palavras de Jesus constituem as Suas últimas indicações, o Seu testamento. Os discípulos são convidados a pôr em prática as Suas palavras (cf. Jo 14, 23). Quem não cumpre as palavras de Jesus como pode amá-Lo? E quem melhor do que as nossas mães para nos introduzir na escola do amor?

 

  1. A relação do discípulo com Jesus é como a relação do filho com a mãe: não é episódica, mas estável, sólida, contínua. Permanece em Jesus quem acolhe no coração a Sua proposta de vida, entregando-se a Deus e aos irmãos até à doação completa de si mesmo. É assim, aliás, que as mães se comportam para com os filhos.

Não deixemos, então, de ler — e meditar — o «Evangelho segundo as mães». Vivamos o Evangelho olhando para as mães, a começar por Maria, modelo de todas as mães. Foi na Sua carne que Jesus Cristo Se fez carne. Que na nossa vida deixemos que Jesus Se faça vida. Hoje. Amanhã. E sempre!

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