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CAMINHOS CRISTÃOS PARA A RESSURREIÇÃO DA EUROPA?

por Zulmiro Sarmento, em 04.04.16

 

  1.    Alguns amigos insistiram comigo para não voltar à pergunta: “Será possível ressuscitar a Europa?”. Este continente, dentro e fora de portas, antes, durante e depois do regime de Cristandade, viveu quase sempre em guerra e assim continuará. Um interregno de 60 anos de paz foi mais fruto do cansaço do que da virtude. A política, como Aristóteles viu, é o reino do instável para o qual não existe ciência certa, apenas palpites e raciocínios mais ou menos prováveis.

O que eu deveria questionar, segundo dizem, era o estado lamentável em que se encontra a liturgia da Igreja, nomeadamente a da Semana Santa. Não enche as igrejas nem as almas. A pergunta que os padres não deveriam evitar seria esta: porque será que os feriados de cariz religioso e os próprios domingos servem sobretudo para umas miniférias dos laicos e dos católicos não praticantes, cada vez mais numerosos?

 Um dia abordarei o que há de interessante e falacioso nesta pergunta. Se os feriados religiosos servem para um merecido “descanso”, já não é mau. A mítica e bela narrativa da Criação coroa de humor um Iavé feliz e fatigado: Deus concluiu no sétimo dia a sua obra e descansou (Gn 1-2).

Esta justificação, ao mais alto nível teológico, do descanso semanal é uma das expressões mais sublimes desta versão cósmica e humanista da sabedoria divina. Quando o dia da liberdade se perverteu com ritualismos opressivos, um judeu, Jesus da Nazaré, foi radical na denúncia das instituições religiosas ou outras: o sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado (Mc 2,27).

 O dia do culto que não seja o da celebração da alegria e da liberdade é um insulto a Deus. O homo faber, a tempo inteiro, é um escravo ou um idiota. Não é um criador.

  1. Por outro lado, no coração da liturgia cristã lateja a memória da luta de Cristo contra todas as formas de fatalismo: sempre assim foi, sempre assim será!

O programa que Jesus apresentou publicamente era um manifesto libertário. Para o tornar possível desmascarou as tentações diabólicas da dominação económica, política e religiosa. Nunca quis o sacrifício, a opressão, o sofrimento, a cruz, a morte. Tudo isto lhe foi imposto, porque preferiu ser preso, torturado, crucificado, a trair o seu projeto de fraternidade ilimitada. Preferiu ser morto a trair o sentido último da sua vida.

Por tudo isto, a Cruz de Jesus, resultado imediato de um crime jurídico de natureza política, tornou-se o símbolo da generosidade e da extrema fidelidade. Nada tem a ver com a sacralização do sofrimento, como muitas vezes ainda ressoa na liturgia e na espiritualidade. Os sacrifícios exigidos pela fidelidade ao amor são a glória da vida humana. O amor do sofrimento é uma doença grave!

Passando em revista todas as narrativas e interpretações do processo de Jesus, retenho o retrato dos Actos dos Apóstolos:coligaram-se, nesta cidade, contra o teu servo Jesus que ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com as nações pagãs e os povos de Israel (Act 4, 17-18).

 O extraordinário movimento litúrgico do séc. XX e que preparou a reforma da Semana Santa nos anos 50, consagrada no Vaticano II, teve muitas oscilações na sua orientação. Tanto o modelo monacal como o pastoral tiveram sempre dificuldade em perceber que não é Deus que precisa do culto litúrgico. É o ser humano que o exige para ser cristão na transformação da vida em todas as suas dimensões: imanente e transcendente, interior e exterior, pessoal e social.

A Eucaristia celebra a memória do itinerário de Jesus Cristo para não nos perdermos do essencial nos labirintos do quotidiano. Na parábola do bom samaritano, o sacerdote e o levita para não falharem o encontro com Deus no culto do Tempo, falharam o encontro com o próximo, o ser humano espancado e atirado para a valeta. O próximo é a nova categoria social dos sem categoria: o estrangeiro, o excluído de quem nos aproximamos. O amor incondicional – a caridade – é o sentido escondido do social, passa pelas instituições, mas nunca se reduz ao que elas podem abranger. Nas sociedades acontece o inesperado, a alteridade irredutível, do qual também somos responsáveis, onde devemos reconhecer o humano, o irmão sem qualquer outra etiqueta, gente da família!

  1. Há 60 anos, alguns políticos, sobretudo democratas cristãos e sociais-democratas, lançaram a União Europeia com o objectivo de promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos. Em 2012, a União Europeia foi laureada com o Nobel da Paz. Donde virá, então, o mal-estar actual? O mundo mudou. Entretanto quer a Democracia Cristã, quer a Social-Democracia perderam a alma ao abandonarem a economia social e a política do bem comum. Renderam-se à economia que mata seguindo os caminhos que aprofundam as desigualdades entre super-ricos e o mundo imenso dos pobres.

Não adianta lamentar a diminuição da prática religiosa dos cristãos. O que importa perguntar: qual é a dimensão interior e política dessa prática em favor da transfiguração da Europa aberta à transformação do mundo?

Frei Bento Domingues, O.P.

      in Público 03.04.2016

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publicado às 18:03

SÃO AS FERIDAS QUE NOS CONDUZEM À FÉ (Segundo Domingo da Páscoa)

por Zulmiro Sarmento, em 04.04.16
 

 A. O grande sinal da Páscoa

  1. Depois do fim, um novo começo. A Ressurreição é o novo começo, o definitivo recomeço. Não se recomeça para repetir. O sepulcro vazio assinala uma história que permanece em aberto. O primeiro dia daquela semana (cf. Jo 20, 19) é a primeira hora de um tempo novo. Uma vida ressuscitada assume o passado, mas não estaciona no passado. No passado estacionavam os discípulos naquela tarde (cf. Jo 20, 19). Para eles, a noite parecia mais próxima do que uma nova amanhã.

Tantas vezes, o nosso estado de espírito é semelhante ao destes discípulos. Também nós estamos com «as portas fechadas» e cheios de «medo» (cf. Jo 20, 19). Estamos fechados por causa do medo, estamos com medo por causa de estarmos fechados. Até parece que a Páscoa ainda não aconteceu, até parece que a Páscoa ainda não passou. Ou, então, até parece que a Páscoa já passou completamente. Mas, tal como há dois mil anos, Jesus não desiste. Ele é a chave que abre o que está fechado e o destemor que vence o medo.

 

  1. Para Jesus, não há barreiras intransponíveis nem obstáculos inultrapassáveis. O Ressuscitado não Se ausenta. Das doze aparições do Ressuscitado que o Novo Testamento regista, cinco acontecem logo no dia da Ressurreição. Este texto fala-nos de duas: uma no dia da Ressurreição, outra oito dias depois. Jesus não esquece os Seus discípulos. Jesus vem para o meio deles, como que a dizer que Ele é o centro da sua vida. Quando Jesus está no meio de nós, a paz é total. Jesus ressuscitado é o portador da paz. «A paz esteja convosco»(Jo 20, 19. 21. 26) é mais do que uma saudação habitual entre os judeus. Como anunciou Miqueias (cf. Miq 5, 5) e como proclamou S. Paulo (cf. Ef 2, 14), Cristo é efectivamente a nossa paz.

A paz da Páscoa é a aurora de um mundo novo e o alicerce de uma vida inteiramente renovada. É esta paz da Páscoa que se respira na Igreja dos primeiros tempos. É esta paz da Páscoa que leva os seus membros a terem «um só coração e uma só alma»(Act 4, 32). Era Jesus que os unia. Por causa dessa união, punham tudo em comum (cf. Act 4, 32). Ninguém tinha nada e a ninguém faltava nada. Eis o grande sinal da Páscoa: ninguém considerava seu o que era comum; todos optavam por considerar comum o que era seu (cf. Act 4, 32-34).

 

B. A nossa missão é a missão de Jesus

 

3. Que belo alicerce encontramos aqui para o «Estado social»! Este só tem sustentação quando a necessidade prevalece sobre a posse. O outro é visto não como problema ou entrave, mas como prioridade. Quando o outro é a prioridade, ninguém passa mal. Quando o tu é a prioridade para cada eu, ninguém acumula o supérfluo, todos têm acesso ao essencial.

Infelizmente, hoje há poucos opulentos e muitos necessitados. Há poucos que têm muito e muitos que têm pouco ou quase nada. Entre os cristãos da primeira hora, não havia «qualquer necessitado»(Act 4, 34). Tertuliano dá-nos conta do espanto dos que não eram cristãos quando olhavam para o comportamento dos cristãos: «Vede como eles se amam!» No fundo, eles apercebiam-se de como a palavra dos lábios se repercutia na palavra da vida.

 

  1. Ao mostrar «as mãos e o lado»(Jo 20, 20), o Ressuscitado identifica-Se com o Crucificado e com todos os crucificados. E é sobretudo para junto dos crucificados da vida que Ele nos envia. O Seu exemplo há-de surgir como a nossa razão de existir: «Como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós»(Jo 20, 21).

Uma vida ressuscitada é uma vida enviada. A nossa missão há-de ser a missão do próprio Jesus. Como Ele fez, façamos nós também (cf. Jo 13, 15). Uma vez que Ele veio para servir, nós também somos chamados a servir (cf. Mt 20, 28). Quem não serve, não serve para a missão.

 

C. Alguém viu para crer; nós cremos para ver

 

5. Ao soprar sobre os discípulos, Jesus quer vincar a identificação da missão dos Seus discípulos com a Sua missão. É curioso notar que o verbo aqui utilizado é o mesmo do texto grego de Génesis 2,7, quando se diz que Deus soprou sobre o homem, infundindo-lhe a vida de Deus. Com o «sopro» do Génesis, o homem torna-se um ser vivo; com este «sopro», os discípulos de Jesus tornam-se pessoas novas.

A partir de agora, os discípulos possuem o Espírito, para poderem dar-se generosamente aos outros. Trata-se de um espírito de perdão, que aliás o próprio Jesus já tinha assumido na Cruz. O perdão de Jesus é oferecido na Igreja de Jesus (cf. 20, 23). É na Igreja que encontramos Jesus. É na Igreja que reencontramos o perdão de Jesus.

 

  1. Não espanta que os discípulos ficassem cheios de alegria (cf. Jo 20, 20). Ver Jesus é a maior fonte de alegria e a decisiva fonte da missão. Quem vê Jesus é convidado a dizer isso mesmo: que viu Jesus. E, por conseguinte, é convidado a convidar outros para que possam também ver Jesus.

Acontece que, naquela tarde, um dos discípulos não estava presente. Não acreditou no testemunho dos outros: quis ver para crer. Para Tomé, ver foi o caminho para crer. Para nós, crer há-de ser o caminho para ver. No fundo, nós sentimos que só vemos quando cremos. A fé é luz, é uma visão, é uma iluminação. A experiência diz que a fé não nos isenta de dúvida. Tantas são as vezes em que a fé tem de conviver — e nem sempre de forma pacífica — com a dúvida.

 

D. É a «porta das chagas» que nos leva à fé

 

7. É fácil censurar Tomé, mas quem pode negar que, em nós, sobrevive muito de Tomé? É por isso que, tal como insinua o seu apelido, ele é nosso «gémeo» e nós somos «gémeos» dele. S. Gregório Magno até reconheceu que «a incredulidade de Tomé foi mais útil para a nossa fé do que a fé dos discípulos crentes». De facto, tal incredulidade atesta que as nossas dificuldades não são únicas nem foram as primeiras. Só que nem a incredulidade constitui obstáculo para a fé. Há muitos que passam da fé para a incredulidade. Tomé ensina-nos que é possível passar da incredulidade para a fé. Nossa é, muitas vezes, a hesitação de Tomé. Nossa deverá ser também a confissão de Tomé.

«Meu Senhor e meu Deus!»(Jo 20, 28) é a maior proclamação de fé na divindade de Jesus que existe no Novo Testamento. Mas, para isso, foi preciso passar pela dúvida, pela incredulidade. Foi preciso ver o ferido e tocar nas feridas. É fundamental não esquecer que à fé chegamos pela «porta das feridas».

 

  1. Muito comovente é sentir que Tomé chega à fé pela «porta das feridas». Alguém conseguirá aderir à fé sem ser pela «porta dos feridos»? Como bem notou Tomás Halik, só atinge a certeza da fé quem, «ao tocar nas feridas do mundo, toca em Deus». Consta que Pascal, estando impedido de comungar, começou a cuidar de um pobre. Era uma forma de continuar a receber o Corpo de Cristo. Também se conta que, um dia, Satanás terá aparecido a S. Martinho disfarçado de Cristo. O santo, porém, não se deixou enganar. «Onde estão as tuas chagas?», perguntou.

Tirar as chagas de Cristo é o mesmo que desfigurar Cristo. E retirar Cristo das chagas é o mesmo que agravar — ainda mais — as (nossas) próprias chagas. Uma religiosidade telegénica, que não aterra nas chagas da vida, é por muitos exaltada. Mas será muito exaltante? Tomás Halik não acredita em «religiões sem chagas». Não foi pelas chagas que fomos curados (cf. Is 53, 5; 1Ped 2, 24)?

 

E. Cuidar das feridas, não ferir

 

9. Também hoje, neste nosso tempo de contrastes, Jesus continua a convidar-nos a colocar o nosso dedo nas Suas chagas (cf. Jo 20, 27). Nas chagas de tantos irmãos nossos, continuamos a poder tocar no próprio Jesus. Quem toca nas chagas deste mundo toca em Jesus. O caminho que Jesus propôs a Tomé é o caminho que continua a propor a cada um de nós: tocar nas chagas desta vida. Quem não olha para os feridos está a ferir o próprio Jesus Cristo.

Há tanta gente ferida e há tanta gente a quem nós ferimos. O caminho de Tomé há-de ser, pois, o nosso caminho: não ferir, mas tocar nas feridas para ajudar a sarar as feridas. Jesus ressuscitado continua no tempo, ao lado daqueles que estão feridos em cada tempo. É com as nossas mãos que Ele quer tocar nessas feridas. É ao tocar nessas feridas que nós acabaremos por tocar no próprio Jesus. Afinal, alguém já sofreu o que nós sofremos. Alguém já passou o que nós passamos. E se Jesus tudo conseguiu vencer, como é que nós haveríamos de estar impedidos de triunfar? É com Jesus que tocamos tantas chagas. Será por Jesus que havemos de vencer todas as feridas.

 

  1. A Páscoa é um novo nascimento, uma nova vida, habitada por uma nova esperança. Esta novidade torna-se visível pelo amor. Quem nasce de Deus é convidado a viver no amor de Deus e no amor com os irmãos. S. João torna tudo muito claro: «Todo aquele que acredita que Jesus é o Cristo nasceu de Deus e todo o que ama Aquele que gerou ama também quem nasceu d’Ele»(1Jo 5, 1).

Que fique, então, tudo de parte. Que só fique o amor. E quando fica o amor, fica tudo: fica Deus e ficamos todos nós em Deus. É a Páscoa plena. E a felicidade total!

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