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Outro método frequente é a desqualificação de Bergoglio. O que este argentino propõe de mais acertado já estava dito pelos seus antecessores. Quando procura ser original, não passa de um demagogo do terceiro mundo. A sua perspectiva social, condensada em três T- trabalho, tecto (casa) e terra –, apresentada no Vaticano, ao acolher os Movimentos Populares[i], como anseios e direitos sagrados de qualquer família, é um exemplo de pregação irresponsável. O jesuíta, C. Theobald, mostrou, pelo contrário, a originalidade e a pertinência doestilo concreto do Papa Francisco, atento à existência social infinitamente diversa e plural[ii].
Enquanto ficava por aí, tinha de facto, muitas passagens da doutrina social da Igreja a seu favor. Agora, tudo se agravou. Em nome de ajustamentos pastorais, a Exortação A Alegria do Amor, deu instrumentos àqueles que procuram destruir a concepção católica da família.
Compreendo que o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal Ludwig Müller, viva momentos atribulados. Tinha revelado publicamente que se sentia investido da missão de estruturar teologicamente o pontificado do Papa Francisco, pois este não era um teólogo profissional. Não sei se por vaidade ou megalomania, lutou até à última para desautorizar as posições que acabaram por vingar na Amoris laetitia. Paradoxalmente, é este documento que exige revisões no ensino da teologia moral, denunciando a moral fria de escritório[iii]. Terá ele a humildade suficiente para repensar a sua teologia algo enfatuada?
Bergoglio reparte as responsabilidades pastorais, precisamente porque todos somos Igreja. Ele convoca, não substitui, mas dá o seu contributo e, neste caso, incontornável. Fala da alegria do amor com muita alegria e pouca solenidade. Sabe que hoje muitos noivos escolhem para a celebração do casamento o hino de S. Paulo[v] à caridade. Como esta é confundida com uma esmola, passou a ser traduzida por amor e o Papa embarcou nesta opção. As leituras na missa têm tão pouca sorte, que a homilia ou as repete ou interpreta o que ninguém ouviu. Como este pontífice tem muita experiência dessa desgraça, resolveu comentar este hino, estrofe a estrofe. Confesso que não conheço nada de mais adequado para os CPM[vi] e os retiros de casais.
Se não me engano, é devido ao amor que move o seu pensamento, os seus passos e as suas mãos. Se fosse apenas um conhecimento científico da realidade, este criava, automaticamente, uma distância analítica, especulativa, como o daqueles que sabem tudo, mas não mexem uma palha. A sua teologia é unitiva: é um conhecimento que nasce da alegria do amor e alimenta a investigação contínua e concreta. Não é daqueles que fazem um curso de teologia, ou até um doutoramento, e ficam dispensados de pensar e investigar até ao fim da vida. Como nada os surpreende, também não surpreendem ninguém.
Na apresentação do documento final dos movimentos que se dedicaram aEscutar a Cidade[vii], tive a alegria de ouvir a teóloga Cátia Sofia Tuna, cruzando experiência social e cultural, prática teológica e espiritualidade, apontando caminhos a percorrer e metas a atingir, para escutar sempre a voz de Deus, nas vozes do mundo.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 24.04.2016
[i] Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 28. Outubro. 2014
[ii] L’enseignement social de l’ Église selon le pape François, NRT 138 (2016) 273-288
[iii] Amoris laetitia, n.311-312
[iv] Comunicado de imprensa do IMWAC, Munique / Roma, 8 de Abril de 2016
[v] 1 Cor 13, 1-13
[vi] Cursos de preparação para o matrimónio
[vii] Contributos para o Sínodo da Diocese de Lisboa
A. No centro de tudo está o amor
Cristo deixou-nos uma preciosa herança, cheia de preciosos ensinamentos. Creio que podemos resumir tudo em três mandamentos, aliás intimamente interligados: o mandamento missionário («ide por todo o mundo, pregai o Evangelho», Mc 16, 15), o mandamento da Eucaristia («fazei isto em memória de Mim», 1Cor 11, 24) e o mandamento do amor («amai-vos uns aos outros como Eu vos amei», Jo 15, 12). O amor é o corolário, a fonte e o centro. É o amor que faza missão. É o amor que faz a Eucaristia. Que é a missão senão um gesto — e uma interminável gesta — de amor? E que é a Eucaristia senão um permanente mistério de amor? De resto, a Eucaristia é o «mistério da fé» na exacta medida em que é um perfeito mistério de amor. É que, como bem notou Hans Urs von Balthasar, «só o amor é digno de fé». Só o amor que dá a vida é digno de fé na nossa vida.
Daí que a Igreja, não sendo uma democracia, deva ser mais — e nunca menos — que uma democracia. O que nela há-de prevalecer não é a «craciofilia» (amor do poder), mas a «filocracia» (poder do amor). É por este poder, pelo poder do amor, que as pessoas notarão que seguimos Jesus. O amor do poder tem esganado a vida de muita gente. Só o poder do amor transformará a vida de toda a gente.
B. A verdadeira «regra de ouro»
3. Jesus apresenta-nos a verdadeira «regra de ouro» ao dizer: «É este o Meu mandamento: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei»(Jo 15, 12). Na verdade, a «regra de ouro» tem sido apontada, ao longo dos tempos, como a alavanca para a convivência humana. Ela costuma ser apresentada de uma forma minimal: «Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti». Há quem atribua esta máxima a Confúcio. O certo é que ela já aparece gravada no Antigo Testamento, mais concretamente, no Livro de Tobias: «Aquilo que não queres para ti, não o faças aos outros»(Tb 4, 15). A sabedoria islâmica parece mover-se no mesmo registo quando estipula: «Não ofendas e não serás ofendido».
O próprio Jesus, no Sermão da Montanha, retoma este preceito, dando-lhe uma formulação positiva: «Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-lho vós também»(Mt 7, 12). Ou seja, enquanto antes se ensina a não fazer o mal, agora Jesus vai mais longe: em vez da proibição de fazer o mal, Ele convida-nos a fazer o bem ao nosso semelhante. Mais tarde, dá um passo em frente e coloca a «regra de ouro» sob a égide do amor, como já o fizera o Livro do Levítico: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo»(Mt 22, 39; cf. Lev 19, 18).
Genericamente, o princípio é positivo, mas na prática pode não ser capaz de evitar algumas colisões. O que eu desejo para mim pode não ser desejado pelos outros. Já agora, não será descabido ressalvar que limitar-se a fazer o que os outros pretendem também não será opção totalmente segura. É que aquilo que para os outros é bom pode entrar em choque com aquilo que a minha consciência me determina como bem.
C. O critério do amor é Jesus
5. Neste encontro com os Seus discípulos, Jesus toca o extremo da «regra de ouro». O importante, agora, já não é apenas não fazer o que os outros não querem nem tão-pouco fazer o que, segundo eu, os outros anseiam. O importante é fazer aos outros o que Jesus faz, o que Jesus lhes faz.
O critério é Jesus. A novidade do Seu mandamento, como percebeu Sto. Agostinho, está no facto de não propor um amor meramente humano, mas o Seu próprio amor. Aliás, Jesus também nos ama com o amor do Pai: «Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei»(Jo 15, 9). Permanecer no amor de Cristo é, portanto, permanecer no amor do Pai (cf. Jo 15, 9).
O amor não é o que eu sinto, é, antes de mais, o que eu recebo. Concretizando, o meu amor é o amor de Cristo em mim, é o amor de Cristo através de mim. Verdadeiramente, então, só teremos amor no amor de Cristo. Ora, o amor de Cristo — ou, melhor, o amor que é Cristo — não é amor de posse, é amor de dádiva. O amor de Cristo — o amor que é Cristo — é amor que só sabe dar; é amor que doa; é amor que se doa.
D. Tanto amor nos lábios, tão pouco amor na vida
7. Deste modo, não há limites para o amor. O maior amor é o amor que dá mais. O amor total é o amor que dá tudo. Foi assim que muitos, como Sto. Agostinho, perceberam que a medida do amor é o amor sem medida, é o amor desmedido. Jesus avisou: «Não há maior prova de amor do que dar a vida pelos amigos»(Jo 15, 13).
E pelos inimigos não se deve dar a vida? A pergunta fará algum sentido já que o mesmo Jesus, no Sermão da Montanha, insistira no amor também pelos inimigos (cf. Mt 5, 44). Só que, ao dar a vida, todos passam a ser amigos. Não há servos nem inimigos. Para Jesus, todos são amigos. A Sua amizade é oferecida a todos. O que pode acontecer é que nem todos aceitem essa amizade. Afinal, já S. Francisco se lamentava, dizendo que «o Amor não é amado». Nem sempre o amor é amado. Mas, mesmo quando não é amado, o amor há-de ser continuamente oferecido.
É isso que importa, mas é isso que falta. É o amor que importa, mas é o amor que falta. Muito se fala de amor, mas há tanta falta de amor. Tanto amor nos lábios, tão pouco amor na vida. Até na Igreja, que é a «casa do amor», se nota, por vezes, falta de amor. Há falta de amor porque não bebemos na fonte de amor, que é Jesus Cristo.
E. Um pouco de amor nunca é pouco
9. Voltemo-nos, então, para Cristo. É pelo amor que mostramos que estamos com Ele e, por Ele, no Pai. Se nós somos imagem e semelhança de Deus (cf. Gén 1, 26) e se Deus é amor (cf. 1Jo 4, 8.16), então é pelo amor que demonstramos a nossa fidelidade a Deus.
João é muito claro: «Se Deus nos amou, também nós devemos amar-nos uns aos outros»(1Jo 4, 11). Só o amor atrai Deus, só o amor deixa ver Deus: «Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e em nós o Seu amor é perfeito»(1Jo 4, 12). Entre Deus e o amor existe uma identidade completa: «Deus é amor; quem permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele»(1Jo 4, 16).
O Cristianismo é, geneticamente «a religião do amor». O amor está no código genético da Igreja. Os cristãos da primeira hora eram conhecidos pelo empenho que punham na vivência do «mandamento novo do amor». Que os cristãos desta nossa hora não esqueçam o mandamento que nunca deixa de ser novo. Anunciemos a todos o Deus do amor. E depositemos em cada pessoa um pouco do incomensurável amor de Deus. Um pouco de amor nunca é pouco. Um pouco de amor é sempre muito. Porque, em Deus, o amor é tudo, é para sempre!
Do blogue THEOSFERA
Se alguém tentasse fazer uma enciclopédia do humor e do riso provocados pelas figuras da Bíblia, dos evangelhos, da história da Igreja, dos monges do Deserto, da prática dos sacramentos, da vida dos santos, das devoções, do céu, do inferno e do purgatório, nos diferentes países e continentes, teria matéria hilariante para muitas vidas. Pode ser intermitente, mas na área católica, nunca se esgota.
Depois do sisudo catolicismo da primeira parte do século XX, foi eleito papa, João XXIII. Passado pouco tempo, perguntaram-lhe: quantas pessoas encontrou a trabalhar no Vaticano? – Mais ou menos metade. Quando é que decidiu convocar o Concílio? – Quando estava a fazer a barba. Os seus Fioretti correram o mundo.
Ao angustiado Paulo VI, sucedeu João Paulo I, o abreviado Papa do sorriso. Esquecendo-se de que estava no Vaticano, continuou com o seu costume de chamar a Deus Pai e Mãe e de manifestar, com bonomia, a vontade de varrer a cúria romana. Não teve sorte.
Veio um longo inverno e depois precipitou-se a primavera com um argentino, chamado Mário Bergoglio que, sendo jesuíta, se fez franciscano radical, Francisco. Parece habitado por uma paixão estranha que mistura indignação e misericórdia, bom humor e gestos proféticos, reforma da cúria vaticana e deslocação às periferias mais abandonadas. Desde a primeira Exortação Apostólica até à mais recente, tudo é feito por causa da alegria[i].
Entretanto, o Papa não se limita a mostrar que esses são becos sem saída. Adverte, no entanto, que devemos ser humildes e realistas para reconhecer que, às vezes, a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reacção de autocrítica. Além disso, muitas vezes apresentamos de tal maneira o matrimónio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase, quase exclusiva, no dever da procriação.
Bergoglio lembra que não fizemos o acompanhamento dos jovens casais nos primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimónio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efectivas das famílias tais como são.
Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertámos a confiança na graça, levou a que o matrimónio deixasse de ser desejável e atraente; muito pelo contrário[iii].
Muitas vezes agimos na defensiva e gastamos as energias pastorais multiplicando os ataques ao mundo decadente, com pouca capacidade de propor e indicar caminhos de felicidade. Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimónio e a família, como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis, como a samaritana ou a mulher adúltera[iv].
Hoje, destacamos apenas a mudança radical de atitude e de método da pastoral da Igreja sobre a família, realidade incontornável na sua diversidade, em todos os povos e culturas. Triste seria uma pastoral das falências[v] sem apontar os caminhos para a alegria do amor sem a qual não se pode falar de família[vi].
Frei Bento Domingues, O.P.
Público 17.04.2016
[i] Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho), 24. 11.2013; Laudato Sí (Louvado sejas), 24. 05. 2015; Amoris Laetitia (A alegria do Amor), 19.03.2016
[ii] Amoris Laetitia, 32-39
[iii] Amoris Laetitia, 36
[iv] Amoris Laetitia, 38
[v] Amoris Laetitia,308
[vi] Os itálicos das citações da Exortação Apostólica são da minha opção
No entanto, quando parece que se chegou à degradação sem remédio, surge sempre uma esperança. A título de exemplo, cito o Profeta Isaías[4]: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz (…) porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado que anuncia uma paz sem fim”. A IV Bucólica de Virgílio[5] parece copiada desse profeta. No seu poema há também um Menino que vai deixar o mundo livre do medo, governando a terra em paz.
Os cristãos viram nessas figuras míticas do Menino, Jesus de Nazaré, o príncipe da paz, cuja proposta foi rejeitada em público e em tribunal. Acabou na cruz. Este facto foi tão traumatizante para os discípulos que lhes matou a esperança. Todas as narrativas da Ressurreição testemunham que se sentiram completamente perdidos. O Ressuscitado encontrou, nas mulheres que o seguiram e procuravam, as evangelizadoras dos apóstolos, paralisados pelo medo. A era da audácia, dentro e fora do judaísmo, é atribuída à irrupção do Espírito de Cristo.
Na Idade Moderna, entramos noutro mundo. Desenvolveu-se a suspeita de que a religião era a fonte de todos os males, de todas as opressões, de todas as guerras. Para que o ser humano fosse livre e criador do seu destino, precisava de se desfazer da ideia de Deus. As ciências e as técnicas acabariam por vencer todas as interrogações de ordem psicológica, metafísica e religiosa.
O liberalismo desconstrutivista transferiu para os seres humanos os atributos divinos.
As ciências, as técnicas e as suas indústrias acabarão por criar o pós-humano. O niilismo de todos os juízos de valor liberta o terreno de preocupações éticas e deixa o pragmatismo puro e duro à solta. Em breve conheceremos a mecânica da biologia humana e desaparecerá o inconsciente individual e colectivo. Seremos transparentes.
As sociedades democráticas ocidentais são e serão, cada vez mais, heterogéneas. A imigração configurou uma paisagem humana e religiosa multicolor. Esta situação exige especiais cuidados para que a integração se faça de tal modo que todos se reconheçam, ao mesmo título, cidadãos do mesmo país, em direitos e deveres.
Qual o papel das religiões numa sociedade democrática? Tentar reduzir o seu papel às sacristias é ilusório. Deixar que, em nome das religiões e do seu peso numérico, dominem o espaço público é minar o papel da cidadania, da política e da religião. Não basta uma cultura do diálogo inter-religioso. A cultura do diálogo deve atingir a vida da cidadania, da política e da religião. Sem distinguir o papel de cada uma destas dimensões, criam-se conflitos desnecessários. Não se resolvem negando às religiões, que respeitam as regras da democracia, a sua voz no espaço público.
O papel dos cristãos consiste em saber que, em cada época, lhes compete praticar e proclamar uma religião universal: fazer aos outros aquilo que gostamos que os outros nos façam. A lei da reciprocidade completada pelo amor aos próprios inimigos[8].
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 10.04.2016
A. A fraqueza forte não se deixa vencer pelaforça fraca
Hoje em dia, parece que andamos longe desta bússola. E embora professemos o contrário, no fundo limitamo-nos a seguir os critérios humanos, os critérios das correntes dominantes entre os homens. Falta-nos esta ousadia dos começos. Falta-nos esta capacidade de risco. Falta-nos, enfim, esta disponibilidade para enfrentar os perigos. Faltar-nos-á fé?
Donde lhes vinha toda esta força, toda esta determinação, quase a tocar a temeridade? Afinal, a natureza dos apóstolos não era muito diferente da nossa. Também eles eram frágeis, também eles eram fracos. Mas deixaram-se revestir pela força de Cristo. Foram fortalecidos por Cristo. A sua fraqueza foi fortalecida. E foi esta fraqueza forte que superou a força fraca de tantos oponentes.
B. É mais forte quem é açoitado do que quem açoita
3. Se repararmos bem, é mais forte quem sofre os açoites do que quem açoita. Os judeus mandaram açoitar os apóstolos (cf. Act 5, 40). E, pelo que podemos ver, os que açoitaram ficaram apreensivos, ao passo que os açoitados ficaram alegres. E porquê? Não por qualquer impulso masoquista, mas por um impulso de amor. De facto, os apóstolos, depois de açoitados, saíram cheios de alegria «porque tinham merecido ser ultrajados pelo nome de Jesus» (Act 5, 41).
Já dizia São João de Brito que, «quando a culpa é virtude, o padecer é glória». Mesmo que não seja a glória — muito menos a glória deste mundo — que se procure, sofrer por causa de Cristo não é motivo de tristeza, mas de alegria. Aliás, o próprio Cristo já tinha proclamado felizes os injuriados e perseguidos por causa do Seu nome (cf. Mt 5, 11). E acrescentou dizendo que, no momento dessas injúrias e perseguições, haveria alegria e não tristeza. Uma grande recompensa de Cristo espera os que se entregam por Cristo (cf. Mt 5, 12).
Nunca esqueçamos que ser apóstolo é ser testemunha, é ser testemunha de Cristo, é ser testemunha dos factos de Cristo. Os primeiros apóstolos não hesitaram em apresentar-se como «testemunhas destes factos» (Act 5, 32), isto é, dos factos de Cristo: da Sua vida, da Sua morte e da Sua ressurreição.
C. Ser apóstolo é ser testemunha
5. Ser apóstolo é, essencialmente, ser testemunha. Evangelizar é, acima de tudo, dar testemunho. E o testemunho não se dá apenas, nem principalmente, com os lábios. O testemunho é englobante, envolve tudo: a palavra, as atitudes, a vida e a própria morte.
É por isso que, em grego, testemunha diz-se «martyr». Os mártires são aqueles que testemunham o Evangelho até ao fim, até à morte, até à última gota de sangue. Há uma passagem do Concílio Vaticano II pouco conhecida («Lumen Gentium», 8), mas que muito me tem feito pensar. Diz que Cristo salvou o mundo pela pobreza e pela perseguição. E acrescenta que é pela pobreza e perseguição que seguimos o Senhor. Já Santo Agostinho assinalava que caminhamos nesta vida entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus. A experiência diz que é nas perseguições do mundo que mais experimentamos as consolações de Deus.
Hoje, como sempre, precisamos de testemunhas, que, no fundo, são os maiores mestres. Enzo Bianchi assinalou que a humanidade precisa mais de testemunhos do que de depoimentos. O testemunho não corre só pelos lábios; escorre por toda a vida. O melhor depoimento não é o que se escreve em livro; é o que se inscreve na vida.
D. O Ressuscitado continua presente
7. É espantoso notar como, nos começos da Igreja, tudo estava centrado no «nome de Jesus». O Seu nome mudou tantas vidas porque o Seu nome é, Ele próprio, fonte de vida. Curiosamente, os comentadores costumam chamar aos capítulos 3, 4 e 5 dos Actos dos Apóstolos a «secção do nome», dado que eles se concentram no anúncio do nome de Jesus (cf. Act 3,6.16;4,7.10.12.30;5,28.41). O nome de Jesus é o próprio Jesus.
O resumo dos versículos 30, 31 e 32 contém os elementos fundamentais do anúncio e da pregação: morte na cruz, ressurreição, exaltação à direita de Deus, a Sua apresentação como salvador. Eis o que, também hoje, somos chamados a testemunhar: que Jesus morreu por nós e ressuscitou para nós. Esta tem de ser a prioridade. Este anúncio nunca está terminado e jamais pode ser dado por concluído.
É interessante notar que a ressurreição não traduz uma ausência. Jesus ressuscitado continua presente na vida dos Seus discípulos. Vai ter com eles ao mar, à sua tarefa quotidiana. Jesus ressuscitado vem sempre ter connosco, vem sempre ao nosso encontro. E tudo se transfigura com a presença de Jesus.
E. É da Sua inspiração que vem toda a orientação
9. Sem Jesus, nada é fecundo; com Jesus, tudo é abundante. A pesca de noite simboliza o tempo da escuridão. Só Jesus é o dia, só Jesus é a luz para cada dia. Sem Jesus, a pesca é um fracasso. É a Sua presença que faz toda a diferença. Os discípulos eram profissionais da pesca. No entanto, naquela noite, «não apanharam nada» (Jo 21, 3). Foi a palavra de Jesus que alterou a situação. Eis o que Jesus disse naquela altura: «Lançai a rede» (Jo 21, 6). Eis o que Jesus está sempre a dizer: «Lançai a rede».
Lancemos, pois, todas as redes. São os braços de Jesus que movem os nossos braços. Com Jesus, a rede, antes vazia, enche-se. Esta rede é imagem da Igreja de Jesus. Sem Ele, a Igreja não funciona, só desfunciona. Os 153 grandes peixes (cf. Jo 21, 11) são figura de uma Igreja sobrelotada, em que todos têm lugar. A rede tem de ser lançada a todos. Nem todos virão na rede. Mas a todos deverá chegar esta rede.
Mas Pedro depende sempre de Jesus. Jesus entrega a pesca a Pedro e os discípulos. Mas a pesca só é abundante quando Pedro e os discípulos seguem as indicações de Jesus. Hoje em dia, Jesus quer agir através de nós. Mas nós temos de estar sempre unidos a Ele. Até porque sem Ele nada poderemos fazer (cf. Jo 15, 5). Sem a Sua inspiração, só haverá desorientação!
Do blogue THEOSFERA
O que eu deveria questionar, segundo dizem, era o estado lamentável em que se encontra a liturgia da Igreja, nomeadamente a da Semana Santa. Não enche as igrejas nem as almas. A pergunta que os padres não deveriam evitar seria esta: porque será que os feriados de cariz religioso e os próprios domingos servem sobretudo para umas miniférias dos laicos e dos católicos não praticantes, cada vez mais numerosos?
Um dia abordarei o que há de interessante e falacioso nesta pergunta. Se os feriados religiosos servem para um merecido “descanso”, já não é mau. A mítica e bela narrativa da Criação coroa de humor um Iavé feliz e fatigado: Deus concluiu no sétimo dia a sua obra e descansou (Gn 1-2).
Esta justificação, ao mais alto nível teológico, do descanso semanal é uma das expressões mais sublimes desta versão cósmica e humanista da sabedoria divina. Quando o dia da liberdade se perverteu com ritualismos opressivos, um judeu, Jesus da Nazaré, foi radical na denúncia das instituições religiosas ou outras: o sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado (Mc 2,27).
O dia do culto que não seja o da celebração da alegria e da liberdade é um insulto a Deus. O homo faber, a tempo inteiro, é um escravo ou um idiota. Não é um criador.
O programa que Jesus apresentou publicamente era um manifesto libertário. Para o tornar possível desmascarou as tentações diabólicas da dominação económica, política e religiosa. Nunca quis o sacrifício, a opressão, o sofrimento, a cruz, a morte. Tudo isto lhe foi imposto, porque preferiu ser preso, torturado, crucificado, a trair o seu projeto de fraternidade ilimitada. Preferiu ser morto a trair o sentido último da sua vida.
Por tudo isto, a Cruz de Jesus, resultado imediato de um crime jurídico de natureza política, tornou-se o símbolo da generosidade e da extrema fidelidade. Nada tem a ver com a sacralização do sofrimento, como muitas vezes ainda ressoa na liturgia e na espiritualidade. Os sacrifícios exigidos pela fidelidade ao amor são a glória da vida humana. O amor do sofrimento é uma doença grave!
Passando em revista todas as narrativas e interpretações do processo de Jesus, retenho o retrato dos Actos dos Apóstolos:coligaram-se, nesta cidade, contra o teu servo Jesus que ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com as nações pagãs e os povos de Israel (Act 4, 17-18).
O extraordinário movimento litúrgico do séc. XX e que preparou a reforma da Semana Santa nos anos 50, consagrada no Vaticano II, teve muitas oscilações na sua orientação. Tanto o modelo monacal como o pastoral tiveram sempre dificuldade em perceber que não é Deus que precisa do culto litúrgico. É o ser humano que o exige para ser cristão na transformação da vida em todas as suas dimensões: imanente e transcendente, interior e exterior, pessoal e social.
A Eucaristia celebra a memória do itinerário de Jesus Cristo para não nos perdermos do essencial nos labirintos do quotidiano. Na parábola do bom samaritano, o sacerdote e o levita para não falharem o encontro com Deus no culto do Tempo, falharam o encontro com o próximo, o ser humano espancado e atirado para a valeta. O próximo é a nova categoria social dos sem categoria: o estrangeiro, o excluído de quem nos aproximamos. O amor incondicional – a caridade – é o sentido escondido do social, passa pelas instituições, mas nunca se reduz ao que elas podem abranger. Nas sociedades acontece o inesperado, a alteridade irredutível, do qual também somos responsáveis, onde devemos reconhecer o humano, o irmão sem qualquer outra etiqueta, gente da família!
Não adianta lamentar a diminuição da prática religiosa dos cristãos. O que importa perguntar: qual é a dimensão interior e política dessa prática em favor da transfiguração da Europa aberta à transformação do mundo?
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 03.04.2016
A. O grande sinal da Páscoa
Tantas vezes, o nosso estado de espírito é semelhante ao destes discípulos. Também nós estamos com «as portas fechadas» e cheios de «medo» (cf. Jo 20, 19). Estamos fechados por causa do medo, estamos com medo por causa de estarmos fechados. Até parece que a Páscoa ainda não aconteceu, até parece que a Páscoa ainda não passou. Ou, então, até parece que a Páscoa já passou completamente. Mas, tal como há dois mil anos, Jesus não desiste. Ele é a chave que abre o que está fechado e o destemor que vence o medo.
A paz da Páscoa é a aurora de um mundo novo e o alicerce de uma vida inteiramente renovada. É esta paz da Páscoa que se respira na Igreja dos primeiros tempos. É esta paz da Páscoa que leva os seus membros a terem «um só coração e uma só alma»(Act 4, 32). Era Jesus que os unia. Por causa dessa união, punham tudo em comum (cf. Act 4, 32). Ninguém tinha nada e a ninguém faltava nada. Eis o grande sinal da Páscoa: ninguém considerava seu o que era comum; todos optavam por considerar comum o que era seu (cf. Act 4, 32-34).
B. A nossa missão é a missão de Jesus
3. Que belo alicerce encontramos aqui para o «Estado social»! Este só tem sustentação quando a necessidade prevalece sobre a posse. O outro é visto não como problema ou entrave, mas como prioridade. Quando o outro é a prioridade, ninguém passa mal. Quando o tu é a prioridade para cada eu, ninguém acumula o supérfluo, todos têm acesso ao essencial.
Infelizmente, hoje há poucos opulentos e muitos necessitados. Há poucos que têm muito e muitos que têm pouco ou quase nada. Entre os cristãos da primeira hora, não havia «qualquer necessitado»(Act 4, 34). Tertuliano dá-nos conta do espanto dos que não eram cristãos quando olhavam para o comportamento dos cristãos: «Vede como eles se amam!» No fundo, eles apercebiam-se de como a palavra dos lábios se repercutia na palavra da vida.
Uma vida ressuscitada é uma vida enviada. A nossa missão há-de ser a missão do próprio Jesus. Como Ele fez, façamos nós também (cf. Jo 13, 15). Uma vez que Ele veio para servir, nós também somos chamados a servir (cf. Mt 20, 28). Quem não serve, não serve para a missão.
C. Alguém viu para crer; nós cremos para ver
5. Ao soprar sobre os discípulos, Jesus quer vincar a identificação da missão dos Seus discípulos com a Sua missão. É curioso notar que o verbo aqui utilizado é o mesmo do texto grego de Génesis 2,7, quando se diz que Deus soprou sobre o homem, infundindo-lhe a vida de Deus. Com o «sopro» do Génesis, o homem torna-se um ser vivo; com este «sopro», os discípulos de Jesus tornam-se pessoas novas.
A partir de agora, os discípulos possuem o Espírito, para poderem dar-se generosamente aos outros. Trata-se de um espírito de perdão, que aliás o próprio Jesus já tinha assumido na Cruz. O perdão de Jesus é oferecido na Igreja de Jesus (cf. 20, 23). É na Igreja que encontramos Jesus. É na Igreja que reencontramos o perdão de Jesus.
Acontece que, naquela tarde, um dos discípulos não estava presente. Não acreditou no testemunho dos outros: quis ver para crer. Para Tomé, ver foi o caminho para crer. Para nós, crer há-de ser o caminho para ver. No fundo, nós sentimos que só vemos quando cremos. A fé é luz, é uma visão, é uma iluminação. A experiência diz que a fé não nos isenta de dúvida. Tantas são as vezes em que a fé tem de conviver — e nem sempre de forma pacífica — com a dúvida.
D. É a «porta das chagas» que nos leva à fé
7. É fácil censurar Tomé, mas quem pode negar que, em nós, sobrevive muito de Tomé? É por isso que, tal como insinua o seu apelido, ele é nosso «gémeo» e nós somos «gémeos» dele. S. Gregório Magno até reconheceu que «a incredulidade de Tomé foi mais útil para a nossa fé do que a fé dos discípulos crentes». De facto, tal incredulidade atesta que as nossas dificuldades não são únicas nem foram as primeiras. Só que nem a incredulidade constitui obstáculo para a fé. Há muitos que passam da fé para a incredulidade. Tomé ensina-nos que é possível passar da incredulidade para a fé. Nossa é, muitas vezes, a hesitação de Tomé. Nossa deverá ser também a confissão de Tomé.
«Meu Senhor e meu Deus!»(Jo 20, 28) é a maior proclamação de fé na divindade de Jesus que existe no Novo Testamento. Mas, para isso, foi preciso passar pela dúvida, pela incredulidade. Foi preciso ver o ferido e tocar nas feridas. É fundamental não esquecer que à fé chegamos pela «porta das feridas».
Tirar as chagas de Cristo é o mesmo que desfigurar Cristo. E retirar Cristo das chagas é o mesmo que agravar — ainda mais — as (nossas) próprias chagas. Uma religiosidade telegénica, que não aterra nas chagas da vida, é por muitos exaltada. Mas será muito exaltante? Tomás Halik não acredita em «religiões sem chagas». Não foi pelas chagas que fomos curados (cf. Is 53, 5; 1Ped 2, 24)?
E. Cuidar das feridas, não ferir
9. Também hoje, neste nosso tempo de contrastes, Jesus continua a convidar-nos a colocar o nosso dedo nas Suas chagas (cf. Jo 20, 27). Nas chagas de tantos irmãos nossos, continuamos a poder tocar no próprio Jesus. Quem toca nas chagas deste mundo toca em Jesus. O caminho que Jesus propôs a Tomé é o caminho que continua a propor a cada um de nós: tocar nas chagas desta vida. Quem não olha para os feridos está a ferir o próprio Jesus Cristo.
Há tanta gente ferida e há tanta gente a quem nós ferimos. O caminho de Tomé há-de ser, pois, o nosso caminho: não ferir, mas tocar nas feridas para ajudar a sarar as feridas. Jesus ressuscitado continua no tempo, ao lado daqueles que estão feridos em cada tempo. É com as nossas mãos que Ele quer tocar nessas feridas. É ao tocar nessas feridas que nós acabaremos por tocar no próprio Jesus. Afinal, alguém já sofreu o que nós sofremos. Alguém já passou o que nós passamos. E se Jesus tudo conseguiu vencer, como é que nós haveríamos de estar impedidos de triunfar? É com Jesus que tocamos tantas chagas. Será por Jesus que havemos de vencer todas as feridas.
Que fique, então, tudo de parte. Que só fique o amor. E quando fica o amor, fica tudo: fica Deus e ficamos todos nós em Deus. É a Páscoa plena. E a felicidade total!
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