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DEUS NÃO DESISTE DE NÓS, NÃO DESISTAMOS NÓS DE DEUS (Terceiro Domingo da Quaresma)

por Zulmiro Sarmento, em 29.02.16
 

A. Deus não castiga, mas avisa

  1. Se as «pancadas da vida» transtornam, as «marteladas de Deus» podem despertar. Dizem que o saudoso Pai Américo falava muito das «marteladas» de Deus. E acrescentava que tudo foi diferente na sua vida depois de receber tais «marteladas». Não é Deus que nos dá «pancada», mas é Deus que, tantas vezes, nos fala através de tantas «marteladas».

Deus não é vingativo, punitivo ou castigador. Deus não castiga, mas avisa. E aquilo que, quase sempre, interpretamos como castigos de Deus são, acima de tudo, avisos de Deus. São, portanto, situações que servem para excitar não a nossa revolta, mas a nossa conversão.

 

  1. No Seu ensinamento, Jesus recorre a duas situações trágicas para nos convidar (precisamente) à conversão. Num caso, foi Pilatos, conhecido pela sua crueldade, que mandou matar uns galileus (cf. Lc 13, 1). No outro caso, foi uma torre que, ao cair, matou 18 pessoas (cf. Lc 13, 4). Perante as duas tragédias, Jesus diz a mesma coisa aos Seus circunstantes: «Se não vos arrependerdes, morrereis de maneira semelhante» (cf. Lc 13, 3.5).

Jesus não está a pensar numa punição ou num castigo, tanto mais que aqueles que morreram não eram mais pecadores que os outros (cf. Lc 13, 2.4). Morreram aqueles como poderiam ter morrido outros. Jesus está a pensar no pecado, na resistência à conversão. Se não há conversão, há morte. Afinal, todos estamos expostos às investidas de um tirano ou à queda de uma torre. Afinal, todos estamos expostos ao pecado. Se não nos apercebemos do perigo e se não mudamos de vida, poderemos cair, tropeçar e morrer.

 

B. Sempre à espera dos nossos frutos

 

3. Jesus reforça o aviso e o convite à mudança através da (muito) sugestiva parábola da figueira. Trata-se de uma figueira estéril, de uma figueira que não produz, de uma figueira que não dá fruto (cf. Lc 13, 6). A nossa vida, muitas vezes, também é assim, como a figueira. A nossa vida também parece estéril, também parece que não dá frutos.

Quando tal acontece, o normal é que o dono mande abater uma árvore que se torna inútil. Afinal, o dono já tinha sido paciente, já tinha dado muitas oportunidades ao logo de três anos. Mas em nenhum momento, ao longo destes três anos, o dono encontrou o que esperava: frutos (cf. Lc 13, 7). Também Deus faz tudo por nós e passa tanto tempo sem encontrar o que de nós espera: frutos, frutos de conversão, frutos de mudança.

 

  1. Sucede que o vinhateiro intercede pela figueira (cf. Lc 13, 8). Pede ao dono que lhe dê mais uma oportunidade, que lhe conceda um quarto ano de vida. A voz do vinhateiro representa a voz da misericórdia a prevalecer sobre a voz do juízo. Assim é Deus connosco: sempre a acreditar em nós, sempre a esperar alguma coisa boa de nós.

Deus, na Sua infindável misericórdia, não desiste de cavar na nossa vida como o vinhateiro cavouà volta da figueira. Deus, na Sua infindável misericórdia, está sempre a fornecer-nos adubopara que a nossa vida possa, finalmente, produzir frutos. Deus não desiste de nós. Será que nós vamos desistir de Deus?

 

D. O «adubo» de Deus

 

5. É interessante notar que a palavra «kópria», que se traduz por «adubo», costuma também ser traduzida por «estrume». E, de facto, é sabido que é o estrume que, muitas vezes, serve para adubar as nossas terras. O estrume não é agradável, mas é necessário. O seu cheiro é desconfortável, mas o seu efeito é eficaz.

Também o esforço de conversão pode não ser agradável, mas o seu efeito é maravilhoso. Por conseguinte, não desperdicemos o «adubo» que Deus coloca na nossa vida. Esse «adubo» é o caminho da conversão, da penitência, da confissão. Esse «adubo» está a ser lançado por Deus, em doses copiosas, nesta Quaresma.

 

  1. Vamos desaproveitar tanto investimento da parte de Deus? A penitência é, como diz a Liturgia, «a segunda tábua de salvação depois do Baptismo». A Quaresma é um tempo penitencial porque a Páscoa é uma poderosa festa baptismal.

É por isso que, neste terceiro Domingo da Quaresma, os catecúmenos começam a fazer os chamados «escrutínios» em ordem ao Baptismo, na Vigília Pascal. E é sempre bom não esquecer que a estruturação do tempo da Quaresma está muito ligada não só à celebração da Páscoa, mas também à celebração do Baptismo.

 

D. Um tempo penitencial que antecede uma festa baptismal

 

7. O Baptismo é um sacramento genuinamente pascal e a Páscoa — pode dizer-se — é um acontecimento verdadeiramente baptismal. De facto, no Baptismo existe uma «peshah», isto é, uma passagem, uma viragem, ou seja, uma páscoa. No Baptismo, também nós passamos da morte à vida. Na Páscoa, Cristo vence a morte que é o pecado. Na Páscoa, Cristo dá a vida para que nós tenhamos vida (cf. Jo 10, 10).

A partir do século III e para responder à necessidade de preparar devidamente o Baptismo, começou a ser estruturado o tempo daQuaresma. Como se depreende da própria palavra, com os escrutínios pretende-se conferir as disposições dos que se preparam para o Baptismo. É nesse sentido que, ao longo de três domingos, a comunidade ajuda os catecúmenos a «escrutinar» a sua debilidade e, ao mesmo tempo, a sua disponibilidade para receber a vida nova de Cristo.

 

  1. A finalidade destes escrutínios é, portanto, purificar os corações, conseguir um sério conhecimento de si mesmo e promover a vontade de seguir, fielmente, a Cristo. Estes escrutínios são feitos aos que são baptizados na idade adulta e às crianças em idade escolar que ainda não estão baptizadas.

No fundo, estes escrutínios servem para sair da «nuvem» de que fala S. Paulo (cf. 1Cor 10, 1) e debaixo da qual vivemos quando estamos longe de Cristo. Só Cristo clarifica o que está escurecido. Só Cristo ilumina o que permanece ofuscado. Só Cristo é luz que, para cada um de nós, reluz. O Baptismo é, pois, um mistério luminoso. Mas se recairmos nas trevas, no Sacramento da Confissão reencontramos a desejada iluminação.

 

E. Amados, não armados

 

9. Não fechemos os ouvidos a Deus, que está sempre a chamar por nós. Deus chama-nos como chamou Moisés (cf. Êx 3, 4). Deus chama-nos no meio da chama (cf. Êx 3, 2). O Seu chamamento é uma chama que nunca cessa, que nunca pára. É uma chama que está sempre a arder, mesmo que nós não a queiramos ver.

Tiremos, pois, as sandálias dos nossos pés (cf. Êx 3, 5). Tiremos as nossas armaduras. Deus ama, não arma. Deus traz-nos amados, não armados. Deus quer que amemos e que não nos armemos.

 

  1. Deus conhece as nossas dores, os nossos sofrimentos, os nossos dramas, as nossas aflições (cf Êx 3, 7). Como libertou Israel, Deus está sempre pronto para nos libertar (cf. Êx 3, 8). Basta que nós deixemos. Como libertador, Deus respeita integralmente a nossa liberdade.

Deus apresenta-Se como aquele que é (cf. Êx 3, 14), ou seja, como aquele que é nosso libertador, como aquele que está ao nosso lado. Deus não é indiferente. O que Ele quer é que a nossa vida seja diferente. Deus não é imparcial e o Seu amor por nós é total. Que a Sua compaixão toque sempre o nosso coração!

Do blogue THEOSFERA

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publicado às 09:38

Esta Quaresma começou bem (1)

por Zulmiro Sarmento, em 22.02.16

 

 

A falta de humor teológico e litúrgico acaba sempre por sacralizar o ridículo.


1. As Igrejas Católica Romana e Católica Ortodoxa, em 1054, consumaram, de forma solene, o seu progressivo divórcio: excomungaram-se reciprocamente. Dizia-me um amigo, pouco entendido em questões de religião: isso de excomunhões deve ser com como lançar um feitiço para o quintal do vizinho. Só funciona se os dois acreditarem nisso.
De facto, quase durante um milénio, foi mantida essa sacralizada ficção. As duas partes faziam de conta que Deus dependia das suas quezílias teológicas e culinárias. Teológicas, porque se imaginavam a viajar pelo interior da Santíssima Trindade e a observar o percurso seguido pela fonte do Espírito Santo. Culinárias, porque não se entendiam acerca do uso do pão, fermentado ou não fermentado, na celebração da Eucaristia, nem reconheciam a cada uma das igrejas a liberdade de seguir a receita da sua preferência.
A falta de humor teológico e litúrgico acaba sempre por sacralizar o ridículo. Certas instituições e pessoas que pretendem manter intacto o depósito da fé e as invioláveis tradições litúrgicas esquecem que não há imagem nenhuma nem nenhum conceito que possam corresponder a Deus. A idolatria confunde a imagem com a realidade. Todas as artes, a começar pela música e pela poesia, são aspirações à plenitude, mas sabem que não são a plenitude, são apenas pontes para o invisível e inaudível. Confessam, no mais sublime que conseguem, o que lhes falta. Como dizia Messiaen, ficam na zona da imperfeição.
A linguagem litúrgica é simbólica, é a poética da fé, mas não é divina. A teologia que esquece que só conhece a Deus como desconhecido resvala para a arrogância pastoral e incapacita-se para reconhecer que lhe falta o essencial: o Outro.
Com o Vaticano II, a Igreja redescobriu que não existe ecumenismo, diálogo inter-religioso e diálogo com o mundo, na sua diversidade, sem o acolhimento do que não pode dominar: Deus e os outros.
2. O abraço de Paulo VI e do Patriarca Atenágoras [1] foi o reconhecimento público de que as Igrejas Católicas Romana e Ortodoxa vivem mal uma sem a outra. As excomunhões, que serviam apenas para camuflar orgulho e vontade de poder, foram anuladas. Só agora [2], no entanto, o Papa Francisco e o Patriarca Kirill saltaram, a pés juntos, um abismo milenar de suspeitas e acusações. Razão tinha Bergoglio quando disse, a propósito de um encontro entre católicos e protestantes: se deixarmos nas mãos de teólogos obtusos o processo ecuménico, teremos de esperar pela eternidade para ver a unidade entre as igrejas cristãs.
Importa destacar que este encontro não foi apenas para que os dois bispos se falassem de viva voz, coração a coração. Foi para que as duas Igrejas se tornassem, em simultâneo, Igrejas de saída para as periferias do Mundo.
A histórica declaração conjunta não precisa de ser explicada. Não é um texto esotérico. Precisa de ser conhecida. Estes irmãos na fé cristã analisaram as relações mútuas entre as duas Igrejas, os problemas essenciais dos seus fiéis e as perspectivas de progresso da civilização humana.
Porque terão realizado este encontro em Cuba? Porque é a encruzilhada entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste. Foi a partir desta ilha, símbolo das esperanças do “Novo Mundo” e dos acontecimentos dramáticos da história do século XX, que dirigiram a sua palavra a todos os povos da América Latina e dos outros continentes.
Destacaram o crescente dinamismo da fé cristã, o forte potencial religioso da América Latina, a sua tradição cristã secular, presente na experiência pessoal de milhões de pessoas, como garantia de um grande futuro para esta região.
Em Cuba, longe das antigas disputas do “Velho Mundo”, sentiram-se mais fortemente a necessidade de um trabalho comum entre católicos e ortodoxos, chamados a dar ao mundo, com mansidão e respeito, a razão da esperança que está em nós [3].
Partilharam a Tradição espiritual comum do primeiro milénio do cristianismo, cujas testemunhas são a Virgem Maria, Santíssima Mãe de Deus e os Santos que veneramos. Entre eles, contam-se inúmeros mártires que testemunharam a sua fidelidade a Cristo e se tornaram semente de cristãos.
Deixaram transparecer o espanto e uma interrogação: como é possível, com uma Tradição comum dos primeiros dez séculos da Igreja, católicos e ortodoxos estarem privados da comunhão na Eucaristia, há quase mil anos?
3. Estamos divididos por feridas causadas por conflitos de um passado distante ou recente, por divergências – herdadas dos nossos antepassados – na compreensão e explicitação da nossa fé em Deus, uno em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Deploramos a perda da unidade, consequência da fraqueza humana e do pecado, ocorrida apesar da Oração de Cristo: Para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti; para que assim eles estejam em Nós [4].
As Igrejas só podem ser fiéis ao projecto de Jesus se procurarem a sua união como serviço da união de todos os seres humanos: para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos[5].
A Quaresma ainda não terminou.



[1] Jerusalém, 6.01.1964
[2] Cuba, 12 de Fevereiro 2016
[3] 1 Ped 3, 15
[4] Jo 17, 21
[5] Jo 11, 52

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publicado às 11:32

NÃO ANDEMOS NAS NUVENS, MAS OUÇAMOS O QUE SE DIZ NA NUVEM (Segundo Domingo da Quaresma)

por Zulmiro Sarmento, em 21.02.16
 

A. Uma preparação para a Paixão

  1. Eis um episódio belo, denso e intenso. Eis um episódio marcante na vida de Jesus e na vida dos discípulos de Jesus. É um episódio tão marcante que o Novo Testamento nos apresenta, dele, quatro versões. Além desta — de S. Lucas (cf. Lc 9, 28-36) —, temos as versões de S. Mateus (Mt 17, 1-9), de S, Marcos (Mc 9, 2-10) e de S. Pedro (2Ped 1, 16-18). Não espanta, por isso, que a Igreja evoque este acontecimento duas vezes em cada ano: no Segundo Domingo da Quaresma e no dia 6 de Agosto. A festa da Transfiguração do Senhor é celebrada no Oriente desde o século V e no Ocidente desde 1457.

Situada entre os dois anúncios da Paixão e da Morte de Jesus (cf. Mc 8, 31-33; 9, 30-32), a Transfiguração prepara os Apóstolos para a vivência dessa mesma Paixão e Morte. Assim, quando virem Jesus na Sua condição de Servo, estarão mais bem preparados para não esquecerem a Sua condição divina.

 

  1. Também hoje, Jesus quer preparar-nos para a vivência do Seu mistério pascal. No fundo, Jesus torna bem claro que o Seu projecto não passa por triunfos humanos, mas pela oferta da vida na Cruz. Jesus sobe para o alto, mas não para o alto do poder. Ele sobe para o alto da Cruz, descendo até à morte. Jesus sobe descendo. Também nós só subiremos até Jesus descendo com Jesus.

É possível que, depois de terem ouvido falar do caminho da Cruz, os discípulos sentissem algum desânimo e frustração. À primeira vista, tudo parece encaminhar-se para um rotundo fracasso. E, no seu pensar, não era só o projecto de Jesus que fracassava. Fracassavam também os sonhos de glórias, de honras e de triunfos dos Seus seguidores. É muito provável que se perguntassem: valeria a pena seguir um mestre que nada mais tem para oferecer do que a morte na Cruz? É neste contexto que S. Lucas insere o episódio da Transfiguração. Trata-se de uma forma de animar os discípulos — e os crentes, em geral —, pois, na Transfiguração, manifesta-se a glória de Jesus e atesta-se que Ele é, apesar da morte que se aproxima, o Filho muito amado de Deus (cf. Lc 9, 35).

 

B. Jesus transfigura-Se e transfigura-nos

 

3. Os discípulos recebem a garantia de que o projecto de Jesus é o projecto do próprio Deus. Não obstante as suas dúvidas, são obsequiados com um suplemento de esperança para continuarem a acreditar no programa de Jesus que se chama Evangelho. Jesus transfigura-Se para nos transfigurar. A Sua figura transforma-se para que toda a nossa vida se transforme. Há todo um envolvimento de Jesus com os discípulos e dos discípulos com Jesus. Esse envolvimento não prescreve. Esse envolvimento permanece para sempre. Também para nós é bom estar com Jesus. Estar com Jesus transfigura a nossa vida e transforma a nossa história. Agora, já não contam os nossos planos; a partir de agora, só devem contar os planos de Jesus.

Temos diante de nós uma teofania, ou seja, uma manifestação de Deus. O autor do relato tem a preocupação de nos fornecer todos os ingredientes que acompanham as manifestações de Deus: o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem e até o medo daqueles que presenciam o encontro com o divino.

 

  1. A iniciativa é sempre de Jesus. Tal como tomou conSigo Pedro, Tiago e João, também hoje nos toma, a nós, com Ele. É Ele que nos atrai, é Ele que nos convida, é Ele que nos faz subir até ao monte alto da Transfiguração. Na Transfiguração, tudo é diferente com Jesus e tudo será diferente em nós se nos dispusermos a transfigurar-nos em Jesus. A brancura das vestes de Jesus não era terrena (cf. Mc 9,3). Nós, na terra, somos convidados a transfigurar-nos em seres não apenas terrenos. Jesus não quer o endeusamento, mas oferece-nos a divinização. É n’Ele que participamos da vida divina (cf. 2Pe 1, 4).

A aparição de Elias juntamente com Moisés (cf. Mc 9, 4) é como uma espécie de sufrágio do Antigo Testamento em relação a Jesus. Ele é o esperado e anunciado. Ele é o Messias anunciado pela Lei (figurada em Moisés) e pelos Profetas (representados por Elias). Ele é o novo Moisés, aquele que vai guiar o povo para a verdadeira libertação, já não pelas águas do Mar Vermelho, mas pelas águas do Baptismo. E Ele é o definitivo profeta, que transfigura o nosso ser e nos encaminha para a Verdade e para a Vida (cf. Jo 14, 6). Desta acção libertadora e profética de Jesus irá nascer um novo homem e um novo povo. É com este homem e com este povo que, em Jesus, Deus vai fazer uma nova Aliança. É com este homem e com este povo que, em Jesus, Deus vai percorrer os caminhos da nossa história.

 

C. A nuvem que dificulta a visão, mas não impede a escuta

 

5. A reacção de Pedro é compreensível. Ele sente que é bom estar ali, com Jesus transfigurado (cf. Lc 9, 33). Por isso, quer fazer três tendas (cf. Lc 9, 33). Acontece que Pedro não sabia — nem podia saber — o que estava a dizer (cf. Lc 9, 33). Ele queria já permanecer com Jesus glorioso. Só que, antes, é fundamental acompanhar Jesus crucificado. Sabemos que tal não foi fácil para Pedro. Será que é fácil para algum de nós?

Antes de armar a tenda junto de Jesus glorioso, é preciso levar Jesus junto de tantos que não têm tendas: nem tendas para viver, nem tendas para comer, nem tendas para dormir, nem tendas para trabalhar. Este ainda não é o tempo de descansar com Jesus. Este é o tempo para, incansavelmente, anunciar Jesus. O caminho de Jesus há-de ser o nosso caminho com Jesus e para Jesus.

 

  1. Os nossos equívocos, tais como os equívocos de Pedro, são unicamente vencidos quando se ouve a voz do Pai. Só em Deus conseguimos superar os nossos limites, sobretudo os limites que podem advir da nossa presunção. Nunca sabemos tão pouco como quando presumimos que já sabemos tudo. A presunção constitui uma derrapagem para o abismo da mais perigosa ignorância.

Não é por acaso que a voz de Deus se faz ouvir através de uma nuvem. A nuvem é o que não deixa ver ou não deixa ver bem. A nuvem é, por isso, o que nos faz sentir que não sabemos tudo e que nem sequer sabemos o bastante. Mas se a nuvem nos impede de ver, não nos impede de escutar. É da nuvem que o Pai fala (cf. Lc 9, 35). É na nuvem que devemos escutar o Pai que fala. Enfim, não devemos andar nas nuvens, mas devemos escutar o se diz na nuvem.

 

D. Mais atentos ao que (ainda) não sabemos

 

7. Seria oportuno que, concretamente nesta Quaresma, prestássemos mais atenção ao que ainda não sabemos sobre Deus. E que, em consequência, estivéssemos mais atentos à voz que nos chega a partir de tantas nuvens.

Na Sagrada Escritura, Deus surge, muitas vezes, através das nuvens. É natural que, ao olhar para uma nuvem, só reparemos na obscuridade, no cinzento ou em tons ainda mais carregados. Era bom que nos habituássemos a estar atentos também à sua leveza e à sua subtileza. A grande luz é a que nos vem de além das nuvens, não a que se enxerga imediatamente para cá das nuvens.

 

  1. É preciso ter em conta que, segundo a Bíblia, «nuvens e trevas» envolvem a presença de Deus (cf. Sal 97, 2). Assim sendo, o principal sobre Deus pode estar no que (ainda) não sabemos. Muitas vezes, o que dizemos acerca de Deus diz mais sobre nós do que sobre Deus.

Como bem frisou Karl Rahner, nem a palavra Deus é adequada para dizer Deus. A própria palavra Deus é uma criação humana. Por conseguinte, quando falamos sobre Deus, falamos habitualmente do que os seres humanos têm dito sobre Deus. Alguém pode garantir que tal dizer sobre Deus corresponde cabalmente ao ser de Deus? Sto. Agostinho não alimentava ilusões: «Por mais altos que sejam os voos do pensamento sobre Deus, Ele está sempre mais além».

 

E. Só Deus deixa ver Deus

 

9. Deus é luz (cf. Sal 27, 1), mas, como avisa S. Paulo, parece habitar numa luz inacessível, numa luz que ninguém vê (cf. 1Tim 6, 16). A morada de Deus parece ser a nuvem (cf. Sal 97, 2), que é um manto de obscuridade que se interpõe entre nós e a luz. Mesmo assim, Deus não deixa de vir ao nosso encontro. Deus vem até nós através da nuvem (cf. Êx 19, 9), falando connosco por entre nuvens (cf. Êx 24, 6; Mt 17, 5).

Tudo isto significa que só vemos Deus quando O vemos com os olhos de Deus. Só na Sua luz encontramos a luz (cf. Sal 36, 5). É por isso que Deus envia o Seu Filho. Ele é a luz de Deus para cada homem (cf. Jo 1, 9) e para todo o mundo (cf. Jo 8, 12). Como confessamos no Símbolo, Jesus é a «luz da luz». É a luz que vem da luz para acender, em nós, mais luz. É a luz que vence a nebulosidade das próprias nuvens. É a luz que nos deixa ver a Luz.

 

  1. Com Abraão, que cada um de nós diga: «Aqui estou»(Gén 22, 1). Que cada um de nós esteja atento quando Deus nos visita, ainda que nos visite através de alguma das muitas nuvens que se atravessam nos nossos caminhos. Que cada um de nós esteja atento quando Deus nos fala. E que cada um de nós não esmoreça — nem desfaleça — diante dos obstáculos.

Como recorda S. Paulo, «se temos Deus por nós, quem poderá estar contra nós?»(Rom 8, 31). Deus ofereceu-nos o melhor que tinha, o melhor que tem: o Seu próprio Filho, que Ele entregou para dar a vida por nós (cf. Rom 8, 32). Se Deus dá o melhor por nós, como é que nós não havemos de dar o melhor a Deus?

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publicado às 00:10

«O TEMPO DE DEUS CHEGOU» (Primeiro Domingo da Quaresma)

por Zulmiro Sarmento, em 15.02.16
 

A. Nem sempre a facilidade facilita

  1. O tempo de Deus chegou. E não chegou só agora. O tempo de Deus chegou há muito tempo. O tempo de Deus veio para ficar no tempo. A Quaresma, preparando-nos para a celebração anual da Páscoa, já acontece depois da Páscoa, já acontece em tempo de Páscoa. Vivemos a Quaresma porque estamos em Páscoa desde há dois mil anos. É, portanto, num clima pascal que iniciamos a Quaresma. E que pode haver de mais pascal do que o apelo à conversão que atravessa já este Primeiro Domingo? A conversão «pascaliza-nos», permitindo-nos mudar na vida e ajudando-nos a mudar de vida.

A esta luz, entende-se que, nos primeiros séculos, a celebração da Páscoa não precisasse de um período de preparação, além de um jejum realizado nos dois dias anteriores. Naquela altura, os cristãos viviam tão entranhadamente a vida cristã — a que nem faltava o martírio —, que não havia necessidade de um tempo especial para responder ao apelo à conversão. A adversidade aguçava a qualidade. Muitos cristãos eram perseguidos, mas, em vez de vacilar, ainda fortaleciam mais o seu compromisso com o Evangelho. Nem a iminência da morte amortecia a eminência da fé. Curiosamente, já nessa época a alegria pascal prolongava-se or 50 dias, até ao Pentecostes.

 

  1. Como sabemos, foi após a Paz de Constantino, no século IV, que as perseguições terminaram e que parece ter afrouxado o empenho na vivência do Evangelho. Neste caso, pode dizer-se que a facilidade não facilitou. Então, a Igreja achou por bem introduzir um tempo para ajudar os cristãos a promoverem uma vida de maior coerência com o Baptismo.

É por isso que a Quaresma é um tempo bastante propício para a celebração do Sacramento da Reconciliação. O objectivo, como se compreende, é para que nos voltemos a conciliar com a vida recebida no Baptismo. Neste sacramento, recebemos uma vida nova: deixámos de ser Adão e passámos a ser Cristo. O problema é que, como notamos por experiência própria, nem sempre vivemos em sintonia com a graça do Baptismo. No balanceamento que pauta a nossa existência, por vezes recuamos e trocamos Cristo por Adão. Daí que necessitemos de recuperar o que vamos perdendo.

 

B. O que o Baptismo oferece e o pecado obscurece

 

3. Se o pecado é grande, a graça que vence o pecado é muito maior. Se o assédio do pecado é contínuo, a presença da graça é ainda mais constante. Não existe, portanto, uma simetria entre graça e pecado. Como bem notou S. Paulo, «onde abundou o pecado, superabundou a graça»(Rom 5, 20). Afinal, o bem é mais abundante que o mal. O mérito é de Jesus Cristo que, segundo palavras de S. Pedro, «morreu pelos nossos pecados» para «nos conduzir a Deus» (1Ped 3, 18).

A Confissão é, para usar uma expressão da Liturgia, uma «segunda tábua de salvação depois do Baptismo». Com muita propriedade, os escritores cristãos antigos chamavam-lhe «Baptismo laborioso». De facto, a Confissão é como que uma extensão do Baptismo. Ela devolve a graça que o Baptismo nos oferece e que o nosso pecado obscurece. Profundo deve ser, pois, o nosso amor pela Confissão. Não há que ter medo da Confissão. Ter medo da confissão seria ter medo da vida e medo de nós. Ter medo da Confissão seria ter medo de nos conhecermos. Ter medo da Confissão seria ter medo de mudar, medo de nos convertermos.

 

  1. Quem diz que não peca está a admitir que não se conhece. Se até «o justo cai sete vezes ao dia»(Prov 24, 16), quem somos nós para garantir que não caímos? Acontece que a santidade não consiste necessariamente em não cair. A santidade consiste sobretudo em levantarmo-nos depois de cair. É Jesus quem, na Confissão, nos estende a mão como estendeu a Pedro quando este ia afogar-se (cf. Mt 14, 31). É Jesus quem, na Confissão, nos toca e nos levanta como tocou e levantou a sogra de Pedro (cf. Mc 1, 31).

Ele está em condições únicas para nos curar do pecado, pois até Ele foi tentado (cf. Mc 1, 13). Só em Jesus conseguiremos não cair na tentação. Só em Jesus seremos capazes de nos levantar quando cairmos na tentação.

 

C. A Confissão é uma cura, não uma tortura

 

5. Os santos cultivaram sempre um enraizado amor pela Confissão. Como eles, reconheçamos — na humildade e na verdade — que nem tudo está bem na nossa vida. E como eles, acreditemos — igualmente com humildade e com verdade — que tudo pode ser melhor na nossa história.

A Confissão ajuda-nos a perceber que toda a Quaresma é um tempo saudavelmente penitencial, o que não quer dizer que tenha de ser um tempo triste. A penitência não é umatortura, é uma cura. É por tal motivo que, enquanto tempo penitencial, a Quaresma é habitada por uma persistente alegria: pela alegria de quem se sente livre, curado, amado e salvo.

 

  1. É com a alegria da generosidade que devemos celebrar a Penitência e cultivar gestos de penitência. Aliás, para nós, a penitência ainda pode ser uma opção. Para muitos outros, porém, a penitência é uma imposição. Há tantos que são privados de tanto, de quase tudo. E nós sempre podemos partilhar algumas coisas com quem não tem praticamente coisa nenhuma.

Na sua Mensagem para a Quaresma de 2015, o Papa Francisco alertou-nos para o perigo «da globalização da indiferença». Esta, a indiferença, é o oitavo pecado mortal e seguramente não menos grave que os outros sete.

 

D. Se cada um mudar, o mundo mudará

 

7. Como exorta o Santo Padre, cada um de nós «tem necessidade de renovação, para não cair na indiferença nem se fechar em si mesmo». De facto, quem se fecha a Deus, fecha-se também aos outros e quem se fecha aos outros, fecha-se também a Deus. O amor a Deus e o amor ao próximo foram intimamente vinculados por Cristo de tal forma que, como proclama S. João, quem ama a Deus também deve amar o seu irmão (cf. 1Jo 4, 21). Com os nossos gestos de partilha, compreenderemos melhor que Deus não Se conforma com a situação actual do nosso mundo. Deus não aposta na manutenção, mas na transformação.

Há, pois, uma imensa sabedoria na proposta quaresmal. A mudança no mundo tem de começar pela transformação de cada pessoa que há no mundo. Se nós não mudarmos, como poderemos esperar que o mundo mude? Razão tinha Gandhi quando aconselhava: «Sê tu mesmo a mudança que queres para o mundo».

 

  1. Os dois maiores eixos do tempo quaresmal são a espiritualidade e a solidariedade. Não é possível seguir Jesus sem O acompanhar no Seu silêncio no deserto (cf. Mc 1, 12). Desde logo, porque só na medida em que O acompanharmos no silêncio, estaremos em condições de acolher a Sua palavra. Sabemos que não é fácil criar silêncio no barulhento mundo de hoje. Vivemos cercados por toneladas de ruído: de ruído sonoro e de ruído visual. Mas se o silêncio não nos procura, temos de ser nós a procurar algum silêncio. Fazer silêncio é muito mais do que estar calado. É criar uma predisposição para a escuta do outro, para o acolhimento da sua presença.

A reflexão ajudar-nos-á a intensificar a nossa relação com Deus. E a solidariedade ajudar-nos-á a fortalecer a nossa relação com o próximo. Aqui se compendia, aliás, todo o ensinamento de Jesus. Ele fala-nos de Deus como Pai e, nessa medida, apresenta-nos cada ser humano como Irmão. É por tudo isto que a Quaresma é um precioso auxílio para escovar a poeira do egoísmo que nos infecta.

 

E. Até onde pode — e deve — ir o jejum

 

9. Juntamente com a partilha, a oração e o jejum compõem o grande tripé do itinerário quaresmal. O jejum, ao despojar-nos da satisfação do nosso apetite, despoja-nos de nós e habilita-nos para uma vida centrada em Deus e no próximo. Não fazemos nós jejum por razões egoístas? Porque é que não havemos de fazer também por razões altruístas? Se nos privamos de alimentos para manter a linha, porque é que não nos privamos de alimento para nos mantermos em linha com Jesus?

Não nos esqueçamos de que, enquanto cristãos, somos discípulos d’Aquele que jejuou durante muito tempo (cf. Mt 4, 2). O nosso jejum ajuda-nos a ver melhor a situação de quem está quase sempre em jejum, passando fome. Tenhamos presente que nos famintos é Jesus que passa fome (cf. Mt 25, 35). Tudo o que fizermos a eles será feito a Ele (cf. Mt 25, 40).

 

  1. Nesta Quaresma, despojemo-nos da carne e do peixe caro, levando um pouco de pão a quem nada tem para comer. Mas façamos também, de vez em quando, jejum do automóvel desanuviando o ambiente. Façamos igualmente jejum do cigarro, contribuindo para a nossa saúde e para a saúde dos nossos semelhantes. Façamos jejum de certas imagens e de algumas palavras. Façamos total jejum das intrigas, das insinuações e das calúnias. Façamos total jejum dos juízos precipitados, das acções agressivas e dos sentimentos violentos. Deixemos que a bondade brilhe, que a paz reluza, que a justiça floresça e que o amor vença.

O tempo de Deus chegou. O tempo de Deus chegou. Convertamo-nos à Boa Nova!

Do blogue THEOSFERA

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publicado às 13:47

TIRAR O EVANGELHO DA CADEIA

por Zulmiro Sarmento, em 11.02.16

 

  1. 1. Com intenções diversas, dizem-se que já é tempo de me convencer de que faço parte de uma minoria religiosa em extinção. Alguns afirmam-no como um lamento: depois do desprezo laicista pelas raízes cristãs da cultura europeia, passando pelo esquecimento ecuménico do Vaticano II, podemos estar a caminhar, a passos largos, para uma Europa muçulmana de cariz revanchista. Portugal, depois de um longo interregno, estaria incluído numa explícita vingança.

Não sou nada bom em sociologia religiosa e já não tenho idade para chegar a ver o que será esse futuro. Espero que as novas gerações católicas consigam libertar a Igreja de certas formas religiosas e movimentos que a asfixiam, mas não para os trocar por algo que se pareça com a vida da maioria dos países dominados pela lei islâmica.

Importa não esquecer que o movimento cristão nasceu de um processo libertário e só conseguirá tornar-se indispensável enquanto tal: É para a liberdade que Cristo vos libertou. Não vos deixeis prender, de novo, ao jugo da escravidão[1]. Seja ele qual for.

Nos últimos Domingos fui intimado a confrontar-me com essa questão, juntamente com os outros participantes na Eucaristia. É fundamental repensar tudo em confronto com a narrativa de S. Lucas[2]. A missão e a responsabilidade actual das Igrejas exigem que se perceba o que está em jogo nos acontecimentos, gestos, decisões e palavras do pontificado reformador do Papa Francisco.

Comecemos pelo texto evangélico. Jesus foi a Nazaré onde tinha sido criado e, segundo o seu costume, entrou, em dia de sábado, na sinagoga. Levantou-se para ler. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías[3]. Abrindo-o, encontrou a passagem onde está escrito:

O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar o ano da graça do Senhor.

Diz S. Lucas que, chegado a esse ponto, enrolou o livro, entregou-o ao servente e sentou-se. Todos, na sinagoga, tinham os olhos fixos nele que fez, então, uma declaração insólita: Hoje realizou-se a Escritura que acabais de ouvir.

De repente, manifestou-se uma reviravolta no auditório que desencadeou uma polémica tão azeda que os seus conterrâneos resolveram acabar com esse improvisado e atrevido profeta. Estava a desonrar a sua terra e a sua parentela. Expulsaram-no para fora da cidade com intenção de o matar. Ele não se deixou intimidar.

  1. Que terá, então, acontecido para provocar aquela reviravolta, dado que Jesus tinha chegado à sua terra depois de ter suscitado grande entusiasmo nas cidades por onde tinha passado?

O texto pode parecer algo confuso, mas no fundo os seus conterrâneos estão indignados com o que aconteceu: pode andar por aí a enganar as multidões, mas a nós não nos engana. Conhecemo-lo bem a ele e aos seus familiares.

         Jesus, de facto, tinha reservado para Nazaré atitudes e declarações muito graves: primeiro, atreveu-se a fechar o livro imediatamente depois de uma leitura propositadamente incompleta do texto de Isaías sobre o ano jubilar, suprimindo a passagem sobre o dia da vingança, da ira de Deus; abandonou a sua qualidade de leitor e de intérprete da Escritura, para ser ele próprio a inaugurar esse tempo absolutamente novo, o tempo da pura graça do amor.

        Isto significava que tinha acabado o estilo da conversa religiosa, repetitiva, da qual não se espera nada, pois com ela também nada acontece: é só falar!

        Com Jesus, o cenário mudou: o dizer do amor faz acontecer! Do lirismo literário do texto de Isaías, saltou-se para as transformações da realidade. Nos capítulos a seguir à controvérsia, Jesus não se mostrou nada deprimido. Saiu na direcção de todas as periferias, a intervir, a suscitar e a organizar os colaboradores.

         A estes pede-lhes que “sejam misericordiosos como o Pai é misericordioso” e não se transformem em juízes de qualquer tribunal eclesiástico. Não quer cegos a fazer de lúcidos. Deseja pessoas de bom coração, não beatas com a boca cheia de invocações divinas. Sem a prática transformadora da realidade, a conversa é só areia movediça[4].  

  1. O entusiasmo que Jesus voltou a desencadear também estava semeado de obstáculos e confusões, tanto entre os mais ortodoxos como entre os próprios reformistas, os discípulos de João Baptista.

Para complicar o panorama, o Mestre altera o estatuto religioso das mulheres que passam a fazer parte do grupo dos discípulos. A nova ordem de coisas inclui judeus e gentios, homens e mulheres, a família dos que se deixaram seduzir pela boa nova do reino de Deus[5].

Não podemos deixar de ir ao encontro dessas narrativas de há dois mil anos. Inauguraram um tempo de vinho novo em odres novos. Os Evangelhos não podem ser o arquivo morto das Igrejas. Estas não podem viver sem a circulação permanente entre essa fonte e a complexidade do nosso tempo. Para escutar essa música dissonante é preciso querer nascer de novo e abandonar os mundos fechados para ver a luz.

 

Frei Bento Domingues, O.P.

Público 07.02. 2016

 

https://www.publico.pt/sociedade/noticia/tirar-o-evangelho-da-cadeia-1722560 

 

 

 

[1] Gl, 5, 1

[2] 4, 14-36

[3] 61,1-2

[4] Lc 5- 6

[5] Lc  7-8

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publicado às 11:30

NÃO SÓ NAQUELE TEMPO (Quinto Domingo do Tempo Comum)

por Zulmiro Sarmento, em 07.02.16
 

A. Também no nosso tempo, há fome — e sede — de Jesus

  1. Não só naquele tempo, mas também neste tempo, há multidões aglomeradas à volta de Jesus, para ouvir a Palavra de Deus (cf. Lc 5, 1). As multidões continuam famintas da presença de Deus e sedentas da Sua Palavra. Não é em vão que, no nosso país, todos os Domingos cerca de dois milhões de pessoas se deslocam a uma igreja para escutar o Pão da Palavra e para se alimentarem do Pão da Eucaristia.

É que as pessoas sabem que também hoje Jesus continua a falar, a ensinar e a alimentar. A Eucaristia é o barco de onde Ele nos fala e ensina e o altar é a mesa de onde Ele nos alimenta. Jesus está sempre a vir ao nosso encontro. Jesus é sempre o encontro entre todos nós.

 

  1. Não só naquele tempo, mas também neste tempo, Jesus ensina e envia. Quem O escuta não pode limitar-Se a escutá-Lo. Quem O escuta já sabe que é convocado, interpelado e chamado. Jesus, que fala da barca de Simão (cf. Lc 5, 3), envia Simão: «Faz-te ao largo«(Lc 5, 4). Eis o que Jesus continua a dizer a cada um de nós. «Faz-te ao largo» é um apelo dirigido a cada um de nós.

É preciso fazermo-nos ao largo. É preciso que se tornem largos os nossos caminhos estreitos. Que se tornem largas as nossas visões estreitas. Que se torne larga a nossa vida estreita. Ou seja, que não impere o calculismo, o medo. A missão requer ousadia e reclama muita dedicação.

 

B. O que conta é a Palavra de Jesus

 

3. Não só naquele tempo, mas também neste tempo, Jesus manda-nos lançar as redes (cf. Lc 5, 4). Não basta consertar as redes, como faziam aqueles pescadores de outrora (cf. Lc 5, 2). As redes têm de estar prontas para ser usadas, a qualquer hora, mesmo quando parece que não é oportuno.

Lançar as redes é sempre oportuno, mesmo no momento em que parece mais inoportuno. Simão, que sabia do que falava, achava que aquela não era a hora de lançar as redes (cf. Lc 5, 5). Muitas vezes, também achamos que esta não é a hora de lançar as redes. Como Simão, também achamos que já fizemos muito (cf. Lc 5, 5). Como Simão, também achamos que já não há mais nada para fazer. Muitas vezes, portamo-nos como «vencidos da vida» e como «derrotados pela desesperança». Muitas vezes, apoiamo-nos nos nossos critérios de eficácia e de competência. Muitas vezes, achamos que aquilo que aconteceu é o que vai continuar a acontecer. Falta-nos esperança, falta-nos audácia. Habituados a estar sentados no mesmo, é urgente que nos levantemos para tentar o diferente.

 

  1. Não só naquele tempo, mas também neste tempo, é fundamental que nos disponhamos a agir segundo a Palavra de Jesus: «Mas já que o dizes, lançarei as redes»(Lc 5, 5). O segredo da pesca abundante naquele tempo não foi o esforço de Simão: foi a fidelidade à Palavra de Jesus. O segredo da pesca abundante na missão deste nosso tempo também não é o nosso esforço: é a fidelidade à Palavra de Jesus.

É preciso lançar as redes porque Jesus diz. Basta Jesus falar, basta Jesus mandar. O nosso trabalho sem Jesus é nada, o nosso trabalho com Jesus é tudo. No fundo, nem somos nós que trabalhamos, é Jesus que trabalha em nós (cf. Gál 2, 20). E quando nós damos os braços a Jesus, o número de peixes que vêm às redes aumenta enormemente (cf. Lc 5, 6-7).

 

C. Não tenhamos medo de falar de Jesus

 

5. O que nos falta é dar os nossos braços a Jesus, é deixar que Jesus trabalhe em nós e connosco. Hoje em dia, lançar as redes é anunciar o Evangelho. Foi, aliás, o que fez S. Paulo, que recordava aos coríntios o Evangelho que lhes tinha anunciado (cf. 1Cor 15, 1). Lançar as redes é anunciar que Jesus morreu e ressuscitou (cf. 1Cor 15 3-4). Lançar as redes é nunca ficar satisfeito com o já conseguido. Lançar as redes é nem sequer pensar nas redes ou nos barcos. O que importa é que as redes e os barcos acolham todos.

Naquele tempo, as redes, que tinham sido consertadas, começaram a romper (cf. Lc 5, 6). E até os barcos ameaçavam afundar (cf. Lc 5, 7). Mas Jesus não deixa romper as redes nem afundar os barcos. Ele é a âncora, o farol e o alicerce. Quando há confiança, nunca falta segurança.

 

  1. Em Jesus, tudo é assombroso. Em Jesus, tudo é espantoso. O fundamental é que, também neste nosso tempo, não sigamos os nossos critérios, mas optemos sempre pela Palavra de Jesus. Passamos muito tempo a conceber estratégias e gastamos muito tempo a avaliar estratégias que não resultam.

Na missão, não tenhamos medo de ir, directos, ao essencial. Não tenhamos medo de propor Jesus. Falar de Jesus não afasta. Mesmo quando Simão tentou afastar Jesus (cf. Lc 5, 8), Jesus não Se afastou de Simão. Pelo contrário, Jesus dá uma missão a Simão. Dali em diante, iria começar outra pesca: não de peixes, mas de homens (cf. Lc 5,10).

 

D. Não afastemos (de) Jesus

 

7. Não é o nosso pecado que constitui impedimento. Não são as nossas limitações que constituem obstáculo. A pesca é de Jesus. E Jesus quer contar com as nossas mãos debilitadas e com os nossos passos cansados. Não adianta afastarmo-nos de Jesus porque Ele não Se afasta de nós.

Nunca falta a resposta à vocação quando não falta oração. O encontro com Jesus é o segredo do seguimento de Jesus. É preciso não ter medo de pôr os mais jovens em contacto com Jesus. Não esqueçamos que, como lembrou o Papa João Paulo II, os jovens são «aliados naturais de Cristo». Os mais jovens são capazes de coisas sérias, de coisas grandes, de coisas maravilhosas.

 

  1. É imperioso reconhecer que, na nossa missão, por vezes falta Jesus: falta propor Jesus. Por conseguinte, não tenhamos medo de propor o Jesus-Palavra e o Jesus-Pão. Nunca faltará quem se decida a deixar tudo para seguir Jesus (cf. Lc 5, 11).

O nosso mal é quando, para cativarmos alguém para Jesus, como que deixamos de propor Jesus. Ficamo-nos pela órbita e não chegamos a ir ao centro. Quedamo-nos pela porta e não chegamos a entrar nem a convidar a entrar. É preciso não ter medo de falar abertamente de Jesus. Demos Jesus em forma de anúncio, em forma de testemunho, em forma de comunhão e em forma de amor.

 

E. A maior paixão é ter Deus no coração

 

9. Não só naquele tempo, mas também neste tempo, é preciso estar disponível. Isaías coloca-se ao serviço de Deus: «Eis-me aqui, podeis enviar-me»(Is 6, 8). Ponhamo-nos ao serviço de Deus e deixemos que Ele nos envie. Basta saber que Ele vai sempre connosco.

Que as nossas palavras façam ressoar a Sua Palavra. Que os nossos passos ajudem a trilhar o Seu caminho. E que a nossa vida procure ser sempre um eco da Sua vida.

 

  1. A vocação e missão de Isaías ocorre no âmbito de uma liturgia no Templo de Jerusalém. Perante a manifestação do Deus três vezes Santo, Isaías não encontra alternativas. Quando o Deus Santo Se manifesta, acende-se em nós uma sensação de festa. Tudo é diferente quando a luz divina se acende no coração da gente.

Esta grande aclamação do «Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do universo»(Is 6, 3) é tão intensa que faz parte das nossas celebrações. E, de facto, também no nosso tempo, como naquele tempo, estamos sempre a contemplar o «Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do universo». Será que vamos ser insensíveis à Sua voz? Nunca fechemos os ouvidos à voz de quem vem até nós. Não há maior paixão do que sentir a voz de Deus no coração!

Do blogur THEOSFERA

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publicado às 15:05

O futuro da Igreja (2)

por Zulmiro Sarmento, em 03.02.16

 

Na obra que acaba de publicar, L'avenir de Dieu, que é o seu "testamento" intelectual, espiritual e religioso, Jean Delumeau, 92 anos, depois de mostrar que a grande falha da Igreja foi ter-se convertido em poder, como vimos no sábado passado, apresenta "pistas e proposições" para o futuro.

  1. O governo da Igreja. Não tem o governo da Igreja Católica de "ser profundamente repensado e reconstruído", devendo estar "mais atento do que no passado aos desejos e aspirações dos fiéis"? Não deveriam estes "poder escolher os seus representantes que constituiriam uma espécie de parlamento da catolicidade?"

Antes, isso era irrealizável. Mas actualmente o mundo tornou-se uma pequena aldeia na qual todos podem comunicar instantaneamente entre si no planeta. Então, porque é que não poderei "manifestar o desejo de que os futuros responsáveis da Igreja Católica ao mais alto nível sejam um dia eleitos por um parlamento mundial dos fiéis para um mandato por tempo determinado? Em que é que esta prática atraiçoaria a mensagem de Cristo?"

  1. A "Humanae vitae". Com este tipo de governo, as decisões quanto à vida sexual dos fiéis não seriam contrárias ao bom senso, pois não seriam tomadas por "poderes eclesiásticos compostos unicamente por celibatários". "Hoje, parece inconcebível e inadmissível para os nossos contemporâneos que Paulo VI tenha publicado a encíclica "Humanae vitae" depois de ter autoritariamente retirado o dossiê da contracepção das deliberações do concílio Vaticano II. Nestas condições, para quê reunir um concílio ecuménico? Aliás, muitos canonistas pensam que esta encíclica, que esvaziou as igrejas, não é válida, pois não foi "recebida" pelo povo cristão."
  2. A lei do celibato. Há uma série de reformas urgentes, que "a civilização em que estamos mergulhados impõe". Por exemplo, "não impor mais o celibato aos padres (o que não impediria em nada a existência de fiéis que livremente escolham o celibato, para se consagrar inteiramente à Igreja e à oração)".
  3. A mulher na Igreja. Impõe-se "valorizar o lugar da mulher na Igreja", indo aliás ao encontro de várias práticas das primeiras comunidades cristãs. "Esquece-se demasiado que o cristianismo, historicamente, contribuiu em grande medida para a libertação da mulher." Deseja, pois, "com uma forte convicção, a reabilitação plena e completa da mulher no catolicismo". Estamos ainda muito longe, mas é por isso que os dignitários da Igreja Romana, que actualmente são só homens, devem finalmente tomar consciência de que estamos na civilização da "inovação absoluta, a que devemos fazer face, desembaraçando-nos dos reflexos, desconfianças e interditos herdados de um passado superado. Ora, não encontraremos nos Evangelhos nem razões teológicas nem maldições eternas a sancionar o "sexo fraco". Atendendo à evolução recente e inédita da nossa civilização, o catolicismo deve, portanto, imperativamente, dar finalmente à mulher todo o seu lugar, em igualdade com o do homem, no governo de uma religião que se quer universal e comum aos dois sexos. O êxito de uma nova evangelização passa, na minha opinião, pela reabilitação completa da mulher nas Igrejas cristãs. Por imperativo da minha alma e consciência, e antes do silêncio que em breve a morte me imporá, quero lançar um grito de alarme: na minha opinião, a salvação e o futuro do cristianismo, e nomeadamente do catolicismo, passam por esta completa reabilitação da mulher. E não hesito em colocar a questão, que não é, na minha opinião, de modo nenhum sacrílega: porque é que uma mulher não poderia um dia ser eleita para a sede de Pedro?"
  4. O pecado original. Também aqui se impõe reflectir. Para se não cair na aberração daquelas boas mães que não ousavam beijar o bebé enquanto não fosse baptizado.

Hoje, já se percebeu que o Livro do Génesis não é um documento histórico e, por causa da evolução, já não é possível pensar que Adão e Eva foram criados "adultos, belos e perfeitos, num maravilhoso paraíso terrestre": é claro que a humanidade se desprendeu lenta e progressivamente da animalidade e já não podemos "fundar uma culpabilização hereditária do homem e da mulher sobre a narrativa do Génesis". No judaísmo, não há lugar para um pecado original. Jesus nunca falou do pecado original e até recomendou aos discípulos que, para entrarem no reino dos céus, fossem como crianças... que brincavam numa rua vizinha e que "não tinham recebido o baptismo".

  1. Mudar a linguagem. Por exemplo, ninguém entenderá hoje o significado de expressões do credo, como "desceu aos infernos", "subiu aos céus", "ressurreição da carne".
  2. Impõe-se a unidade das Igrejas cristãs e o diálogo inter-religioso, e não se pode ignorar a ciência. Os cristãos precisam de acolher inovações que, no princípio, parecerão incómodas, mas, depois, "portadoras de um futuro religioso durável e fecundo".

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Diário de Notícias 16 de janeiro de 2016

 

http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/o-futuro-da-igreja-2-4982779.html 

 

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publicado às 12:30

O futuro da Igreja (1)

por Zulmiro Sarmento, em 03.02.16

 

 

 

Anselmo Borges

Estive com ele uma vez, em Paris, e impressionou-me muito a sua imensa cultura e simplicidade. Intelectual de enorme prestígio, ocupou a cátedra de História das Mentalidades Religiosas no Ocidente Moderno, no Collège de France. Autor de numerosas obras mundialmente conhecidas, Jean Delumeau acaba de publicar L"Avenir de Dieu (O Futuro de Deus), com o seu percurso de vida intelectual e espiritual ao longo de 60 anos. Católico de fé assumida, diz-se "humanista cristão" e interroga-se sobre as inquietações do presente e o futuro do cristianismo. Do alto da sabedoria e da autoridade dos seus 92 anos, propõe, já na conclusão, uma série de reformas urgentes para a Igreja, que, dada a sua importância, apresento hoje e no próximo Sábado.

Antes dessa conclusão, Jean Delumeau atravessa, em síntese, os grandes temas das suas investigações científicas, no quadro da história das mentalidades, como: o medo, o pecado e a culpabilização, a confissão, o perdão, o sentimento de segurança, o paraíso e as suas imagens, a Europa de hoje. E deixa pensamentos sábios, que obrigam a reflectir. Assim, no contexto da imagem terrífica de Deus, que tem de ser revista, escreve: "Hoje, os cristãos podem mais seguramente afirmar: ou os homens perdoam uns aos outros ou criaram e, ai!, criam já muitas vezes o inferno na terra." Hoje, quando já vivemos numa aldeia planetária, "descobrimos que somos forçosamente solidários uns com os outros e, para não perecermos, estamos condenados a unir-nos e a erguer uma governança mundial que deveria ter os meios de ser obedecida". "Constatou-se que o sentimento de insegurança - o "complexo de Dâmocles" - é causa de agressividade." No espaço dedicado ao paraíso terrestre reencontrado, refere que sobre Portugal se pôde escrever que "a persistência do messianismo animando a mentalidade de um povo durante tanto tempo e conservando a mesma expressão é um fenómeno que, exceptuando a raça judaica, não tem equivalente na história".

Apenas dei exemplos. Agora, algumas propostas de reforma da Igreja.

  1. Um apontamento prévio quanto a "inventar o futuro": a partir do seu caminho pessoal, à luz da história e seguindo e exprimindo as inquietações do nosso tempo, Delumeau foi levado a colocar a pergunta: "Qual é o futuro de Deus?" Ora, quando se ergue o debate à volta da crise actual do cristianismo e da Igreja, na difícil dialéctica cristianização-descristianização, há o perigo de esquecer que, contra o que frequentemente se pensa, antes do século XIV, a Europa, segundo, G. Duby, não apresentava senão "as aparências de uma cristandade. O cristianismo não era plenamente vivido senão por raras elites." Lutero também escreveu: "Temo que haja mais idolatria agora do que em qualquer outra época." Daí que Delumeau acentue a importância da actualização, também para se não cair em idealizações e dogmatismos. Por vezes, é preciso "desaprender", não idealizar o passado.
  2. Qual é o grande mal do cristianismo? A sua ligação ao poder. "Pelas suas consequências, uma das mais trágicas falsas vias para as Igrejas cristãs foi, depois do fim das perseguições, a ligação entre o poder imperial romano e a hierarquia eclesiástica, simbolizada e fortificada pela coroação de Carlos Magno pelo Papa."

Não se deve esquecer que desde sempre tinha havido, no Império Romano e fora dele, ligação e amálgama entre os poderes religioso e político. Foram, por isso, necessários muitos séculos e conflitos incessantes para que "o religioso e o político aceitem por fim distanciar-se um do outro, num equilíbrio aliás instável e que é necessário reajustar continuamente". De qualquer modo, "desde o início do século IV, a Igreja tornou-se um poder". Ora, "esta deriva perigosa", que durante muito tempo só a poucos causou choque, ainda não terminou.

A Igreja Católica "tem atrás de si um grande e belo passado de escritos religiosos sublimes, inumeráveis iniciativas caritativas e múltiplas obras de arte. Realizou uma obra civilizadora grandiosa e mundial. Deu à humanidade legiões de santos e santas, canonizados ou não, incansavelmente dedicados ao serviço do próximo. Mas a sua grande fraqueza foi ter-se constituído em poder... Ora, é preciso que de ora em diante abandone o poder, pratique a humildade para poder de novo convencer e dar-se a si mesma estruturas mais flexíveis do que no passado e, portanto, capazes de evoluir. Porque é necessário hoje aceitar e dominar evoluções inevitáveis".

Dever-se-á perguntar: como foi possível o movimento iniciado por Jesus ter hoje um Vaticano?! Seja como for, digo eu, a história é o que é e o que se impõe é uma revolução, para modos democráticos de governo eclesial, para a simplicidade, a transparência, o serviço. Cardeais e bispos não são "príncipes" nem podem viver como "faraós", diz Francisco. E as nunciaturas só poderão justificar-se enquanto serviços humildes de pontes para o diálogo e a paz mundiais.

 

Diário de Notícias 02 de janeiro de 2016

 

http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/a-sabedoria-em-tres-palavras-4961033.html

 

 

 

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publicado às 12:27

O pesadelo do teólogo

por Zulmiro Sarmento, em 03.02.16

 

  1. Bertrand Russell, para lá de ser um dos grandes matemáticos do século XX e filósofo, foi um escritor brilhante e irónico, Prémio Nobel da Literatura. No seu livro de Contos, há um, célebre, com "o pesadelo do teólogo". Vou resumir.

"O teólogo eminente Dr. Thaddeus sonhou que tinha morrido e seguido rumo ao Céu. Os estudos haviam-no preparado e não teve dificuldade em encontrar o caminho. Bateu à porta do Céu e foi recebido com um escrutínio maior do que esperava. Disse: - Peço admissão porque fui um homem bom e dediquei a vida à glória de Deus. - Homem? - exclamou o porteiro. - O que é isso? E como podia uma tão estranha criatura como o senhor fazer alguma coisa para promover a glória de Deus?

O Dr. Thaddeus ficou espantado. - O senhor decerto que não ignora o homem. Deve saber que o homem é a obra suprema do Criador. - Quanto a isso - tornou o porteiro - lamento magoá-lo, mas o que está a dizer é novo para mim. Duvido que alguém cá em cima já tivesse ouvido falar dessa coisa chamada "homem". No entanto, uma vez que parece tão desapontado, pode consultar o nosso bibliotecário.

O bibliotecário, um ser esférico com mil olhos e uma boca, pousou alguns dos seus olhos sobre o Dr. Thaddeus. - O que é isto? - perguntou ao porteiro. - Isto diz que é um exemplar de uma espécie chamada "homem" que vive num lugar chamado "Terra". Julga que o Criador tem um interesse especial por esse lugar e por essa espécie. Pensei que talvez pudesse esclarecer".

Depois de o teólogo ter explicado que a Terra é parte do Sistema Solar, que por sua vez é parte da Via Láctea, uma galáxia entre milhares de milhões, foi mandado chamar um dos sub-bibliotecários, especializado em galáxias e que tinha a forma de um dodecaedro. Assim, umas três semanas depois, com o trabalho exaustivo de cinco mil empregados, "o sub-bibliotecário voltou e explicou que o ficheiro extraordinariamente eficiente da secção galáctica da biblioteca lhe havia permitido localizar a galáxia como número XQ 321,762". O Dr. Thaddeus explicou então ao empregado especialmente interessado na galáxia em questão, um octaedro com um olho em cada face e uma boca numa delas, que o que ele desejava saber se referia ao Sistema Solar, uma colecção de corpos celestes que gira à volta de uma das estrelas da galáxia, chamando-se essa estrela "Sol".

"- Safa!" - disse o bibliotecário da Via Láctea. - "É difícil descobrir a galáxia, mas descobrir a estrela dentro da galáxia é ainda muito mais difícil. Sei que há cerca de trezentos mil milhões de estrelas na galáxia, mas não sei distingui-las umas das outras. Creio, todavia, que, uma vez, foi pedida pela Administração uma lista de todos os trezentos mil milhões e isso deve estar ainda guardado na cave. Se achar que vale a pena, arranjarei pessoal especial do Outro Lugar para procurar essa estrela."

Alguns anos mais tarde, foi um tetraedro arrasado de cansaço que compareceu diante do sub-bibliotecário galáctico, dizendo: "Descobri, finalmente, essa estrela especial sobre a qual foram feitas investigações, mas estou absolutamente desorientado quanto ao interesse que ela levantou. Faz lembrar muitas outras estrelas da mesma galáxia. É de tamanho médio, de temperatura média, e está cercada por corpos muito pequenos chamados "planetas". Após minuciosa investigação, descobri que alguns desses planetas, pelo menos, têm parasitas, e creio que essa coisa que tem estado a fazer perguntas deve ser um desses parasitas."

Nessa altura, "o Dr. Thaddeus desatou num indignado e apaixonado lamento: - Porque é que o Criador escondeu de nós, pobres habitantes da Terra, que não fomos nós que o levámos a criar os céus? Servi-O toda a minha vida, servi-O diligentemente, acreditando que Ele havia de reparar no meu serviço e recompensar-me com a Felicidade Eterna. E agora até parece que nem sequer sabe da minha existência. O senhor diz-me que sou um animálculo infinitesimal num minúsculo corpo que gira em volta de um insignificante membro de uma colecção de trezentos mil milhões de estrelas, colecção esta que é apenas uma entre muitos milhares de milhões. Não posso aguentar isto. Não posso mais adorar o meu Criador. - Muito bem - retorquiu o porteiro. Então pode ir para o Outro Lugar.

Aqui, o teólogo acordou. E murmurou: - O poder de Satanás sobre a nossa imaginação adormecida é terrível".

  1. Afinal, ocupamos um lugar periférico no Universo. Pascal perguntava: "O que é um homem no infinito? Apavora-me o silêncio dos espaços infinitos." Mas, por outro lado, é no homem que este processo gigantesco toma consciência de si. Somos reflexivos e temos autoconsciência: desdobramo-nos e reconhecemo-nos. Sabemos do bem e do mal. E levamos connosco a pergunta inevitável e triturante do sentido, do sentido último: qual o sentido de tudo?, porque há algo e não nada?, o que vale a minha vida?, existimos porquê e para quê? Transportamos connosco a questão da morte e de Deus, a dupla face do Absoluto.

 

Diário de Notícias 23 de janeiro de 2016-01-25

 

 

http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/o-pesadelo-do-teologo-4995098.html

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publicado às 12:26

A MEMÓRIA AFECTUOSA DE DEUS

por Zulmiro Sarmento, em 03.02.16

 

  1. A nós, os velhos, roubam-nos tudo: roubam-nos o passado e o futuro, a memória e a possibilidade de renovar o cartão de cidadão.

 É breve e para poucos a sobrevivência na memória afectuosa dos familiares e amigos. Chegamos tarde em relação ao passado e demasiado cedo em relação às maravilhosas promessas da ciência e da técnica.

Por outro lado, a louca persistência das guerras e os absurdos que as provocam, impondo a lei de matar, ser morto ou fugir, geram cepticismo acerca da possibilidade global de humanização da história[1].

A verdadeira vida e a morte dependem dos afectos. Fora deles, há apenas estatística.

Os mais idosos vão sofrendo a desertificação das relações de familiares e amigos. Mário Brochado Coelho, a propósito da morte de Nuno Teotónio Pereira e do desaparecimento de outros companheiros, manifestou aos amigos, de modo comovente, que embora tudo seja natural, ficamos com o sentimento de uma grande orfandade.

Há outras pessoas que alimentam o desejo de um Deus de memória afectuosa, transfiguradora e universal, para si e para os outros, um coração que as acolha.        

  1. Em relação ao Nuno Teotónio Pereira, muitas coisas foram ditas e escritas, quer sobre a sua sólida e premiada obra arquitectónica, quer sobre a sua evolução política e religiosa: de uma família monárquica e salazarista para militante da transformação da Igreja na linha de João XXIII e do Vaticano II, da luta contra guerra colonial, das metamorfoses políticas radicais até à entrada no PS.

Cada uma dessas fases e faces deixou imagens diferentes naqueles que com ele conviveram. No entanto, o próprio se explicou longamente sobre os tempos e acontecimentos que viveu. Quem voltar a ler as suas crónicas no Público[2], a última entrevista a José Pedro Castanheira, publicada no Expresso[3] e o testemunho ditado para o Encontro do ISTA e do NAM[4], pode formar uma opinião mais abrangente, não apenas acerca dele, como da sua primeira mulher, a extraordinária Maria Natália Duarte Silva.

É conhecido que ambos, nos anos 60, me associaram à criação do Direito à Informação, à Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, à Iniciativa dos Terceiros Sábados e ao trabalho de encontrar esconderijos para clandestinos.

O Nuno ajudou-me também a encontrar, em Portugal, a pista das pessoas percursoras do Vaticano II, algumas das quais marcaram a sua mudança de rumo e as expressões militantes do seu profundo catolicismo.

Tentei, quando ainda não havia quase nada estudado a esse respeito, apresentar um esboço nas Artes de ser católico português[5]. Desde a Voz de Santo António (1895-1910) até D. António Ferreira Gomes, passando pelos irmãos Alves Correia (Manuel e Joaquim), pelo Movimento e edições Metanoia, dos anos 40-50, pelo Padre Abel Varzim e pela aceleração dos anos 50, em vários ramos da Acção Católica, podem-se encontrar tentativas, obras e correntes que foram reconhecidas no Vaticano II e abafadas pela hierarquia portuguesa, com raras excepções.

  1. Ao reler o seu itinerário espiritual, deparei com uma crónica do Público, de 1995, onde reflecte sobre a Igreja Católica e o Partido Comunista, seus problemas actuais e seu futuro[6]. (…) «O Bem da Igreja», que tantas vezes ouvi invocar contra a liberdade das pessoas e contra os preceitos evangélicos e o «Bem do Partido», que espezinhou direitos humanos, têm de ser banidos numa e noutra instituição.

 « (…) Pode ser que seja necessário passarem uma ou duas gerações para que isto aconteça: são acontecimentos para o próximo século. Mas talvez suceda que a mensagem evangélica, por um lado, e a crença numa sociedade mais justa e solidária, por outro, sejam dois fachos que não se apaguem na marcha da Humanidade e que poderão até ser convergentes, com surpresa para muitos. (…) É preciso que qualquer coisa renasça ou nasça de novo para nos devolver a esperança».

O texto do Papa Francisco, sobre a «Igreja de saída», que transcrevi no passado domingo e apresentei no funeral de Nuno Teotónio Pereira, parece-me o começo de realização desta esperança.

José Pedro Castanheira, na última entrevista, perguntou-lhe:  deixou de ser crente? «A certa altura, sim, muito por causa do episódio da morte da minha mulher. Não foi imediato, mas ficou sempre uma ferida. Depois meti-me na política e acabei por chegar à conclusão que o sobrenatural não me dizia nada. Mas, olhando para toda a minha vida e para a minha formação, acho que sou católico, ainda que não praticante. Sou crente».

Santa coerência.

        Frei Bento Domingues, O.P.

Público, 31.01.2016

https://www.publico.pt/sociedade/noticia/a-memoria-afectuosa-de-deus-1721809

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