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Com quem começar o ano novo? (II)

por Zulmiro Sarmento, em 11.01.16

 

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Para mim, Jesus Cristo foi desde sempre, é e será o ser sublime, supremo e ideal que a humanidade produziu. Enquanto Judeu, é o único orgulho que sinto de ser da sua raça. A sua existência, as suas palavras, o seu sacrifício e a sua fé deram ao mundo o mais nobre presente jamais recebido: o do amor, do amor do próximo, do amor do pobre, a compaixão, a humildade, enfim todos os sentimentos que enobrecem o ser humano… é o Homem supremo. Estas são palavras do famoso músico Arthur Rubinstein (1887-1982).

Santa Teresa de Avila [1] (1515-1582), com ascendência judaica, escreveu um dos mais belos sonetos da literatura espanhola, nascidos da sua paixão por Jesus: (…) Muéveme, enfin, tu amor de tal manera/ que aunque no hubiera cielo, yo te amara,/ y aunque no hubiera infierno, te temiera(…).

O Papa Francisco, no prefácio a uma Bíblia para jovens de língua alemã, escreveu: “Gostaria de vos dizer uma coisa: hoje - ainda mais do que no início da Igreja - os cristãos são perseguidos; qual é a razão? São perseguidos porque carregam uma cruz e dão testemunho de Cristo; são condenados porque possuem uma Bíblia. Com toda a evidência, a Bíblia é um livro extremamente perigoso, tanto que nalguns países quem possui uma Bíblia é tratado como se escondesse bombas no armário!”

Bergoglio recordou que Mahatma Gandhi, que não era cristão, tinha afirmado: “Aos cristãos foi confiado um texto com a quantidade de dinamite suficiente para fazer explodir em mil pedaços a civilização inteira, para virar o mundo de cabeça para baixo e trazer a paz a um planeta devastado pela guerra, mas tratam-no como se fosse uma simples obra literária, nada mais”.

O Papa acrescenta aos jovens. Tendes nas mãos algo divino: um livro de fogo, um livro no qual Deus fala. Por isso recordai-vos: a Bíblia não é feita para ser posta na estante.

Seria uma estupidez fundamentalista pensar que basta abrir a Bíblia, para entrar naquele universo cultural, que não é um ditado divino. É a biblioteca de um povo, de épocas diferentes, muito diferentes, com grande diversidade de géneros literários. É indissociável do estudo e dos métodos de interpretação [2].

Conta-se nos Actos dos Apóstolos [3] que um etíope, funcionário real, regressando de Jerusalém, sentado no seu coche, lia o profeta Isaías. Filipe, discípulo de Cristo, perguntou-lhe: “compreendes o que lês?” Como poderia, se não há quem mo explique?

2. O Novo Testamento exprime-se em 27 livros, reconhecidos como canónicos. A grande maioria foi escrita em grego, entre os anos 50 e 90 d.C. Cobre vários espaços geográficos e culturais, estilos de vida e de pensamento espantosamente ricos e diversos. As diferenças entre eles reflectem um impressionante pluralismo teológico nas primeiras comunidades cristãs, a ponto de se ter dito que, nos escritos da época apostólica, se pode reconhecer um “catolicismo primitivo”, “um protestantismo primitivo” e uma “ortodoxia (oriental) primitiva”.

Esta lista canónica, ao reconhecer a validade da diversidade de expressão teológica, demarca, ao mesmo tempo, os limites da diversidade aceitável dentro da Igreja [4].

3. O assunto de todos os escritos do Novo Testamento é, no entanto, Jesus de Nazaré, reconhecido como Cristo pelas comunidades que, em seu nome, se foram formando, não sem muitos conflitos de interpretação.

Ponto assente: Ele não escreveu nada, nada mandou escrever nem deu o seu imprimatur a nenhum dos livros ou cartas que, sobre ele, foram escritos. Não existe nenhuma biografia encomendada por ele ou por ele autorizada. O cristianismo nasce no reino da liberdade criadora!

Daqui nasceu a convicção de que acerca de Jesus de Nazaré nada ou quase nada se pode saber de historicamente documentado. Apesar disso, surgiram, sobretudo a partir do séc. XIX, crentes e agnósticos interessados na descoberta do “Jesus histórico”.

Xavier Pikaza [5] tentou apresentar o percurso sinuoso das diversas tentativas que, desde Albert Schweitzer até Senén Vidal - passando por J.D. Crossan, Sanders , G. Theissen e J. P. Meier – procuraram desenhar um perfil histórico de Jesus de Nazaré. Foi um esforço que ocupou muitos especialistas do séc. XX e começos deste século. No meu entender, o pouco que foi conseguido já é muito.

A cristologia, sem fundamento histórico, é vazia. Apesar do enraizamento de Jesus na cultura judaica, muito plural, isso não impediu um itinerário independente e original. Para os próprios judeus que o seguiram, Jesus era algo de muito novo.

Foi morto, de forma planeada, pelos Sumos Sacerdotes do Templo e pelas autoridades locais do império Romano, sob Pôncio Pilatos. Que terá havido no comportamento de Jesus para que um derrotado seja a base e o impulso de uma esperança invencível?

Público, 10.01.2016
- - - -
[1] Soneto a Jesús Crucificado
[2] Comissão Pontifícia Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja, 1993
[3] Act. 8,26-46
[4] Julio Trebolle Barrera- A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Vozes, Petropolis, 1999, 2ª ed. p 299
[5] Quem foi Quem é Jesus Ctisto? Coor. por Anselmo Borges, Gradiva, 2012, p 11-82

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publicado às 09:52

VIDA CRISTÃ, VIDA BAPTISMAL (Festa do Baptismo do Senhor)

por Zulmiro Sarmento, em 11.01.16
 

A. Tempo comum para viver um mistério (sempre) incomum

  1. A festa deste dia sinaliza a transição do Tempo do Natal para o Tempo Comum. Ressalve-se, desde já, que o Tempo Comum não é um tempo menos importante. É no Tempo Comum que somos chamados a vivenciar o que celebramos nos dois grandes pólos celebrativos do Ano Litúrgico: o Natal e a Páscoa.

No Tempo Comum, continuamos a celebrar o Mistério sempre Incomum: o mistério de Deus que Se fez homem em Jesus Cristo para nos salvar. O incomum torna-se, portanto, comum, não no sentido de vulgar, mas no sentido de constante. O Tempo Comum é também, por sua própria natureza, um tempo comunitário, ou seja, um tempo para, em comunidade, celebrar e testemunhar o Evangelho de Jesus.

 

  1. A esta luz, podemos dizer que o Tempo Comum é um tempo pascal e um tempo natalício. É sabido que a cadência da celebração da Páscoa, antes de ser anual, é semanal: cada Domingo é dia de Páscoa. E uma vez que o mistério pascal constitui o ápice da Encarnação, então não é descabido concluir que o Tempo Comum é também, a seu modo, um tempo de Natal. É um tempo em que Jesus (re)nasce para nós e um tempo em que nós (re)nascemos para Jesus.

Não foi em vão que Johannes Moller considerava a Igreja como «a Encarnação permanente». Na verdade, o Filho de Deus que encarnou em Jesus Cristo continua a encarnar no Seu corpo que é a Igreja, à qual pertencemos a partir do Baptismo.

 

B. Uma síntese e uma abertura

 

3. Na Liturgia, o Tempo Comum é o tempo mais longo. É composto por 33 ou 34 semanas, distribuídas em duas etapas: a primeira decorre entre a Festa do Baptismo do Senhor e o início da Quaresma e a segunda vai da segunda-feira após o Pentecostes até ao começo do Advento.

É no Tempo Comum que acompanhamos a maior parte da missão de Jesus. No Tempo Comum, não celebramos nenhum aspecto particular do mistério de Cristo, mas o mistério de Cristo na sua globalidade. No Tempo Comum, acompanhamos a vida pública de Cristo: desde o Seu Baptismo até à Sua Paixão, Morte e Ressurreição.

 

  1. A Festa do Baptismo do Senhor é, pois, umasíntese e uma abertura. Ela permite-nos encontrar uma síntese do Tempo do Natal ao mesmo tempo que nos abre as portas do Tempo Comum. O Baptismo de Jesus mostra-nos um Jesus já adulto, na casa dos 30 anos, mas sempre com a consciência de filho.

No Natal, vemo-Lo ao colo da Mãe; no Baptismo, acompanhamo-Lo a ouvir a voz do Pai. É por isso que, já no século V, S. Máximo de Turim considerava que «não é sem razão que celebramos esta festa pouco depois do dia do Natal» e que «também ela deve chamar-se festa de Natal». É que se, «no Natal, Cristo nasceu da Virgem, hoje é gerado pelos sinais do Céu». No Natal — prossegue S. Máximo —, «Maria, Mãe de Jesus, acaricia-O no Seu colo; agora, ao ser gerado entre os sinais celestes, Deus, Seu Pai, envolve-O com a Sua voz, dizendo: “Este é o Meu Filho amado, no qual Eu pus todo o Meu enlevo. Escutai-O”(Mt 17,5). A Mãe apresenta-O aos magos para que O adorem, o Pai apresenta-O às nações para que O reverenciem».

 

C. Uma teofania e uma antropofania

 

5. O Baptismo de Jesus constitui uma Teofania e uma Antropofania. Jesus é o Filho de Deus (cf. Mc 1, 11) em forma humana. Ele é a revelação definitiva de Deus e é a revelação suprema do homem. O Concílio Vaticano II proclama que Jesus, Verbo encarnado, «revela o homem ao homem». O serviço é a chave desta dupla revelação. O Filho de Deus é já delineado por Isaías como o servo (cf. Is 42, 1): Servo de Deus e Servidor para os homens.

No Baptismo, Deus ungiu Jesus com «Espírito Santo e fortaleza»(Act 10, 38) para a Sua missão messiânica que, como refere a Primeira Leitura, consiste em levar «a justiça às nações», em «abrir os olhos aos cegos», em «tirar da prisão os cativos e da cadeia os que habitam nas trevas»(Is 42, 1-4.6-7). Jesus apresenta-Se, assim, inteiramente divino e inteiramente humano: consubstancial ao Pai na divindade e consubstancial a nós na humanidade.

 

  1. É claro que Jesus não precisava de ser baptizado. Jesus é baptizado na água, mas é Ele que baptiza no Espírito Santo (cf. Mc 1, 8). Ele é, pois, o verdadeiro Baptista. Por isso, João resiste: «Eu é que devo ser baptizado por Ti»(Mt 3, 14). Mas, como nota S. Gregório de Nazianzo, «João resiste e Jesus insiste». S. Máximo de Turim percebeu: «Cristo foi baptizado, não para ser santificado pelas águas, mas para santificar as águas e para purificar as torrentes com o contacto do Seu corpo».

Está, assim, apontada a nossa identidade e traçado o nosso itinerário. Ser cristão é seguir Cristo, é ser baptizado em Cristo. Por tal motivo, terminamos o Tempo de Natal com o Baptismode Cristo e iniciamos o Tempo Comum com a determinação de vivermos sempre o nosso Baptismo em Cristo.

 

D. Baptizar significa mergulhar

 

7. O Baptismo não pode ser remetido ao estatuto de episódio da nossa infância mais remota. O Baptismo imprime carácter, afecta todo o nosso ser. É por tal motivo que se trata de um sacramento que não é reiterado: recebido uma vez, recebido para sempre. As consequências do Baptismo não podem ser reduzidas a uma festa, aos filmes e às fotos. A grande consequência do Baptismo é a vida de Cristo em nós.

Etimologicamente, «baptizar» significa «mergulhar». Pelo que baptizar significa mergulhar em Cristo e, por Cristo, no Pai na força do Espírito Santo. Por outras palavras, baptizar significa mergulhar na vida divina, na vida da Santíssima Trindade. Foi uma das incumbências que o Ressuscitado deixou à Igreja: baptizar «em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo»(Mt 28, 19).

 

  1. O Baptismo é um novo nascimento pois «ninguém pode ver o Reino de Deus se não nascer de novo»(Jo 3, 3). É o próprio Jesus que, como nota S. Paulo, faz de nós filhos adoptivos de Deus (cf. Gál 4, 5). Ser filho adoptivo não é ser um filho menor. S. Paulo usa a linguagem da filiação adoptiva para distinguir a nossa filiação da filiação de Jesus. Enquanto Jesus é Filho por natureza, nós somos filhos por graça, por adopção. Mas somos verdadeiros filhos. Em suma, tornamo-nos filhos no Filho.

As águas do Baptismo representam — isto é, tornam presente — o mistério pascal de Jesus. Foi na Páscoa — na Paixão, na Morte e na Ressurreição — que Jesus nos salvou do pecado e nos garantiu a dignidade de filhos de Deus. No Baptismo, descemos com Cristo à morte e com Cristo subimos à vida. Por isso, a celebração do Baptismo, durante muitos anos, era sempre na Vigília Pascal. Sto. Agostinho, por exemplo, conta-nos a sua experiência baptismal da noite de 24 para 25 de Abril do ano 387.

 

E. Um sacramento que tem princípio, mas não tem fim

 

9. Não sendo obrigatório que o Baptismo seja na Páscoa anual, é de todo recomendável que ele ocorra na Páscoa semanal, ou seja, ao Domingo. Uma vez que é ao Domingo que a Igreja se reúne para celebrar a Ressurreição do Senhor, faz todo o sentido que seja nesse dia que se acolham os novos membros da mesma Igreja. Importa ter presente que o Baptismo tem, a par da sua dimensão cristológica, uma irrenunciável dimensão eclesiológica. Sendo a Igreja o novo Corpo de Cristo, pertencer a Cristo equivale a pertencer à Igreja. É por isso que o Baptismo não deveria ser nunca uma festa apenas da família da criança, mas a festa de todos os membros da Igreja.

Pelo Baptismo, não pertencemos somente à nossa família de sangue. Passamos a pertencer igualmente à numerosa família dos filhos de Deus. No Baptismo, toda a comunidade cristã acolhe com alegria o seu novo membro. Neste contexto, os padrinhos são os representantes da comunidade cristã para ajudar os pais na educação cristã. Os padrinhos não são somente aqueles que dão prendas; são sobretudo aqueles que testemunham a vida cristã. É por isso que os padrinhos devem ser cristãos com maturidade, já com o sacramento do Crisma e da Eucaristia e com uma vida consentânea com a fé e a missão que vão desempenhar. Se os padrinhos não são cristãos praticantes como podem ajudar a criança baptizada na prática da fé cristã?

 

  1. O Baptismo é um sacramento que tem princípio mas não tem fim. Os antigos chamavam ao Baptismo «janua sacramentorum», isto é, a porta dos sacramentos. Mas Deus não quer que fiquemos à porta. O Baptismo inaugura a iniciação cristã, que inclui a Confirmação e da Eucaristia e que se estende aos restantes sacramentos: aos sacramentos de cura (Penitência e Unção dos Enfermos) e aos sacramentos da comunhão e da missão (Ordem e Matrimónio).

Tal como festejamos o dia do nosso nascimento, seria bom que festejássemos o dia do nosso novo nascimento, no Baptismo. Cada dia de um baptizado deve ser um dia baptismal, marcado pela presença de Cristo em nós e de nós em Cristo. Cristo vive sempre de frente para nós. Não queiramos viver de costas para Cristo. Cristo permanece sempre em nós. Procuremos permanecer nós também em Cristo. Assim sendo, no Tempo Comum, havemos de ter uma vida incomum, uma vida fora do comum, enfim uma vida bela e luminosa.

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