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Deus não passa por nós a correr

por Zulmiro Sarmento, em 30.11.15

 

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Não esperava que me viessem pedir contas por Deus não ter feito nada para impedir o massacre de Paris. Essas pessoas acabaram por concluir que tinham batido à porta errada. Sugeri-lhes, com toda a paciência, que falassem directamente com Ele e aproveitassem o encontro para se esclarecerem acerca de todas as guerras e violências que, até em seu nome, foram desencadeadas ao longo da História. Algumas das narradas na Bíblia Hebraica até passaram a ser glorificadas na Liturgia católica, como acontece, por exemplo, na própria Vigília Pascal. Isto sem falar na recitação e canto de alguns salmos especialmente violentos!

Como não me lembro de ter, alguma vez, atribuído a Deus as asneiras da iniciativa humana ou os desconcertos da natureza, não me sinto atraído a abordar casos de polícia como altamente religioso-teológicos. Tanto os que o culpabilizam como os que o absolvem sabem demasiado da divindade. Não se dão conta que Deus, em si mesmo, nos é totalmente desconhecido (omnino ignoto).

Fui vacinado, muito cedo, pela corrente mística da teologia negativa ou apofática. Esta prática teológica tem o bom senso de fazer acompanhar todas as afirmações, acerca da divindade, de uma luminosa negação anti-idolátrica. A paradoxal oração do dominicano alemão, Mestre Eckhart (1260-1327) – Deus, livra-me de Deus – confessa, de modo enérgico, que não nos podemos fiar nas fórmulas que julgam apanhar Deus na sua rede. S. Tomás de Aquino sustentou que a própria letra dos Evangelhos, sem o sopro libertador do Espírito, se pode tornar uma prisão, uma letra que mata.

Quando me entregaram o grande roteiro da viagem teológica para principiantes, a Suma Teológica, fui logo avisado, pelo autor, de que não iria passar a saber como era Deus, mas sobretudo como Ele não era, Deus conhecido como desconhecido [1].

No âmbito religioso, pelo salto de significação que permite, a linguagem metafórica é a menos inconveniente. Na grande poesia e na grande música todas as viagens são possíveis, mistério do Mundo, mistério de Deus.

2. Ao falarmos tanto, sobretudo desde o séc. XIX, da morte de Deus, do silêncio de Deus, de se lançar a suspeita sobre tudo o que se relacionava com as religiões, foi esquecido um pequeno pormenor: tomou-se uma importantíssima questão cultural da modernidade europeia, como se fosse o retrato da situação religiosa universal. Resultado: não entendemos o que se está a passar na Europa, nem no resto do mundo. Não sabemos qual o sentido da civilização que herdamos, nem a que estamos a construir.

Vivemos num mundo de negócios. Sem negócios não se pode viver. Estes são cada vez mais globalizados. Mas o negócio dos negócios é o comércio de seres humanos e de armas. Chegámos a um ponto em que sem a indústria bélica, muita gente iria para o desemprego. Com o seu uso, muita gente vai para o cemitério.

Quando se pensava que o tempo das guerras religiosas, das Inquisições, das Cruzadas tinha acabado, reaparece a união entre armas e religião, em pleno coração da Europa. Os pseudo-religiosos, os terroristas, usam as armas em nome de Deus. Os laicos usam as armas para se defenderem dessa religião, confessando, e ainda bem, um respeito sagrado pelas religiões que ignoram. Petróleo oblige.

3. Quando João Paulo II se opôs, da forma mais firme, à guerra no Iraque, ignoraram-no. Ele estaria a defender os interesses cristãos da zona. Quando o Papa Francisco advertiu que era urgente suster a calamidade do Estado Islâmico, uns ignoraram-no, outros comentaram: o pacifista converteu-se à guerra justa. Também ele estaria a defender os cristãos dos massacres que os tinham por alvo preferencial.

Não basta intensificar o diálogo inter-religioso, embora seja muitíssimo importante que todos confessem que um deus que incita à violência gera uma religião diabólica, uma anti-religião.

Religiosos e não religiosos, místicos ou ateus teremos de aprender a viver no mesmo mundo, não como uma fatalidade, mas como uma oportunidade de nos tornarmos mais humanos, com o contributo de todos. Os cépticos dirão que não passa de uma utopia, mas que seria de nós sem aquilo que nos faz andar?

A liturgia católica celebrou, no domingo passado, Jesus Cristo Rei do Universo, ajuda difícil para as monarquias em dificuldades. É um rei coroado de espinhos e cravado na cruz. Ele próprio confessou que não era o poder que lhe interessava. Se assim fosse teria organizado um exército. Para ele só contava a alegria da vida humana, a sua verdade última. Assim terminava o ano litúrgico. Hoje recomeça, com o Advento, mas Deus na sua caminhada com os seres humanos não passa a correr.

Segundo o Novo Testamento, adopta os ritmos e os zigue-zagues da história humana, para que ninguém se sinta perdido. Insere-se nos seus movimentos para abrir brechas de esperança.
Na situação actual, parece que ninguém sabe para onde caminha a nossa civilização que, ao mesmo tempo que se globaliza, se despedaça em fragmentos irreconhecíveis, esquecendo que somos todos migrantes da mesma promessa.

Não passemos este Advento a correr. Precisamos de tempo para nascer de novo, para descobrir que outro rumo e outra vida são possíveis.

Público, 29.11.2015
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[1]  S.T, I,q.2,prol.; q,13,a.4; Super Boet. De Trini. q. 2 a. 2 ad 1.

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publicado às 11:22

AFINAL, SÃO TRÊS OS ADVENTOS (Primeiro Domingo do Advento)

por Zulmiro Sarmento, em 29.11.15
 

A. Entre o primeiro e o último advento, ocontínuo advento

  1. Celebramos o princípio e os nossos olhos já estão postos no fim. Somos, assim, pregoeiros de um começo e, ao mesmo tempo, peregrinos de um final. Não é contradição. Pelo contrário, trata-se da mais profunda coerência. O fim já principiou no começo. É por isso que os «primeiros dias» são a semente dos «últimos dias»(Lc 21, 25). Dos primeiros aos últimos dias, peregrinamos na companhia do Último, do Definitivo, do Eterno.

O tempo não é apenas o campo do transitório, do passageiro e do efémero. No tempo, já habita a eternidade. No que passa, já fermenta o que não passa, o que nunca passará. No homem, já mora Deus. Assim sendo, somos anunciadores do Primeiro e discípulos do Último, sabendo que o Primeiro e o Último são a mesma pessoa: o Filho de Deus feito homem em Jesus Cristo.

 

  1. Em tempo de Advento, a Santa Igreja convida-nos a celebrar a primeira chegada com os olhos voltados para a última vinda. Na primeira vinda, uma mulher deu à luz Jesus Cristo. Na última vinda, toda a humanidade dará à luz Jesus Cristo. Como Maria, também a humanidade está «grávida» de Cristo. Nenhuma nuvem nos impedirá de ver o Filho do homem «com grande poder e glória»(Lc 21, 27). Esse não será um momento de pavor, mas uma hora de libertação. Daí o apelo de Jesus: «Quando isto começar a acontecer, endireitai-vos e levantai a cabeça, porque a vossa libertação está próxima»(Lc 21, 28).

Por conseguinte, o fim não nos deve inspirar temor, mas destemor. O fim é uma inspiração: é uma inspiração para a missão. Sabemos donde partimos, sabemos para onde caminhamos.

 

B. A Sua vinda é a nossa vida

 

3. Não é em vão que o Ano Litúrgico se inicia com este grande horizonte que vai do princípio até ao fim. Não andamos perdidos nem nos devemos sentir desperdiçados. A nossa vida decorre entre advento e advento, entre uma vinda e outra vinda, entre a primeira vinda e a última vinda de Jesus. Mas não nos limitamos a recordar uma vinda e a preparar outra vinda. Não somos órfãos nem nos limitamos a estar expectantes. Entre estas duas vindas, há uma terceira vinda. Deus está sempre a vir, está sempre a vir até nós. A Sua vinda é, pois, a nossa vida.

Deus veio, Deus virá, Deus vem. Afinal, nunca deixa de ser Advento. Deste modo, não é só no Advento que existe advento. Estamos sempre em Advento. Cada advento é evento de Deus, é evento de Deus na história, é evento de Deus na nossa vida. Deus está a vir continuamente até nós. Será que estamos disposto a ir até Deus? Como reconheciam os cristãos antigos, em Jesus Cristo, Deus fez-Se o que nós somos para que nós possamos ser o que Ele é!

 

  1. Nunca esqueçamos que o Advento nunca é passado. Mesmo o Advento que ocorreu no passado não está jamais ultrapassado. O Advento é sempre presente. O Advento que ocorreu no passado continua a frutificar no presente. E o Advento que há-de ocorrer no futuro também começa a fermentar no presente. Deus veio no passado, Deus virá no futuro e Deus vem no presente: em cada presente e como presente.

Uma vez que Deus está sempre a vir, então estamos sempre em Advento. Trata-se do Advento constante embora talvez seja também — e para nosso pesar — o mais desperdiçado. Preparemo-nos, então, para celebrar o primeiro Advento, que nunca deixa de estar perto, e nunca deixemos de nos preparar para o último — e definitivo — Advento, do qual já estivemos mais distantes.

 

C. Nem só no Advento há advento

 

5. Tal como não há só Advento no Advento, também não há só Natal no Natal. Deus está sempre a (re)nascer em nós; queiramos nós também (re)nascer para Ele. Que seja, pois, Advento para lá do Advento e que seja Natal para lá do Natal. Que seja sempre Advento e que seja sempre Natal. Mas, já agora, que seja Advento também no Advento e que possa ser Natal também no Natal. Vamos procurar encontrar o Advento neste Advento e vamos procurar reencontrar o Natal neste Natal. Para que nunca deixe de ser Advento e para que possa ser sempre Natal.

Como bem notou o teólogo Johannes Moeller, a Igreja é, ela própria, a «Encarnação permanente». Ou seja, mais do que continuação de Cristo, a Igreja, em si mesma, é a presença de Cristo. Neste sentido, podemos dizer que na Igreja encontramos sempre o contínuo Advento e o permanente Natal. É, de facto, na Igreja, especialmente na Palavra e no Pão, que Deus está sempre a vir. É na Igreja, sobretudo na Palavra e no Pão, que Deus nos fala, que Deus nos chama, que Deus nos alenta e que Deus nos alimenta.

 

  1. Nós não evocamos episodicamente um ausente; nós celebramos continuamente uma presença. Hoje, Jesus não está menos vivo do que esteve há dois mil anos. Hoje, Jesus continua a estar vivo na Sua Igreja e em toda a humanidade, nomeadamente na humanidade sofrida e oprimida de tantos irmãos nossos.

Não esqueçamos que, quando apareceu no mundo, Deus surgiu como uma criança pequena e nunca deixou de Se identificar com os mais pequenos (cf. Mt 25, 40). É esta a lição do presépio, é este o ensinamento perene do Evangelho: Deus revela-Se na humildade, Deus visita-nos na simplicidade. A esta luz, não olhemos apenas para a grandeza do que nos aparece como grande; aprendamos a olhar para a grandeza do que (nos) parece pequeno.

 

D. Fazer presépios é bom, mas ser presépio é (ainda) melhor

 

7. Neste tempo, convido-vos a mergulhar. Mas não mergulheis apenas no mar infindo do consumismo. Procurai mergulhar, antes, no oceano pacificante da contemplação, da partilha e da presença. Procurai mergulhar em Deus pobre, em Deus criança, em Deus amor, em Deus encanto. Trocai presentes, mas procurai ser presença. O melhor presente é sempre o presente da presença. Há tanta gente só e abandonada, que, nesta época, sofre ainda mais a solidão e o abandono.

Enfim, fazei presépios, mas, acima de tudo, procurai ser presépio. Que os outros possam ouvir Jesus nos vossos lábios. Que os outros possam ver Jesus na vossa vida.

 

  1. O Advento deve ser, antes de mais, um tempo de oração. A oração é a atitude própria de quem vela, de quem espera, de quem prepara. Daí a recomendação de Jesus: «Orai em todo o tempo»(Lc 21, 36). Sim, em todo o tempo e não apenas durante algum tempo. Havendo oração na vida, acabaremos por converter toda a vida em oração, isto é, em consciência de que Deus nos enche totalmente e nos preenche completamente.

A oração não é somente encontro: é encontro e éentrada. Na oração, notamos que não estamos apenas diante de Deus e Deus não está apenasdiante de nós. Na oração, verificamos que Deus está dentro de nós e nós estamos dentro de Deus.

 

E. Ele já vem ao encontro e já está à nossa espera

 

9. Enquanto tempo favorável à reconciliação, aproveitemos o Advento para a reconciliação sacramental, para o sacramento da Confissão. No fundo, trata-se de preparar a nossa casa para que ela possa ser casa para Deus e casa para os outros em Deus. Não tenhamos medo da mudança, da conversão. Em Jesus, Deus converte-Se a nós. Porque não, no mesmo Jesus, convertermo-nos a Deus?

Na medida do possível, façamos uma conversão também das nossas prendas. Procuremos dar a quem não nos poderá dar: aos pobres, àqueles a quem falta o essencial para sobreviver. E sobretudo procuremos dar o que menos se dá hoje em dia: demos tempo, demo-nos no tempo, demo-nos aos que estão ainda mais sós neste tempo.

 

  1. Em Advento, procuremos respirar, desde já, o sublime perfume do Natal.

A Eucaristia é o permanente Advento e o eterno Natal. É na Eucaristia que Jesus vem até nós hoje. É na Eucaristia que Jesus renasce para nós sempre. O altar é o grande presépio. A divina consoada já está preparada. Não recusemos o convite de Jesus. Ele vem sempre ao nosso encontro. Ele está sempre à nossa espera!

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publicado às 11:32

NÃO UM REI «DESTE» MUNDO, MAS UM REI PARA MUDAR «ESTE» MUNDO (34º Domingo do Tempo Comum — Solenidade de Cristo Rei)

por Zulmiro Sarmento, em 22.11.15
 

A. Sempre a ouvir Jesus e nunca a aprender  com Jesus

 

1. Todos os dias, ouvimos a mesma lição. E todos os dias, parece que desaprendemos a mesma lição. Dois mil anos é muito tempo para ensinar, mas parece não ser tempo bastante para aprender. Não são apenas os discípulos da primeira hora a ter dificuldades em conhecer Jesus. Nós, os discípulos desta hora, continuamos a manifestar tremendas dificuldades em compreender Jesus. Os discípulos de outrora sonhavam com o poder ao lado de Jesus (cf. Mc 10, 37). Muitos de nós, discípulos de agora, continuam a ambicionar o poder em nome de Jesus.

Aliás, não deixa de ser curioso notar como, já naquele tempo, «direita» e «esquerda» designavam categorias de poder. Para realizar a sua vontade de poder, os discípulos pediam para ficar à «direita» e à «esquerda» de Jesus (cf. Mc 10, 37). Nesse caso, tanto valia ficar à «direita» ou ficar à «esquerda». No seu imaginário, quer a «direita», quer a «esquerda» eram geradoras de poder. E isso bastava. E isso parecia ser o bastante.

 

  1. Não é, porém, esse o modo de ver de Jesus. Não é esse o mundo inaugurado por Jesus. Não é esse o mundo em que Jesus quer reinar. Só que, há dois mil anos, ninguém O entendeu. Será que, dois mil anos depois, já O teremos entendido?

No pretérito Domingo, víamos como Jesus, mais do que pressagiar o fim do mundo, estava apostado em contribuir para o fim deste mundo: para o fim deste mundo de ódio, de rancor, de mentira e de injustiça. Não é de um mundo assim que Jesus é rei. Jesus é rei, sim, mas de um mundo novo, de um mundo renovado, de um mundo totalmente transfigurado. Definitivamente, Jesus não é rei deste mundo. Jesus é rei para mudar este mundo.

 

B. Como é o reino de Jesus?

 

3. Neste sentido, Jesus não Se considerava um rival do imperador nem um concorrente de Pilatos. Jesus não quer ocupar o seu lugar, mas transfigurar a sua vida e a vida do mundo inteiro. O Seu reino não é daquele mundo (cf. Jo 18, 36), daquele mundo de jogos de poder e de ambições, de senhores e de servos, de preferidos e de preteridos. O reino de Jesus não é o reino do imperador nem do seu representante Pilatos. O reino de Jesus não é daquele mundo e, como diria o escritor João de Melo, o mundo de Jesus também não é daquele reino.

Jesus é rei de um mundo de irmãos, onde todos são filhos de um único Pai. A grande revolução de Jesus é, pois, a filiação plena e a consequente fraternidade universal. Porque filhos de Deus, somos irmãos de todos. Foi por isso que Jesus não nos ensinou a invocar um «Pai meu», mas um «Pai nosso»(cf. Mt 6, 9). E nessa medida, também não nos ensinou a pedir um «pão meu», mas um «pão nosso»(cf. Mt 6, 11), ou seja, um pão para todos.

 

  1. É deste mundo que Jesus é rei. É um mundo que nos parece utópico e que, nessa medida, achamos ser apenas futuro. Daí que nos aquietemos e acomodemos. Daí até que, em nome de um estranho pragmatismo, nos integremos na lógica de um mundo assim. Em vez de contribuir para a transformaçãodeste mundo, optamos por nos inserir na lógica deste mundo.

Acontece que, quando Jesus diz que o Seu reino não é deste mundo (cf. Jo 18, 36), não está a sugerir que fiquemos à espera de que estemundo passe, embora saibamos que ele vai passar. O que Jesus está a dizer — quando diz que o Seu reino não é deste mundo (cf. Jo 18, 36) — é que Ele veio para transformar estemundo, nomeadamente as pessoas que nele vivem. O que Jesus está a propor é que todos trabalhemos para que este mundo seja, não o contrário do mundo futuro, mas a preparação — e o alicerce — do mundo futuro.

 

C. O reino de Jesus é um reino de verdade

 

5. Ao confirmar que é rei (cf. Jo 18, 37), Jesus está a dizer que Ele é o primeiro nesta causa em prol da transformação deste mundo. Ele é o primeiro e é também o modelo e a referência para essa mesma transformação. Isto significa que, ao dizer que é rei, Jesus está a mostrar em que consiste o mundo renovado que Ele veio inaugurar. Trata-se de um mundo guiado pelo Evangelho e pela Lei Nova do Amor.

No fundo, Jesus não está a prevenir-nos para a dissolução — ou para a destruição — deste mundo. Jesus está a convocar-nos para a transformação deste mundo num mundo diferente, num mundo onde o Evangelho seja a única regra de vida. De facto, Jesus não quer uma expectativa passiva, mas uma esperança activa. Ele não quer que fiquemos à espera de que este mundo acabe. O que Ele quer é que contribuamos para que este mundo se renove. Uma coisa é certa. Só há mundo novo com pessoas novas.

 

  1. A este propósito, não deixa de ser significativo — e poderosamente revelador — verificar como Jesus associa o Seu reino à verdade. De facto, ao dizer que o Seu reino não é deste mundo, fica claro que Jesus não quer ser rei de um reino de mentira, de um reino de falsas verdades ou de um reino de meias verdades.

Como assinala o Prefácio da Oração Eucarística deste Domingo, o reino de Jesus é um «reino de verdade». A mentira não tem lugar nele. Na mentira, nenhum de nós terá lugar nele. É que Jesus veio a este mundo «para dar testemunho da verdade»(Jo 18, 37). Mais: Ele próprio é aVerdade (cf. Jo 14, 6).

 

D. A verdade é uma pessoa: Jesus

 

7. Como pode Jesus ser rei neste mundo se neste mundo há tanta mentira? Como pode Jesus ser rei neste mundo se neste mundo se enriquece à custa de tanta mentira? Como pode Jesus ser rei neste mundo se neste mundo se triunfa à custa de tanta mentira? Jesus tantoescancara a verdade do mundo novo comodesmascara toda a mentira deste mundo envelhecido.

Mas o que é a verdade? Não ouvimos esta pergunta no texto que escutámos, mas é a pergunta que aparece logo a seguir, nos lábios de Pilatos (cf. Jo 18, 38). Jesus não responde a tal pergunta porque, afinal, já tinha respondido. Essa resposta vem mesmo no fim do Evangelho deste dia: «Todo aquele que é da verdade escuta a Minha voz»(Jo 18, 37).

 

  1. Está aqui condensado todo o programa do reino de Jesus e aponta-se aqui também a única condição para sermos cidadãos desse reino: basta sermos verdadeiros. Seremos verdadeiros se estivermos na verdade. Como avisava Xavier Zubiri, não se trata de possuir a verdade, mas de nos deixarmos possuir pela verdade.

Acontece que a verdade não é um conceito, uma afirmação, um enunciado. A ser assim, haveria muitas verdades e haveria — como infelizmente tem havido — muitos conflitos entre essas verdades. A verdade é uma pessoa, é uma vida: é a pessoa de Jesus, é a vida de Jesus.

 

E. Dar testemunho da verdade é dar testemunho de Jesus

 

9. A verdade não é tanto para dizer; é sobretudo para viver. A verdade não vem tanto pelos lábios; vem sobretudo pela vida. É verdade o que sai dos lábios quando corresponde ao que brota da vida. A voz de Jesus (cf. Jo 18, 37) estava em plena sintonia com a vida de Jesus. Podíamos acreditar na Sua voz porque a Sua voz era a transparência total da Sua vida.

Como refere o Livro do Apocalipse, Jesus é «testemunha fiel»(Ap 1, 5), é a testemunha fiel da verdade. Também nós seremos testemunhas da verdade se formos testemunhas fiéis de Jesus. Nenhum de nós tem a verdade, mas cada um de nós pode — e deve — estar na verdade. Nós não somos a verdade, mas podemos — e devemos — ser verdadeiros. Seremos verdadeiros se estivermos com a verdade, isto é, se estivermos com Jesus, que é a verdade.

 

  1. Eis, pois, aqui desenhado o percurso da missão. A missão é, antes de mais e acima de tudo, um serviço à verdade ou, como dizia São João Paulo II, uma «diaconia de verdade». Estaremos dispostos a exercer esta «diaconia da verdade»? Sabemos onde está a verdade. A verdade é Jesus. Dar testemunho da verdade é, pois, dar testemunho de Jesus. O Seu reino há-de consumar-se no mundo que há-de vir, mas há-de germinar já neste mundo: não neste mundo como ele está, mas neste mundo como Jesus quer que ele esteja.

É por isso que este rei não está num palácio. Jesus quer reinar no coração de cada pessoa. De cada pessoa verdadeira, de cada pessoa que vive o Evangelho a vida inteira!

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publicado às 20:31

Servir e não servir-se

por Zulmiro Sarmento, em 17.11.15

 

 
Frei Bento Domingues, O.P.

1. Dizem-me que a papolatria, que denunciei várias vezes nestas crónicas, morreu. Era um culto hipócrita usado para esconder as manobras anticristãs da Cúria vaticana e de algumas cúrias diocesanas. Quando o Papa Francisco manifestou que esses poderes arbitrários seriam desmantelados, os ratos não abandonaram a barca. Criaram redes, internas e externas, de sabotadores das iniciativas da liderança de Bergoglio.

Segundo essa opinião, não se trada da defesa da liberdade e do pluralismo na Igreja que, aliás, raramente tiveram um clima tão favorável. Procura-se semear alguns escândalos e multiplicar as insinuações para convencer os carreiristas clericais e os dirigentes de movimentos e instituições da Igreja de que o argentino está velho e um tumor no cérebro seria o responsável pelos seus desmandos doutrinais. A voz diária das missas na capela de Santa Marta, os discursos e as mensagens, a enumeração das quinze doenças da Cúria, desde a falta de autocrítica, avidez de poder, acumulação de bens materiais até à hipocrisia, não irão sobreviver a um funeral mais ou menos solene e próximo.

Confesso que essa tese me pareceu demasiado elaborada e vizinha das teorias da conspiração, mas foi o próprio Papa Francisco que, no passado domingo, dia 8, a confirmou, quanto ao essencial.

Após a celebração da missa de domingo, dirigiu-se aos fiéis, presentes na Praça de São Pedro, afirmando que sabe que muitos deles estão indignados com as notícias que têm circulado, nos últimos dias, sobre os documentos da Santa Sé que foram roubados e publicados. Nas primeiras palavras sobre o escândalo, o Papa indicou que foi ele que pediu para se fazer o estudo sobre as finanças do Vaticano e que sabia, tal como os seus colaboradores mais próximos, da existência dos referidos documentos. Tomaram-se medidas que já estão a dar frutos. Quero dizer que este triste facto não me afasta do trabalho e das reformas que estou a realizar com os meus colaboradores e com o vosso apoio. O papa disse ainda que a Igreja se renova através da oração e com a santidade quotidiana de cada batizado. Pediu aos fiéis que rezassem por ele e pela Igreja, avançando com confiança e esperança.

O inquérito sobre o caso já levou à detenção, no fim-de-semana passado, do sacerdote espanhol Lúcio Ángel Vellejo Balda e da italiana Francesca Chaouqui, entretanto libertada.

2. O que mais aborrece o Papa Francisco, como declarou na homilia do dia 6, em Sta Marta, é uma Igreja morna, ensimesmada, com avidez de negócios, sem escrúpulos. Essa não é uma Igreja que está ao serviço, mas que se serve daqueles que deveria servir.

Na sua homilia, pediu ao Senhor que nos dê a graça que deu a Paulo, cuja honra era ir sempre mais longe, renunciando às regalias e às tentações farisaicas de vida dupla: apresentar-se como ministro do Evangelho, como aquele que serve, mas no fundo estar a servir-se dos outros, a exibir-se.

Também na Igreja, há carreiristas e apegados ao dinheiro. Quantos sacerdotes e bispos não vimos já assim? Sei que é triste dizer isto, mas também quanta alegria ao ouvir as narrativas daqueles e daquelas que, desde a Amazónia a África, me vêm dizer, sorrindo, que “há 30 anos sou missionário, missionária” ou que “há 30 ou 40 anos sirvo em centros hospitalares pessoas com necessidades especiais”. Isto é aquilo que Paulo fez: servir. Igreja que não serve torna-se Igreja mercantil!

3. Hubert Wolf [1], ao falar na Igreja-Reforma da cabeça e dos membros, chama a atenção para o seguinte: “um Papa que aplica em si mesmo o projecto de oposição à rica e faustosa Igreja papal – isso tem uma potência explosiva. Francisco precisará de aliados influentes para impor as suas reformas, de modo a que não lhe aconteça o mesmo que ao seu antecessor Adriano VI: este Papa nascido em Utrecht ficou marginalizado em Roma. O seu estilo de vida simples, que abdicou de toda a pompa da autoencenação papal, a sua austeridade e a sua humilde piedade foram rejeitados pela Roma renascentista. As suas ideias radicais de reforma ameaçaram a alteração do estilo de vida de cardeais e prelados que se viam mais como príncipes do Renascimento do que como homens da Igreja. Assim, não tardou muito até que as Eminências lamentassem, num momento de fraqueza e impulso religioso, ter elegido um reformador e começassem a torpedear todas as suas iniciativas. Adriano VI morreu derrotado, após um pontificado de escassos treze meses. É de Plínio, o Velho, uma frase que Adriano citava regularmente durante o seu pontificado e que foi inscrita no seu túmulo [2]: Ah, como influem os tempos na eficácia dos actos até do melhor dos homens”.

Jesus também não teve grande sorte por ter resistido às tentações do poder político, económico e religioso, coisa que os discípulos nunca entenderam, mesmo depois de lhes ter sido muito bem explicado [3].

Público, 15.11.2015
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[1] Professor na Universidade de Münster, Brotéria, 181 (2015) 231-241
[2] Igreja nacional alemã de Santa Maria dell’Anima, em Roma
[3] Marcos 10, 35-45; Lucas 17,16; 22, 4-28; João 13,1-7

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publicado às 15:55

O QUE NÃO PASSA DEPOIS DE TUDO PASSAR (33º Domingo do Tempo Comum)

por Zulmiro Sarmento, em 14.11.15
 

A. Neste mundo, tudo passa

  1. Sabemos que o mundo é feito de mudança. Mas não costumamos pensar que o mesmo mundo parece ser feito também de decadência. De facto, neste mundo tudo muda e tudo acaba. Tudo se vai desgastando desde o princípio e tudo se gastará completamente no fim. O Evangelho avisa: até o sol deixará de dar luz, até a lua perderá o seu brilho, até as estrelas cairão (cf. Mc 13, 24-25). E a ciência não cessa de mostrar que, no universo, há estrelas a morrer e há estrelas que já morreram, arrastando na sua morte os corpos que delas dependiam.

O que é que não passa depois de tudo passar? Só Deus não passa. Tudo o resto passa, tudo o resto cai. Cai o pequeno, mas cai também o que se julga grande. Cai o pobre, mas cai também o rico. Cai o fraco, mas cai também o que se julga forte. Caem as vítimas, mas caem também os que oprimem as vítimas. Enfim, somos todos arrastados por uma corrente que nos leva para o fim. Somos todos chamados para um fim. E somos todos convidados para um bom…fim!

 

  1. Este discurso de Jesus não quer ser assustador. Pelo contrário, este discurso de Jesus só pretende ser mobilizador. Chamando a nossa atenção para a inexorável decadência de tudo quanto existe, proclama que só Deus subsiste. Como bem notou Santa Teresa, nesta vida «tudo passa, só Deus basta». Passarão todas as coisas que há na terra, passará a própria terra; só Deus — e Palavra de Deus — não passarão nunca (cf. Mc 13, 31).

Neste sentido, o grande apelo que Jesus nos faz é que não nos deixemos aprisionar por este mundo, mas que, neste mundo, nos fixemos em Deus. Quem está em Deus não acaba no fim já que, para o homem, Deus é o fim sem fim, é o fim que nunca terá fim.

 

B. Só em Deus existe o fim sem fim

 

3. Como bem percebeu Gandhi, «o que importa é o fim para o qual somos chamados». Deus é o fim para o qual todos nós somos — permanentemente — chamados. Nunca sossegaremos enquanto não encontrarmos este fim, enquanto nos reencontrarmos na procura deste fim.

Sto. Agostinho confessou, com base na sua própria experiência: «Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração anda inquieto enquanto não repousar em Vós». É que, como admiravelmente poetou o nosso Antero de Quental, «na mão de Deus, na Sua mão direita, descansa afinal o meu coração».

 

  1. Deste modo, salta à vista que fim não é destruição; é plenitude e há-de ser transformação. Ao vincar a decadência de tudo quanto existe, Jesus estabelece um contraste entre este mundo presente e o mundo futuro. E mais do que nos alertar para o inevitável fim de tudo quanto há no mundo, o que Jesus deseja é animar-nos na nossa peregrinação rumo à plenitude.

Cada um de nós é chamado a uma vida plena, a uma vida transformada. E nem sequer é preciso aguardar pelo fim dos tempos. Em cada momento, Deus oferece-nos uma vida plena, uma vida transformada. No fundo, enquanto no tempo caminhamos para a eternidade, vamos sentindo que o Eterno já habita no Tempo e que o Céu já mora na Terra.

 

C. O «Último» que nos leva até às «coisas últimas»

 

5. Jesus não nos esclarece apenas sobre as «coisas últimas» («éschata»). Acima de tudo, Jesus está sempre a oferecer-nos o que é «último» («éschaton»). Ele não nos deixa de instruir sobre as «coisas últimas» que acontecerão nos «últimos dias»(Mc 13, 24).Nessa altura, ocorrerá a última vinda de Jesus («parusia»), em que será consumada a transformação que Ele operou com o Seu mistério pascal: paixão, morte e ressurreição.

Mas o que é verdadeiramente último já está presente no meio de nós. Jesus é o «éschaton» que nos conduz até às «éschata». Ou seja, Jesus é «o Último» que nos conduz até às «coisas últimas». Dizendo ainda de outra maneira, Jesus é «o Fim» que nos conduz até ao fim e até para lá do fim.

 

  1. Assim sendo, não há motivos para andarmos alarmados com o fim do mundo. Há, sim, motivos — todos os motivos — para nos empenharmos no fim deste mundo. Quanto ao fim do mundo, Jesus tem o cuidado de ressalvar que ninguém sabe o dia e a hora; só o Pai sabe (cf. Mc 13, 32). O que Jesus quer é que nos envolvamos no fim deste mundo de injustiça, no fim deste mundo de mentira, no fim deste mundo de ódio, no fim deste mundo de corrupção.

Ele conta connosco para anteciparmos a eternidade no tempo e para trazermos o céu para a terra. Aliás, para nenhum de nós haverá céu sem terra: colheremos no céu o que formos semeando na terra. É o que decorre da parábola da figueira: quando os ramos ficam tenros e as folhas surgem, é sinal de que o Verão está perto e de que a colheita não está longe (cf. Mc 13, 28-29).

 

D. Não alarmados com o fim do mundo,

mas a trabalhar para o fim deste mundo

 

7. O céu é colheita, é transformação, é plenitude. Isto significa que alcançaremos o céu na medida em que nos formos transformando na terra. E uma vez que o céu é a felicidade, é importante que procuremos acabar com toda a infelicidade que ainda subsiste. Deus não quer que o mundo seja o contrário do céu. Deus não quer que passemos mal no mundo para passarmos bem no céu. Deus quer que sejamos felizes já neste mundo, para sermos inteiramente felizes no céu. Deus quer que o mundo seja o começo do céu, a sementeira do céu.

Tendo, entretanto, em conta que somos criados para Deus, então só vivendo em Deus é que seremos felizes. É por isso que podemos bater a todas as portas em busca da felicidade. Mas a felicidade só nos aparecerá quando batermos à porta de Deus, quando entrarmos definitivamente em Deus.

 

  1. É, pois, hora de acordar. Usando a linguagem do profeta Daniel, é hora de acordar para tantos que ainda estão a dormir (cf. Dan 12, 2). É hora de reentrar no caminho após tantos — e tão prolongados — descaminhos. Estas páginas não servem de susto, mas de esperança. É possível mudar, é urgente mudar. Não nos resignemos ao mundo como ele é; procuremos olhar para o mundo como ele pode ser. Nunca comecemos a desistir e nunca desistamos de (re)começar.

Nesta missão de trazer o céu para a terra, Deus é sempre nosso aliado. Será que nós queremos ser aliados de Deus? Nós contamos com Ele. Será que Ele pode contar connosco?

 

E. Os «hábitos na terra» e os «hálitos do céu»

 

9. Nós não somos daqui. A terra é um lugar de passagem e, pela amostra, de uma passagem rápida. É importante que não tenhamos um sabor a terra, mas que, na terra, exalemos sempre um sabor a céu. Os nossos «hábitos na terra» têm de procurar fazer soprar «hálitos do céu».

Por conseguinte, para que servem tantos ódios, tantas vinganças? Para que servem tantas ambições de fama e tantos sonhos de poder? Para que servem tantos atropelos aos outros, tantas calúnias a respeito dos outros?

 

  1. Olhemos para a frente, olhemos para o fim e nunca recuemos. Estejamos atentos e sejamos sempre vigilantes. Deixemos de quezílias e de questiúnculas. Concentremo-nos no essencial, no perene e no definitivo. Não troquemos o eterno pelo instante, mas sejamos capazes de «trocar o instante pelo eterno».

E, acima de tudo, não tenhamos medo das dificuldades nem sequer das perseguições. Já Sto. Agostinho notou que, na vida, vamos caminhando entre «as perseguições do mundo e as consolações de Deus». Se as perseguições são grandes, as consolações são (infinitamente) maiores. Ser discípulo de Jesus não é ter uma vida fácil. Mas também não é a facilidade que nos leva à felicidade. E Jesus não nos prometeu a facilidade, mas a felicidade. Ele é a felicidade!

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publicado às 22:42

A POBREZA DE QUEM É RICO E A RIQUEZA DE QUEM É POBRE (32º Domingo do Tempo Comum)

por Zulmiro Sarmento, em 08.11.15
 

A. Não rica porque tem, mas rica porque dá

  1. Não há dúvida de que Jesus é o maior — para não dizer o único — revolucionário da história. Ele não só inova como renova, ou seja, não Se limita a trazer novidades; Ele mesmo é a novidade. Ele não muda apenas o exterior; Ele muda tudo a partir do interior. Ele não altera somente as estruturas; Ele transforma toda a vida, a começar pelos critérios para entender a vida. Para Jesus, o muito não é o critério para o pouco; o pouco é que é critério para o muito. Para Jesus, o grande não é critério para o pequeno; o pequeno é que é critério para o grande. No fundo, só o pequeno é verdadeiramente grande.

    Neste Domingo, aquele Jesus que proclama «felizes os pobres»(Mt 5, 3) apresenta-nos como modelo uma mulher pobre (cf. Mc 12, 42), que, no fundo, até era rica. Ela não é rica porque tem; ela é rica porque dá. Ao dar o pouco que era tudo o que tinha (cf. Mc 12, 44), ela mostrou ser mais rica que os maiores ricos. É que enquanto os outros davam do que tinham, ela deu o que tinha, o que faz toda a diferença. Ao dar esse pouco, ela deu tudo, deu-se a si mesma, deu o seu ser. Os outros eram ricos de ter, mas vazios de ser. Pelo contrário, esta mulher, vazia de ter, revelou que era imensamente rica de ser.

 

  1. Esta diferença encerra uma grande — enorme — lição. De facto, Deus não aprecia quem dá pouco, mas também não se satisfaz com quem dá muito. Deus gosta de quem dá tudo, de quem se dá todo, de quem se entrega completamente. Foi, aliás, essa a atitude do próprio Jesus. Como reconheceu S. Paulo, Jesus, que era rico, fez-Se pobre e enriqueceu-nos com a Sua pobreza (cf. 2Cor 8, 9).

Isto significa que a pobreza é a maior riqueza. Não se trata de um contraste nem sequer de um paradoxo. Ser pobre é sobretudo ser disponível, ser oblativo. Ser pobre é vencer as prisões que nos esganam dentro de nós. Ser pobre é não ser possuído; é repartir o que se possui, o que se é.

 

B. Pobreza não é o mesmo que miséria

 

3. Facilmente percebemos que pobreza não é o mesmo que miséria. O mal não está na pobreza. O mal está na miséria. Pelo que se todos soubessem ser pobres, a miséria terminaria. Miséria é quando não se tem. Pobreza é quando se reparte o que se tem. Daí que o Abbé Pierre tenha sinalizado a diferença: «A miséria é aquilo que impede um homem de ser homem. A pobreza é a condição para ser homem».

Assim sendo, é a pobreza que nos faz perceber que viver é conviver. É a pobreza que nos permite entender que não somos proprietários definitivos de nada, mas somenteadministradores provisórios de tudo. O que temos não nos pertence só a nós. De resto, nem nós mesmos somos donos de nós.

 

  1. É por isso que, ao contrário de Sartre, que achava que «o inferno são os outros», o mesmo Abbé Pierre proclamava que «o inferno é viver sem os outros». A miséria é infernal porque há corações que são como muros: são difíceis de abater. Jesus declara felizes os pobres (cf. Mt 5, 3) porque não suportam viver sem os outros, porque não estão condicionados pelo espaço, pelo tempo ou pela posse.

Os pobres são felizes porque vivem comoexpropriados. Não se sentem donos de nada nem tão-pouco se consideram donos de si. Eles são felizes porque sentem alegria na felicidade dos outros. Os pobres são felizes porque são, literalmente, «extro-vertidos», ou seja, vivem voltados para fora de si, são totalmente descentrados. O seu centro é Deus e são os irmãos, que eles encaram como filhos de Deus.

 

C. Só a dádiva cobre a dívida

 

5. Não há dúvida de que o século XX foi o século dos direitos humanos. Mas também foi o século da violação de muitos desses direitos. O século XXI terá de ser, pois, o século dos direitos de todos e dos deveres de cada um. Já o Abbé Pierre sintetizara: «O século XXI será fraterno ou fracassará». É urgente não ignorar que Deus está não só no Céu, mas também na Terra. É particularmente imperioso estar atento àpresença soterrada de Deus nos que são atirados para a miséria.

Cada pessoa tem uma alma. Mas, «antes de lhe falarmos dela, coloquemos uma peça de roupa e um tecto por cima dessa alma. Depois disso, explicar-lhe-emos o que está lá dentro». Não se trata apenas «de dar algo de que viver, mas de oferecer aos infelizes razões para viver».

 

  1. A dívida não é só quando temos algo para pagar. A dívida existe também — e sobretudo — quando vemos alguém a necessitar. Regra geral, preocupamo-nos com as dívidas em relação aos bens. Era bom que nos preocupássemos com as dívidas que temos para com as pessoas. É que se pensarmos bem, todos somos devedores, todos estamos em dívida e todos devemos ser dádiva. Só a dádiva cobre a dívida!

Esta mulher pobre deu tudo para o templo de Deus. Sucede que, hoje em dia e como nos recorda S. Paulo, o verdadeiro templo de Deus é o ser humano (cf. 1Cor 3, 16). Foi por isso que Sto. Ireneu notava que «a maior glória de Deus é o homem vivo». Pelo que tudo aquilo que for feito ao ser humano acaba por ser feito ao próprio Deus. Daí que S. João nos avise: «Quem ama a Deus, ame também o seu irmão»(1Jo 4, 21).

 

D. Cuidado com as vistas curtas

 

7. Acresce que a atitude desta mulher pobre — que, afinal, era mais rica do que todos os ricos — mostra que, neste mundo, tudo é passageiro, tudo é perecível. Esta mulher pobre — mais rica do que todos os ricos — ensina-nos que, no presente, é preciso olhar para o futuro e avançar para o eterno.

Esta mulher não trocou o futuro pelo presente. Optou, antes, por orientar o presente em função do futuro. O presente há-de ser construção do futuro. Mas, para isso, é preciso estar disposto a transformar o presente, a não ficar amarrado às vistas curtas que acabamos por ter em cada presente. Já Xavier Zubiri olhava para o presente como «transcorrência», isto é, como passagem para o futuro. E, nessa medida, como porta aberta para o eterno.

 

  1. É possível que, muitas vezes, nos deixemosamarrar também pelas mesmas vistas curtas dos senhores importantes da época de Jesus. Só partilhamos as sobras. Se repararmos bem, gastamos tanto tempo e tanto dinheiro em inutilidades, em inanidades, em futilidades.

O que não fazemos, por vezes, para passearmos «longas vestes» e por registarmos «cumprimentos» nas praças (cf. Mc 12, 38)! As praças de hoje podem ser as redes sociais e os cumprimentos podem ser os «likes» que gostamos de exibir como padrão de afirmação pessoal. O que não fazemos para disputar os «primeiros assentos» e os «primeiros lugares» (cf. Mc 12, 39). Achamos que é assim que triunfamos.

 

E. Nunca perdemos quando (nos) damos

 

9. No fundo e como denunciou Jesus, corremos o risco de viver a fingir (cf. Mc 12, 40). Fingimos que rezamos, fingimos que partilhamos, fingimos que somos amigos. Será que fingimos que vivemos? Jesus nunca gostou do fingimento e tem palavras muito duras para com os fingidos (cf. Mc 12, 40).

É preciso ser e não fingir ser. É importante dar e não fingir que se dá. Aqui, a parcialidade não chega. Ser e dar só na totalidade. Somos sempre o que damos e devemos dar sempre o que somos. É fundamental que a nossa língua esteja em sintonia com a nossa alma. E é decisivo que o nosso exterior seja o eco do nosso interior.

 

  1. Só o pobre entende o pobre. Só quem passa por necessidades entende as necessidades. Só quem sente privações é sensível às provações. Aprendamos, então, com os pobres e peçamos a Deus que nos dê um coração de pobre. Aprendamos com Jesus, que nos enriquece com a Sua pobreza (cf. 2Cor 8, 9). Se meditássemos na riqueza que há pobreza, estaríamos mais atentos à pobreza de tantas riquezas. Com efeito, se olhássemos para a pobreza de tantas riquezas, pediríamos a Jesus que nos enriquecesse com a Sua pobreza. Porque era pobre, a mulher do Evangelho sabia valorizar o que existir fora de si. Percebeu a natureza do verdadeiro culto a Deus e quis contribuir.

Aliás, nós sabemos que, ainda hoje, quem mais contribui para o culto são os pobres, são os simples, são os humildes. Só que, tantas vezes, nós recebemos o dinheiro dos pequenos e fazemos agradecimentos aos grandes. Também em Igreja temos de perceber que, sem discriminar ninguém, são os pobres que nos dão lições. Assim fez Jesus. Jesus valorizou esta «pobre viúva»: porque não deu pouco, porque não deu muito, mas porque deu tudo. Como seria diferente o mundo se cada um de nós conjugasse mais o verbo «dar». Comecemos hoje. Nunca perdemos quando nos damos. Quando nos damos, deixamos de habitar só em nós. Quando nos damos, muitas portas se abrem para nós além de nós. Quando nos damos passamos a habitar naqueles a quem nos entregamos!

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publicado às 20:37

TODOS PODEMOS SER SANTOS

por Zulmiro Sarmento, em 01.11.15
 

Santo és Tu, Senhor,

 

Santo é o Teu ser,

 

Santo é o Teu amor,

 

Santa é a Tua generosidade.

 

Santos são os Teus gestos.

 

Tudo é santo em Ti, Senhor.

 

 

Hoje é, pois, o Teu dia,

 

Como Teus, Senhor, são todos os dias.

 

Mas Tu queres que também nós sejamos santos.

 

A nós parece-nos um sonho impossível.

 

Mas para Ti, Senhor, é tarefa realizável, é missão que está ao nosso alcance.

 

Não estás aí, no alto, à nossa espera.

 

Está connosco, aqui, ao nosso lado, dentro de cada um de nós.

 

 

Ser santo é, afinal, ser (ou procurar ser) como Tu:

 

Manso, humilde, despojado, puro, pacífico.

 

Ser santo não é deixar a vida: é colocar a Tua Palavra no centro da vida.

 

Ser santo não é deixar o mundo: é depositar o Teu amor no coração do mundo.

 

Ser santo não é ser desumano: pelo contrário, é ser autenticamente humano, inteiramente humano, plenamente humano.

 

Ser santo é ser irmão, é ser fraterno, é estender a mão, é abrir o coração.

 

 

A santidade está no Céu, mas não está ausente da terra.

 

Ser santo é ser feliz: não apenas depois, mas também agora, já.

 

E ser feliz não é só quando se ri; é também quando se chora.

 

Tu, Senhor, proclamaste felizes os que choram.

 

 

Ser feliz não é ser rico de bens materiais: Tu, Senhor, declaraste felizes os pobres.

 

Ser feliz não é vencer as guerras: Tu, Senhor, chamas felizes aos que constroem a paz.

 

Ser feliz não é passar por cima dos outros: Tu, Senhor, consideras felizes os que têm fome e sede justiça.

 

Ser feliz não é ter uma vida sem problemas: Tu, Senhor, até dizes que podemos ser felizes quando somos perseguidos e insultados.

 

 

Ser feliz é não ser fingido.

 

É ser autêntico.

 

É manter a serenidade.

 

É acender a luz da esperança por entre as nuvens do desespero.

 

 

Obrigado, Senhor, por todos os santos que estão no Céu.

 

De muitos sabemos o nome e conhecemos a vida.

 

Mas há mais, muitos mais, cujo nome ignoramos e cujo número nem sequer conseguimos imaginar.

 

Muitos pertenceram à nossa família.

 

Muitos foram nossos vizinhos.

 

Santos são aqueles que deixaram, no mundo, uma semente de bondade e um rasto de luz.

 

 

Obrigado também, Senhor, por todos os santos que continuam aqui na terra.

 

Obrigado por nos convidares a ser santos.

 

Apesar dos nossos defeitos, Tu, Senhor, continuas a acreditar em nós.

 

Grava, no mais fundo de nós, este texto maravilhoso das Bem-Aventuranças.

 

Ele é o programa a seguir, o caminho a trilhar e a meta a alcançar.

 

Que o conservemos na mente e o guardemos no coração para que o possamos aplicar na vida.

 

 

Nossa Senhora, Mãe da esperança,

 

Acompanha-nos na nossa jornada pelo tempo.

 

Faz brilhar em nós a luz do Teu sim.

 

Tu és a toda santa, a toda bela, a toda pura.

 

Dá-nos a graça de sermos simples e fiéis,

 

Persistentes e constantes.

 

Semeia em nós a santidade.

 

Que sejamos humildes como Tu.

 

Que deixemos Deus fazer através de nós as maravilhas que Deus realizou por meio de Ti.

 

 

Ajuda-nos no caminho,

 

Acompanha-nos na viagem.

 

Apoia-nos quando cairmos.

 

Enxuga as nossas lágrimas.

 

Dá-nos a Tu mão, agora,

 

E recebe-nos no Teu coração, depois, na eternidade.

 

Que sejamos santos

 

E, por isso, felizes.

 

E, por isso, cada vez mais amigos,

 

Cada vez mais unidos,

 

Cada vez mais irmãos!

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publicado às 20:13

O QUE MUITOS (já) SÃO E O QUE TODOS SOMOS CHAMADOS A SER (Solenidade de Todos os Santos)

por Zulmiro Sarmento, em 01.11.15
 

A. Importante é querer ser santo

  1. Haverá alguém que não queira ser rico? Haverá alguém que não faça tudo para ser rico? Nem todos conseguem ser ricos, mas não há ninguém que não queira ser rico. Os nossos problemas, muitas vezes, começam aqui: pela falta de vontade. O nosso problema é que nem sempre queremos. O nosso problema é que nem sempre queremos o que mais devíamos querer. Os nossos lábios dizem, ao recitar o Pai-Nosso, que queremos fazer a vontade de Deus (cf. Mt 6, 10). Ora, Deus quer que sejamos santos (cf. Lev 20, 7). Mas será que queremos mesmo ser santos? Será que fazemos tudo — ou, pelo menos, alguma coisa — para sermos santos?

    Nem sempre há santidade nas riquezas. Mas há sempre riqueza na santidade. Foi, aliás, por causa dessa riqueza que muitos, como São Bento José Labre ou São Pedro Alcântara, não quiseram outras riquezas. E foi por causa desta riqueza que muitos outros, como Santo Antão ou São Francisco, deitaram fora todas as riquezas. Acresce que enquanto as riquezas nem sempre abundam em quem as procura, a santidade abunda sempre em quem a busca. Querer ser santo já é ser santo. E, no fundo, é tão fácil ser santo. Ser santo é meter Deus na nossa vida e é metermo-nos na vida de Deus. Deus está disponível para viver connosco. Será que nós estamos disponíveis para viver com Deus? Já houve um tempo em que ser cristão era igual a ser santo (cf. Rom 1, 7). Será que, hoje, temos essa vontade, essa disponibilidade, essa ânsia?

 

  1. A santidade é natural em Deus esobrenatural em nós. O que Deus é por natureza, nós somos chamados a ser por dom de Deus. Ser santo é, por conseguinte, tornar-se santo. E tornar-se santo é, no fundo, concretizar o desígnio primordial da criação.

Se o homem é imagem de Deus (cf. Gén 1, 26-27), e se Deus é santo, então o homem realiza a sua semelhança com Deus procurando ser santo. O homem procura ser santo não inventando uma qualquer santidade, mas incorporando a santidade de Deus na sua vida. Aliás, o próprio Deus deixa entrever que é pela santidade que o homem se torna Sua imagem. É o que encontramos no célebre preceito do Levítico, recordado por S. Pedro: «Sede santos, porque Eu, vosso Deus, sou santo»(Lev 11, 44; cf. 1Ped 1, 16).

B. Só há santidade pela santificação

3. Daí a necessidade da conversão, já que ainda estamos longe da santidade oferecida por Deus. É mediante o apelo à conversão que, segundo S. Marcos, Jesus começa a Sua missão: «Arrependei-vos e acreditai no Evangelho»(Mc 1, 15).

Só há santidade através de um percurso desantificação. A santificação é todo um processo de conversão, de transformação e de transfiguração. É no âmbito de tal processo que vamos passando da vida velha à vida nova, do pecado à graça. O santo é o pecador que não se resigna ao pecado. O santo, como afirmou Aan Su-Ky, «é o pecador que não desiste»: que não desiste de vencer o pecado.

 

  1. A santidade é uma prova de resistência e umcaminho de persistência. Temos de ter consciência dos nossos limites e de perceber que, sem Deus, nada conseguimos, nada de bom podemos alcançar. De resto, o próprio Jesus já nos preveniu contra qualquer devaneio: «Sem Mim, nada podeis fazer»(Jo 15, 5). Foi n’Ele que S. Paulo viu todas as possibilidades em aberto: «Tudo posso em Cristo que me dá força»(Fil 4, 13). Os santos abdicam de ser eles para deixar que Cristo seja neles (cf. Gál 2, 20). Os santos escolheram não ter vida própria, optando pela vida de Cristo, pela vida com Cristo. Mas não é isso o que é suposto todos fazermos desde o Baptismo? O problema é que nem sempre o que é verdade no plano sacramental se torna verdade no plano existencial. O problema é que a palavra dos lábios diz uma coisa e a palavra da vida revela outra coisa, muito diferente.

Hoje, celebramos tantos que demonstraram que ser santo, afinal, é possível. Hoje, celebramos o que muitos (já) são e o que todos nós somos chamados a ser. Muitos já conseguiram o que nós também podemos alcançar. A santidade não é só a meta, há-de ser também o caminho. Aliás, só pode chegar à meta da santidade quem se esforça por percorrer caminhos de santidade.

C. Celebramos não só uma morte santa, mas toda uma vida santa

5. Desde sempre, houve cristãos que acolheram este desafio. Não admira, por exemplo, que o Livro dos Actos dos Apóstolos chame «santos» aos cristãos que estavam em Lida (cf. Act 9, 32). Ser cristão era ser santo e, como nos primeiros tempos havia perseguições, então ser cristão e ser santo era ser mártir.

Por tal motivo, a Igreja, desde muito cedo, teve um dia para assinalar todos os mártires. Curiosamente, esse dia chegou a ser o dia 13 de Maio. Foi em Roma, depois de o Papa Bonifácio IV ter convertido o panteão do Campo de Marte num templo dedicado à Virgem Santíssima e a todos os mártires. No século VIII, o Papa Gregório III erigiu, na Basílica de S. Pedro, uma capela ao Divino Salvador, a Nossa Senhora, aos Apóstolos e a todos os mártires e confessores. Foi, entretanto, o Papa Gregório IV quem, no século IX, fixou esta festa no dia 1 de Novembro.

 

  1. A festa de Todos os Santos é a festa da santidade, é a festa da santidade viva, é a festa da santidade em vida. Nos santos, não celebramos apenas uma morte santa. Em cada santo, celebramos toda uma vida santa. É vital perceber que, embora celebremos os santos depois da morte, eles foram santos durante a vida. Não é a vida que nos impede de sermos santos. O santo não é extraterrestre. Não é sobre-humano. É da nossa terra. Pertence à nossa condição. Tantos são os santos que foram da nossa família. Ser santo é ser verdadeiramente humano, é participar na construção de um mundo melhor. Ser santo é intervir na transformação da humanidade. É não pactuar com a injustiça. É falar com os lábios e testemunhar com a vida. A santidade está ao alcance de todos. É o que há de mais democrático e invasivo.

A santidade faz de nós irmãos. A santidade não é indiferença; é diferença. Santo não é aquele que se mostra indiferente ao que ocorre à sua volta. A santidade nunca é fria. A santidade é quente, calorosa. O santo abraça, ri, chora, grita, insiste, persiste e nunca desiste. A santidade é a surpresa da paz no meio da tempestade. A santidade não é estrepitosa. Muitas vezes, até é silenciosa, mas sempre interveniente, interpelante. A santidade acontece em casa, na estrada, no trabalho.

D. As (provocadoras) felicitações de Jesus

7. Os santos não estão apenas no altar nem figuram somente nos andores. Não há só santos de barro. Há muitos santos de carne e osso, às vezes, mais osso que carne. Há muitos santos com fome. Há muitos santos na rua. Há muitos santos de enxada na mão. Há muitos santos com lágrimas no rosto e rugas na face. É neste contexto que Jesus nos dirige várias felicitaçõesque são outras tantas provocações. A felicidade não está onde costumamos pensar que ela esteja. As Bem-Aventuranças são provocações de felicidade. Afinal, é possível ser feliz chorando e sofrendo.

Feliz, por estranho que pareça, é o que começa por aceitar ser pobre de espírito (cf. Mt 5, 3). Ser pobre de espírito não é ser pobre de Espírito Santo nem falho de inteligência. Aqui, trata-se de ser pobre no espírito e de ter espírito de pobre. Ser pobre não é tanto não ter; é sobretudo partilhar o que se tem. Não esqueçamos que, como disse Bento XVI, Deus fez-Se homem e fez-Se homem pobre. No fundo, ser pobre é ser humilde, ou seja, é não querer afirmar-se pelo poder económico ou pelo poderio social. Ser pobre é ser último e querer estar ao lado dos últimos. São estes que Jesus chama para a frente. Ele próprio o disse: «Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos»(Mt 20, 16).

 

  1. Até a circunstância mais dolorosa pode ser a mais felicitante porque Deus nos aparece nela. É por isso que felizes podem ser os que choram (cf. Mt 5, 4) porque Deus os consola. Num mundo de violência, Jesus proclama felizes os mansos (cf. Mt 5, 5). Num tempo pejado de injustiças, Jesus declara felizes os que têm fome e sede de justiça (cf. Mt 5, 6), bem como os perseguidos por causa da justiça (cf. Mt 5, 10). Numa época de vinganças, Jesus apresenta como felizes os misericordiosos (cf. Mt 5, 7).

Numa era em que a corrupção alastra e os jogos escuros compensam, Jesus garante que felizes são os puros de coração, os que não têm dois rostos, mas uma só cara (cf. Mt 5, 8). Numa altura em que a violência não pára de crescer, Jesus considera felizes os construtores da paz: não os passivos, mas os pacíficos e pacificantes (cf. Mt 5, 9). Finalmente e como corolário, Jesus assegura que felizes são os ultrajados e perseguidos e aqueles de quem é dita toda a espécie de mal por causa d’Ele, por causa do Evangelho (cf. Mt 5, 11). É a provocação suprema. Mas, no fundo, trata-se da felicidade total. Do exterior sobrevêm obstáculos, mas no interior encontra-se a força para os vencer: o próprio Deus.

E. Tudo se decide entre a pobreza e a perseguição

9. Hoje, continua a haver quem seja perseguido e morto por causa de Jesus. Há quem não vacile nem recue. No fundo, a associação entre santidade e martírio, típica dos primeiros tempos, mantém-se. Anote-se que ser mártir é ser testemunha, pelo que ser santo e ser mártir nunca deixaram de ser confinantes. Já Sto. Agostinho percebeu que, nesta vida, vamos caminhando entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus. Sucede que onde as perseguições abundam, as consolações superabundam. E, depois, como notou o Concílio Vaticano II, aprouve a Deus salvar o mundo pelapobreza e pela perseguição.

É por isso que a primeira e a última bem-aventurança se enlaçam mutuamente, entrelaçando todas as outras. A santidade começa pela pobreza, pelo despojamento e é acompanhada sempre pela perseguição. Não é a perseguição que nos há-de fazer desistir nem recuar. Afinal, o Apocalipse fala-nos da incontável multidão, composta pelos «que vieram da grande tribulação, pelos que lavaram as túnicas e as branquearam no Sangue do Cordeiro»(Ap 7, 14).

 

  1. A santidade não é um passeio; é um testemunho exigente. Pode não implicar derramamento de sangue, mas requer imperativamente a oferta da vida. Toda a santidade é feliz e toda a felicidade pode ser santa. A santidade leva-nos a tomar consciência de que somos filhos de Deus (cf. 1Jo 3, 1-2) e, portanto, irmãos uns dos outros.

O céu está cheio de santos. Não deixemos que o mundo fique vazio de santos. Cultivemos uma santidade feliz e uma felicidade santa. Não tenhamos medo de ser santos. Ser santo é felicitar e semear felicidade. Ser santo é ser feliz e colher felicidade.

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