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SOBRE AS FOLCLÓRICAS FESTAS DO ESPÍRITO SANTO ...

por Zulmiro Sarmento, em 06.05.15

Não vos conformeis com este mundo

 
Frei Bento Domingues, O.P.

1. Nada mais irritante, no plano religioso, do que a invocação da vontade de Deus para justificar situações, acontecimentos trágicos, doenças, injustiças e misérias. Essa invocação é um insulto à inteligência humana e ao mistério insondável da divindade e da natureza. A laicização dessa mentalidade justificou a imoralidade de medidas de ordem económica, financeira e política, repetindo, anos a fio, que não havia alternativa à austeridade. Austeridade que, segundo outros, colocou milhares de pessoas na zona do insuportável e paralisou as energias criadoras de vastos sectores da sociedade.

Seja como for, Thomas Piketty, o celebrado autor de O Capital no século XXI, veio agora dizer aoPúblico [1] que há sempre alternativas: ”O que é realmente dramático é que transformámos uma crise que nasceu no sector financeiro privado americano numa crise de dívida pública, apesar de, inicialmente, a zona euro não ter mais dívida pública do que os EUA, o Reino Unido ou o Japão. Conseguimos, apenas por causa das nossas más instituições e más decisões macroeconómicas, criar uma crise a partir de nada”.

Este investigador mostra-se interessado em transformar a opinião pública, acabando com a sacralização da economia como conhecimento de um pequeno grupo de iluminados, que difunde a ideia de um universo “demasiado complicado”.

Vem isto a propósito de uma conferência, realizada em Tomar. Estava inscrita numa série destinada à preparação das festas do Espírito Santo que, nesta cidade, se exprime no exuberante “cortejo dos tabuleiros”. O tema que me foi atribuído - a dimensão social dessas celebrações – obrigou-me ao cruzamento do religioso, do económico, do social e do político, procurando não diluir nem separar esses diversos planos.

2. Na origem de tudo – para lá da festa agrária das colheitas - está a narrativa dos Actos dos Apóstolos [2], sobre uma comunidade de partilha integral dos bens, consequência do Pentecostes cristão: tinham tudo em comum, entre os seus membros não havia indigentes e cada um recebia conforme a sua necessidade.

O Abade Joaquim de Flora [3], da Calábria, viu nessa experiência do passado, em pequena escala, o futuro, a última era do mundo. Mediante uma original teologia da história, distribuiu o tempo por cada uma das pessoas da Santíssima Trindade. A era do reinado do Divino Espírito Santo superava e tornava caduca a época do Pai e a do Filho. Inaugurava o reinado do puro amor, da liberdade e da alegria, cume insuperável da história humana, sem contradições nem mediações. [4]

Este visionarismo teve uma posteridade, sempre renascente, desde a Idade Média, passando pela modernidade até aos nossos dias, em diversas versões, de modo original, na cultura portuguesa. [5]

3. O percurso inaugurado pela Rainha Santa Isabel, dentro de uma espiritualidade franciscana, desde Alenquer, Sintra e outras localidades teve, nos Açores, um lugar privilegiado e, através da sua imigração, alcançou uma difusão imparável para o Brasil, EUA, Canadá, etc.

Já no século XVI esta festa era celebrada a bordo das Naus do Brasil e das Armadas da India. Em carta enviada para Itália, desde Goa, o missionário jesuíta, Fúlvio de Gregori, comunica o seguinte: “Costumam os portugueses eleger um imperador pela festa de Pentecostes e assim aconteceu também nesta nau S. Francisco. Com efeito, elegeram um menino para imperador, na vigília de Pentecostes, no meio de grande aparato. Vestiram-no depois muito ricamente e puseram-lhe na cabeça a coroa imperial. Escolheram também fidalgos para seus criados e oficiais às ordens, de modo que o capitão foi nomeado mordomo da sua casa, outro fidalgo foi nomeado copeiro, enfim, cada um com o seu ofício, à disposição do imperador. Até entraram nisto os oficiais da nau, o mestre, o piloto, etc. Depois, no dia de Pentecostes (ou Páscoa do Espírito Santo), trajando todos a primor, fez-se um altar na proa da nau, por ali haver mais espaço, com belos panos e prataria. Levaram, então, o imperador à missa, ao som de música, tambores e festa e ali ficou sentado numa cadeira de veludo com almofadas, de coroa na cabeça e ceptro na mão, cercado pela respectiva corte, ouvindo-se entretanto as salvas de artilharia. Comeram depois os cortesãos do imperador e, por fim, serviram toda a gente ali embarcada, à volta de trezentas pessoas.” [6]

O recurso à entronização de uma criança-imperador, com todas as insígnias imperiais, assim como a partilha da mesma mesa, é uma subversão política, económica e social. Pode alimentar o desejo de um mundo às avessas do actual, mas ao acontecer uma vez por ano, em versão folclórica, pode reforçar o conformismo.

Prefiro, por isso, o carácter imperativo da posição de S. Paulo sobre o Espírito Santo, pois é este mundo que geme e sofre a dores de parto até ao presente, que é preciso transformar: Não vos conformeis com este mundo. [7] 

Público, 03.05.2015

- - - - - -
[1] 28. 04. 2015
[2]  Act 4, 32-37
[3] 1132-1202
[4] O Google tem diversas entradas sobre toda esta vasta problemática
[5] José Eduardo Franco, Revista Portuguesa de Ciência das Religiões – Ano I, 2002 / n.º 1 – 75-94, Cf Google,
[6] CF Irmandades do Divino Espírito Santo, Google
[7] Rm 8

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