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Hoje é dia de Natal. É dia do Natal da Mãe. É o começo do Natal do Filho. É o prenúncio do Natal para todos nós, Seus filhos. Feliz Natal, então, para vós. Para cada um de vós. Para todos vós.
A. Cada pessoa é bastante, mas não é o bastante
1. Confesso que nunca gostei de ouvir chamar a alguém «deficiente». Tal (des)qualificativo pressupõe que, por contraste, haja quem seja «suficiente». Mas haverá alguém verdadeiramente «suficiente»? Haverá quem seja «suficiente» para nascer, para receber educação e saúde? Cada pessoa é bastante, mas não é o bastante. Nenhuma pessoa se basta a si mesma.
Não faltará quem se considere «auto-suficiente», isto é, quem se considere «suficiente» em si mesmo, por si mesmo. Acontece que a experiência está sempre a mostrar que todos nós somos seres incompletos e, nessa medida, carentes e insuficientes. Sozinhos, nada conseguimos. Precisamos dos outros para nascer, para crescer, para receber educação e saúde. Se não houvesse tu, haveria eu?
Dá, porém, a impressão de que, amiúde, esquecemos esta verdade elementar e este dado absolutamente pertinente. Comportamo-nos como se não precisássemos de ninguém, como se por nós conseguíssemos tudo. É uma pretensão desmedida e descabida. É uma falsidade. É um embuste e uma ilusão. Cada um de nós é único, mas nenhum de nós é o único.
A nossa identidade e autonomia não podem funcionar como pretexto para cortar laços com os outros. Pelo contrário, a nossa identidade e autonomia constituem o alicerce do relacionamento com os outros. Como diria a (outrora) muito conhecida composição de António Macedo, sozinhos não somos nada, «juntos temos o mundo na mão».
2. Sozinhos, nem sequer nos conhecemos. O povo até diz que «ninguém é bom juiz em causa própria». E se o fundamental objectivo do conhecimento é cada um conhecer-se a si mesmo, a vida mostra que é sempre necessário que alguém no-lo recorde.
Com efeito, o oráculo de Delfos é visto como um imperativo divino lançado ao homem: «Conhece-te a ti mesmo». É Deus que diz ao homem para se conhecer. Fica a sensação de que, não havendo tal apelo, o homem tem dificuldade em conhecer-se. O Salmo 35 (v. 10) proclama que só na luz de Deus encontramos a luz. Só em Deus nos conhecemos verdadeiramente. Daí que o salmista nos convide a escutar a voz de Deus e a não Lhe fechar o coração (cf. Sal 94, 7-8).
É no mesmo sentido que o Concílio Vaticano II sustentou que só Jesus Cristo, Deus feito homem, revela o homem ao homem. Como observou Karl Rahner, «Cristo é a resposta total à pergunta total»: à pergunta total sobre Deus e à pergunta total sobre o homem. Por conseguinte, se queremos saber quem é Deus, a resposta é Cristo; se queremos saber quem é o homem, a resposta é Cristo; em suma, se queremos saber o que deve ser cada um de nós, a resposta é Cristo. Em Cristo, sentimo-nos perto de Deus e do que Deus é para nós.
B. O amor faz bem até àquele que faz (o) mal
3. Isolados, todos tropeçamos no erro e — o que é pior —dificilmente notamos que erramos. Muitas vezes, dois olhos não chegam. São necessários os olhos dos outros para reconhecermos a nossa fragilidade e para podermos assumir os nossos limites. No fundo, fazemos parte de um grande todo para o qual o contributo de cada um é indispensável.
Eis o que todos sabemos. E eis o que, não obstante, parece que esquecemos com espantosa facilidade. É preciso ter muita coragem para dizer a alguém que errou. E é necessário possuir muita humildade para receber a advertência e reconhecer o erro que possa ter sido cometido.
O que Deus espera de nós é este sentido do outro, é esta preocupação pelo outro, é esta solidariedade para com o outro, enfim, é esta responsabilidade pelo outro. Trata-se de perceber que viver é sempre com+viver e existir é sempreco+existir. A convivência e a coexistência hão-de ocorrer não sob o signo do controlo e do domínio, mas sob a égide do cuidado, da comunhão, da entreajuda.
4. Ao contrário do possamos presumir, nós, cidadãos (e, ainda mais, cidadãos com fé), não temos créditos, só temos débitos, só temosdívidas. O que somos devemo-lo a tantos: desde logo, a Deus; depois, aos nossos pais e, no fundo, a todos os membros da sociedade.
E porque estamos em dívida, devemos ser dádiva. Saldamos a nossa dívida sendo dádiva. Saldamos a nossa dívida pela dádiva do amor. Daí a exortação de S. Paulo: «Não tenhais qualquer dívida a ninguém senão de vos amardes uns aos outros»(Rom 13, 8). Só o amor é capaz de saldar as nossas dívidas. E é por isso que, como nota o mesmo S. Paulo, «quem ama o próximo cumpre a Lei»(Rom 13, 8).
Na sua sabedoria simples — e na sua simplicidade sábia —, o povo diz que «amor com amor se paga». Mas, mesmo que não haja amor para connosco, há-de haver sempre amor a partir de nós. Ou, melhor, a partir de Deus em nós. Pois quando há autenticamente amor, não somos nós que amamos; é Deus que ama através de nós. S. Paulo adverte que o amor é «o pleno cumprimento da Lei»(Rom 8, 10). O amor não faz mal (cf. Rom 8, 10). O amor faz bem até àquele que faz (o) mal.
C. Somos responsáveis por nós ecorresponsáveis pelos outros
5. O amor consiste, como é evidente, em oferecer o bem. E consiste também, como é óbvio, em afastar do mal. Cada um de nós foi colocado na vida como o profeta foi colocado em Israel: como «sentinela»(Ez 33, 7). De acordo com Isaías, a função da sentinela é anunciar a chegada da manhã no meio da escuridão da noite (cf. Is 21, 11-12). Ser sentinela não é ser polícia. Ajudar não é policiar nem controlar, é acompanhar: é acompanhar a vida dos outros.
Comentando a afirmação de Ezequiel, S. Gregório Magno recorda que «a sentinela está sempre numlugar alto, a fim de perscrutar tudo o que possa vir ao longe». Este lugar alto não é um lugar distante. Trata-se de uma altura que amplia a visão. Trata-se, portanto, de uma altura que aproxima. Esta altura onde se encontra a sentinela é o Evangelho.
É a partir do Evangelho que devemos olhar para a nossa vida e para a vida dos nossos irmãos. É a partir do Evangelho que nos tornamosresponsáveis pela nossa existência ecorresponsáveis pela existência dos nossos irmãos. É, enfim, o Evangelho que nos oferece a «medida alta da vida cristã», de que nos falava S. João Paulo II.
É fácil perceber, assim, que todos nós somos chamados a ser sentinelas e todos precisamos de alguém que seja sentinela para nós. Às vezes, olhamos mas não vemos; outras vezes, vemos mas não reparamos; e, outras vezes ainda, reparamos, mas parece que ignoramos.
Bem poetava Sophia: «Vemos, ouvimos e lemos; não podemos ignorar». Não podemos ignorar, de facto, que o mal nos tenta, que o mal nos assedia, que o mal nos assalta. É elementar. Anunciar o bem implica denunciar o mal. Não pensemos que o mal dos outros não nos afecta. Estamosentrelaçados, embora, frequentemente, nos comportemos como deslaçados. A história dos outros é também a nossa história. Já, na antiguidade, o reconhecia Terêncio: «Sou homem, nada do que é humano me é estranho».
6. O mal por omissão não é menos grave que o mal por acção. Deus não exige resultados, mas pede esforço, pede que nos esforcemos. Que nos esforcemos connosco e com os outros. O mal devemos evitar, mas de quem faz o mal não podemos fugir. Quem faz o mal continua a ser nosso irmão, um irmão em perigo, por isso mais necessitado de apoio e ainda mais carecido de auxílio.
Não chega ser recto em si, é preciso ser correcto para com os outros, correcto em tudo, correcto sempre. A correcção do mal é uma superior demonstração de solidariedade, de respeito, de amizade. Incorrecto é ver o mal e deixar que o mal alastre pela pessoa e devore a pessoa. Mal é ver o mal e não fazer nada. Mal é ser indiferente diante do mal. A indiferença é, decididamente, o oitavo pecado capital e, seguramente, não o menos grave.
Nunca devemos falar mal, mas, muitas vezes, somos obrigados a falar do mal. Devemos falar do mal com quem o cometeu e não falar de quem o praticou. Aqui, a forma é tão importante como o conteúdo. O Evangelho é claro: «Se teu irmão te ofender, vai repreendê-lo a sós»(Mt 18, 15). Este é o primeiro — e decisivo — passo: falar com a pessoa e não falar da pessoa.
Sucede que este passo exige uma demorada e profunda conversão. Não só hoje, mas sobretudo hoje, há uma grande tentação para falar dos outros, para falar mal dos outros. Não temos em conta que grave não é só roubar coisas. Grave é também roubar o bom nome, a boa fama, a boa reputação.
Acresce que, neste campo, nem sequer se acautela a possível veracidade das acusações. Tanto se publicita o que é verdadeiro como se difunde o que é falso. Tudo está na praça pública: a verdade, mas também a mentira; a realidade, mas também a aparência; os factos, mas também a suspeita. E o mais preocupante é que os mais culpados, muitas vezes, são os mais protegidos e os mais inocentes acabam por ser os mais expostos.
D. O que nós não conseguimos, Deus o conseguirá em nós
7. É sumamente perturbador o clima de intriga — a que não falta a difamação nem a calúnia — que prospera no mundo e que nem a Igreja deixa de fora. Sim, a Igreja que Paulo VI queria «perita em humanidade», também se deixa arrastar por fortes vendavais de desumanidade.
Ainda recentemente, o Papa Francisco notou que as nossas paróquias, ´«chamadas a ser lugares de partilha e comunhão, infelizmente aparecem marcadas por invejas, ciúmes, antipatias». E anteriormente já avisara, numa linguagem chã e bem perceptível, que «os mexericos, a inveja e os ciúmes não poderão nunca levar-nos à concórdia, à harmonia e à paz».
Quando não podemos dizer bem de alguém, o melhor é não dizer nada. Só que, por absurdo que pareça, as pessoas parecem consumir mais a má notícia do que a boa notícia. A boa notícia não vende, só a má notícia rende. E o pior é que nem as mais elementares cautelas se tomam. A mais leve suspeita é tida, por muitos, como verdade indiscutível.
Quando não podemos dizer bem de alguém, o melhor é não dizer nada. Só que, por absurdo que pareça, as pessoas parecem consumir mais a má notícia do que a boa notícia. A boa notícia não vende, só a má notícia rende. No limite, confunde-se transparência com puro exibicionismo. São muitos os que dizem ser frontais, mas o que são é exibicionistas. Passam a vida — e gastam o tempo — a exibir hipotéticos feitos seus e supostos defeitos dos outros. Hoje em dia, não falta quem ache que deve mostrar tudo e falar de todos. Para nosso pesar, há quem só se sinta bem a dizer mal.
Já o Padre Manuel Antunes intuía que somos mais dominados pelo negativo do que pelo positivo, mais pelos nossos defeitos do que pelas nossas qualidades, mais pelos defeitos das nossas qualidades do que pelas qualidades dos nossos defeitos. Mas será assim que conseguiremos vencer o mal e combater a maldade?
8. Tomemos, pois, a sério a exortação de Esopo, que, já em tempos remotos, observava que o homem tem uma boca e dois ouvidos: para falar menos e ouvir mais. Deste modo, não falemos mal dos outros e procuremos ouvir melhor o eco do bem que vem dos outros.
Façamos uma limpeza aos nossos lábios, aos nossos ouvidos, às nossas leituras, às nossas conversas, às nossas redes sociais. Procuremos estar mais com os outros em vez de falar tanto dos outros. Troquemos a maledicência pelabeneficência. Fazer bem sempre, falar mal nunca. Não enterremos as pessoas no mal. Falemos do mal com as pessoas, mas nunca falemos mal daspessoas.
Se não conseguirmos fazer a correcção fraterna em privado, peçamos — como preceitua o Evangelho (cf. Mt 18, 16) — a ajuda de mais alguém, mas sempre discretamente, sempre com recato. Se nem assim for possível, confiemos o caso à Igreja, que deve ser sempre a casa da verdade e a morada do amor. Sobretudo em Igreja, dediquemo-nos à oração. «Se dois de vós, sobre a terra, juntarem as suas vozes para pedirem seja o que for, hão-de obtê-lo de Meu Pai que está nos Céus. Pois onde estiverem dois ou três reunidos em Meu nome, Eu aí estarei no meio deles»(Mt 18, 19-20).
Façamos oração em comunidade e procuremos superar os problemas em comunidade. O que nós não conseguimos, Deus o conseguirá connosco, por nós. Deus é o nosso maior aliado na luta contra o mal. Com Ele, o mal não nos vencerá. Com Ele, o mal será vencido por nós!