Nos últimos tempos andámos a celebrar canonizações e beatificações de santos que nos dizem respeito mais de perto. Foi São Nuno de Santa Maria, os Pastorinhos de Fátima Bartolomeu dos Mártires, Alexandrina de Balazar, Irmã Rita Amada de Jesus e agora João Paulo II e a Irmã Maria Clara do Menino Jesus, fundadora das Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição.
As causas referentes a cristãos portugueses a decorrer neste momento, em Roma, são muitas: Padre Américo, Irmã Luiza Andaluz, Padre Joaquim Brás, Sílvia Cardoso, Irmã Teresa de Saldanha, Irmã Wilson, Irmã Maria da Conceição Rocha, Irmã Lúcia de Jesus, Padre Cruz, além de outras, mais e menos antigas que, agora, não me vêm à memória. Mesmo não as recordando todas, porque de facto há mais, dá para ver que são muitas. Não sei se todas as causas chegarão a bom êxito, dada a complexidade dos processos e a espera de um milagre comprovado, cuja falta pode arrumar algumas delas no baú das boas recordações.
Ao falar de santidade é preciso, porém, esclarecer e desfazer confusões. Quando se aponta a honra dos altares, como horizonte de santidade, pode esquecer-se que a santidade não é privilégio de alguns, mas a vocação comum de todos os baptizados. Como filhos de Deus, são chamados a participar, desde agora, da Sua santidade. Para aí se devem orientar sempre a sua vida e acções do dia a dia, qualquer que seja a condição social, idade, cultura, língua, raça ou estado. Logo no início do itinerário da vida cristã há que pensar o que verdadeiramente justifica o pedido de Baptismo por parte dos pais ou do próprio baptizando é a vontade de ser santo, a decisão de ser de Deus. Se é mais fácil perceber esta vontade e desejo num catecúmeno adulto, ela deve estar, também, na decisão e no pedido dos pais, quando se trata de baptizar uma criança, e deve acompanhá-la ao longo da vida. Educar na fé até à maturidade faz-se neste horizonte e com este sentido.
Por outro lado, o facto de vermos muitos religiosos e religiosas e de alguns padres e leigos já nos altares como modelos de santidade, não pode fazer esquecer a multidão de santos anónimos, jovens e adultos, que nas diversas comunidades cristãs dão testemunho de seriedade evangélica e de vida impoluta, no meio das dificuldades das tarefas familiares, profissionais e sociais. Nestes se pode encontrar e ver a santidade como ideal normal de vida. Ao longo dos anos tenho encontrado pessoas comuns, sem nada de pieguice, que os santos nunca foram piegas, que denunciam vidas onde o amor de Deus sempre ocupou o primeiro lugar, traduzindo este amor num generoso e disponível serviço aos outros, sem barulho, mas com eficiência, respeito e verdade.
O caminho da santidade é o caminho do amor que se vai purificando, se vai tornando cada vez mais gratuito, oblativo e contagiante. Quem se sente amado e procura retribuir de graça o que de graça recebeu entende bem que este é o ideal cristão, caminho aberto para todos.
Os cristãos que mais me marcaram na vida não foram sempre os mais eruditos mestres da cultura humana ou mesmo teológica, mas gente humilde e simples que me permitiu perceber, de modo claro e prático, o que é a sabedoria do Espírito. Muitos deles, sem letras humanas, mas com muita humildade, que é sempre o caminho certo que leva a Deus, à compreensão do Seu mistério, à realização da Sua vontade, ao serviço aos outros. Gente que aprendeu na vida, pela fé animada pelo amor, o segredo da confiança e da entrega sem limites, nem condições.
Lamentavelmente hoje fala-se pouco de santidade, aponta-se pouco a santidade como ideal de uma vida cristã, esquecendo-se que “santo é o cristão normal”. Não se tem conseguido clarificar, suficientemente, o conceito de santidade, que tem menos a ver com a honra dos altares, e mais com o viver diário de um filho de Deus. Quem assim ainda não entendeu, apesar dos anos de catequese, tem reacções imprevistas que fazem pensar.
Dois casos que ilustram as omissões que limitam, a ponto de se contentar e resignar a aves de capoeira de voos rasos, quando se tem capacidade para ter voos de águia.
Na homilia, momentos antes da crismação, perguntei a uma jovem que se ia crismar: “Tu queres ser santa?” “Ai, credo, que não é para tanto!” Foi a resposta espontânea que ouvi ao meu desafio. Ouvi há dias um bispo amigo contar que, no fim de uma celebração, com a sua bênção, disse à jovem acólita que acabava de o servir: “Deus te faça uma santa”. Ela, como que indignada, gritou: “Santa, não, senhor Bispo!” Ambas pensaram que se lhes propunha o altar ou o nicho do templo. Os verdadeiros santos nunca tiveram, como ideal a atingir, o altar ou o nicho…
As omissões indevidas geram sempre uma pobreza de horizontes. Ser santo tem apenas a ver com a fidelidade a Deus, no seguimento de Jesus Cristo, que convidava a fazer caminho com Ele, levando a cruz do dia a dia, com critérios do Evangelho e não meros gostos pessoais.
O mundo precisa, cada vez mais, de testemunhas que, pelo seu encontro pessoal com Cristo, mostrem a felicidade deste encontro e proponham aos outros o caminho para uma igual experiência.
Será que aos mordomos das festas, para as quais tem sempre de haver um santo, porque de outro modo o povo não contribui, já alguma vez foi dito, de modo a que ouçam e entendam, onde está a razão porque o seu santo é homenageado e festejado? E lhes foi dito também que alguns dos conjuntos que contratam para estas festas a preços escandalosos, em detrimento da necessidades das populações, mais vilipendiam os santos com suas brejeirices, que os honram e respeitam pela discutível competência? E ao povo que aplaude o lixo que estes conjuntos espalham na festa, já se disse da sua incoerência como cristãos a homenagear os seus santos?
A santidade é um projecto de todos os dias, de gente normal e coerente que, por um esforço de perfeição, mostra e convida a prosseguir sem desistir.
Haja quem o diga, porque há muita gente que nunca o ouviu de modo a entender e a guardar, a fim de lhe mover o coração e a vontade, e entrem assim nesta apaixonante aventura.
D. António Marcelino
ECCLESIA