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Construir sobre a rocha

por Zulmiro Sarmento, em 15.03.11

FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

 

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 6 de Março de 2011

 

1. Não se lêem os textos do Evangelho como tratados de qualquer ciência ou técnica. Como textos simbólicos que são, foram escritos para dizer outra coisa. Quando, hoje na Missa, S. Mateus põe na boca de Jesus as vantagens de construir sobre a rocha e os inconvenientes de edificar sobre a areia, ninguém espera, dali, um manual de construção civil. Mas que poderá e deverá esperar? Qual é a construção sobre a rocha a que Jesus se refere?

De uma forma imediata e usando a resposta mais convencional e disponível, poderíamos dizer que é a construção da nossa vida sobre a Palavra de Deus, supostamente contida na Bíblia. Aliás, a primeira leitura pertence a um sermão de Moisés, o grande profeta: “As palavras que vos digo gravai-as no vosso coração e na vossa alma, atai-as à mão como um sinal e sejam como um frontal entre os vossos olhos… Procurai pôr em prática os preceitos e normas que, hoje, vos proponho” (Dt 11, 18.26-28.32). São palavras que se tornam corpo na vida e fazem caminhar na justiça.

Para além do que a biologia ou as neurociências investigam acerca da condição humana – e sobre isso não se deve pedir nada à Bíblia ou à teologia – a metáfora “Palavra de Deus” significa que nós somos, de forma misteriosa, a preocupação de Deus e que o ser humano, animal de palavras, pode escutar aquelas que o interrogam sobre o sentido radical da vida: de onde vimos, para onde vamos e que andamos aqui a fazer. Sob o ponto de vista bíblico, o ser humano só desenvolve a sua humanidade na relação com a transcendência, na re-ligação com Deus, com os outros e, de forma harmoniosa, com a natureza, numa religião cosmoteândrica, na linha de Raimon Panikkar (1).

2. Jesus nota que as palavras de Moisés continuavam a encher a boca dos seus contemporâneos, mas não criavam raízes na alma nem no coração. Alimentavam uma religião de magia verbal que ele denuncia: “nem todo o que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino dos céus, mas só aquele que faz a vontade do meu Pai”. Acabará por fundamentar esta denúncia: “Os doutores da Lei e os fariseus instalaram-se na cátedra de Moisés. Fazei, pois, e observai tudo o que eles disserem, mas não imiteis as suas obras, pois eles dizem e não fazem”. Até aqui, esta recomendação vai servir para um adágio popular que atravessará os tempos: “Bem fala Frei Tomás! Fazei o que ele diz, não o que ele faz”. Jesus não fica por aí. Ataca os doutores e os fariseus pelas perversões interpretativas que acabam por “colocar fardos pesados e insuportáveis aos ombros dos outros, mas eles nem com um dedo lhes tocam”. Este é o resultado da substituição da complexidade da experiência humana, religiosa e cristã pela invocação de Deus em vão.

Tudo pode ser pervertido. Quando Moisés, para garantir, no quotidiano, a presença da palavra divina, propõe, “atai as palavras à mão como um sinal e que sejam como um frontal entre os vossos olhos”, em vez de um alerta, de um aviso, forja-se um amuleto, um instrumento de propaganda, de auto-elogio, anulando a simbólica religiosa: “Tudo o que fazem é com o fim de se tornarem notados pelos homens. Por isso, alargam as filactérias e alongam as orlas dos seus mantos. Gostam de ocupar o primeiro lugar nos banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas. Gostam das saudações nas praças públicas e de serem chamados 'mestres' pelos homens” (Cf. Mt 23, 1-7).

3. É um exercício demasiado simples – e algo perverso – ler os textos do Novo Testamento, deslocando o olhar e o ouvido para “aquele tempo”, para há dois mil anos, observando o ridículo do ritualismo que Jesus critica na religião dos seus contemporâneos, ou procurando equivalentes no judaísmo rabínico mais ortodoxo. Se não se tratar de uma investigação histórica – que tem as exigências do seu método –, mas apenas de uma apreciação religiosa, estaremos a reproduzir o farisaísmo que Jesus criticou. Nesse caso, o Evangelho deixa de pertencer às novidades que permanecem novas como se fosse criado neste instante, deixa de nos interpelar, de nos pôr em causa, de ser uma luz sobre o nosso tempo e sobre as nossas motivações, para se tornar um véu sobre a realidade.

Criticamos aquele legalismo ritual e os seus amuletos, mas, por vezes, repetimos e criamos algo ainda mais ridículo: certas normas jurídicas e litúrgicas, rituais, roupas de papas, bispos, padres, religiosos, alfaias litúrgicas, imagens, “devoções”, etc., como se tudo isso fosse vontade de Deus. Jesus critica os amuletos que substituíam a responsabilidade ética e social, a rectidão do coração e das obras.

Na literatura teológica, uns perguntam qual será o futuro do cristianismo; outros, qual será o futuro da religião; outros ainda, qual será o futuro da Europa, mas agora, todos perguntam qual será o futuro de um mundo em convulsão. Como diria Ortega y Gasset, “o que verdadeiramente se passa é que não sabemos o que nos passa”.

Tanto as religiões como as ideologias seculares não podem evitar a pergunta: que se passa connosco? Que bases e que desígnios presidem às nossas construções?

No Carnaval, as máscaras servem para cobrir as máscaras de todos os dias. A Quaresma deve servir para as arrancar e encontrar o Rochedo que nenhuma tempestade poderá abalar.

 

(Cf. Opera Omnia Raimon Panikkar, Fragmenta, Barcelona)

in Público de 06.03.11

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