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A. Sílvio Couto
Agência Ecclesia, 20081023
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De manhã bem cedo, no dia de Todos os Santos, as crianças saem pelas ruas em busca do ‘pão por Deus’. Esta tradição, que tem estado um pouco esquecida, não morreu ainda, embora possa estar ritmada mais pela configuração do americanizado ‘dia das bruxas’ do que pela simbologia correcta do cristianismo.
- Ó tia, não nos dá o ‘pão por Deus’?
- Para quem é isso, então?
- Não se recorda que hoje é o dia do ‘pão por Deus. Hoje é dia de ‘Santos’?
- Mas vocês andam com uns sacos diferentes, que não percebi para quem era que andam a pedir?
- Não tenha medo: isto é da Igreja. Não vê este símbolo?
- Com tanta malandragem que por aí vemos todo o cuidado é pouco... mesmo que vocês pareçam ser bons meninos e meninas e de famílias conhecidas... Nunca se sabe!
Este breve diálogo entre Miguel e a vizinha ‘tia’ Amélia revela-nos uma certa desconfiança com que alguns mais velhos encaravam a correria da pequenada, batendo de porta em porta, cada qual tentando recolher o maior número de pequenas ofertas, que, não se sabe lá muito bem, para o que servem: se para brincar, se para gerar partilha... ou mesmo para servir de sufrágio pelos ‘seus’ defuntos.
Entretanto, Rita insiste, pela enésima vez, com o pai:
- Pai, deixa-me ir com as minhas colegas pedir o ‘pão por Deus’... Eu gostava de ir!
Agastado com aquele pedido, o pai retorquiu:
- Já te disse que não e não!
- Mas porquê?
- Quando digo não é não... E não tenho de te dar razões!
Acabado de forma ríspida este diálogo, logo Teresa – mãe da Rita – tenta explicar a decisão do marido, na função de pai:
- Sabes, o teu pai, quando era criança, porque, ao que parece, era pobre, teve de ir pedir o ‘pão por Deus’ e isso ficou-lhe na lembrança!... Por isso, agora ele não quer que tu sejas vista como uma pobre e nem te deixa ir com os teus companheiros da escola ou da catequese... Tens de compreender as razões dele!
Noutro ponto da vila, pela mesma hora, um diálogo diferente – mais ríspido e um tanto azedo – se estava a verificar.
- Eh, ó. Isso aí é para complementar as compras? – perguntava um homem mais atrevido à porta do café, já de copo de cerveja na mão, a meio da manhã.
- Não isto é o ‘pão por Deus’ – respondeu Francisco – um tanto mais velho e que, tendo já percorrido as casas a pedir na manhã do dia de Santos de outros anos, este ano foi dos que mais incentivou a revitalização da tradição de forma melhor organizada, a partir da Igreja e com as crianças e adolescentes da catequese.
Do alto do seu esclarecimento saiu em defesa daquela provocação, que já estava a gerar risota nos comparsas do velho pescador à porta do café.
- Mesmo que estejamos em dificuldade de dinheiro, esta tradição do ‘pão por Deus’ não serve para ocupar engraçadinhos e muito menos para alimentar preguiçosos!
O homem, que não contava com aquela resposta tão seca e decidida, lá foi dizendo, por entre dentes:
- Eu também andei a fazer isso, quando era da vossa idade. Nós até recebíamos farinha torrada e mesmo castanhas, que eram um gozo, pois, nessa época, a crise era muito maior do que a de hoje...
Esta breve estória – inventada na forma, mas minimamente real no conteúdo – pretende referir uma tentativa de revitalizar a tradição do ‘pão por Deus’, com que, este ano, a catequese da Paróquia de Santiago – Sesimbra quer contribuir com alguns breves subsídios. Segundo o modo de organizar o ‘pão por Deus’, este ano, as coisas recebidas (rebuçados e guloseimas, castanhas ou nozes, pequenas quantias de dinheiro ou chocolates, etc.) pelas crianças da catequese durante uma parte do dia 1 de Novembro vão ser postas em comum, gerando uma partilha maior, quando todos os participantes se encontrarem ao final da manhã na Igreja e colocarem os sacos em jeito de oferta junto do altar, na missa, proporcionando, posteriormente, uma repartição das coisas recebidas... Até os sacos com o símbolo estampado poderão ser adquiridos para servirem para as compras... futuras.
Há, no contexto popular (mais ou menos) tradicional, certas manifestações com profundo significado cristão. Esta tradição do ‘pão por Deus’ não pode ser entendida como mais um acto folclórico em situação de crise financeira, mas antes um sinal de profunda vivência da caridade testemunhada na convivência exteriorizada na partilha, na solidariedade e na comunhão com aqueles que nos precederam na fé.