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CONSTRUIR UM MONSTRO, por João César das Neves

por Zulmiro Sarmento, em 08.05.10

As coisas à distância surgem alteradas. Por isso os heróis e vilões da
história pareceram em geral muito diferentes dos contemporâneos. As
duas visões são válidas, aspectos distintos de personalidades e épocas
complexas. Isso vê-se bem tentando adivinhar como a nossa realidade
será descrita daqui a séculos.

O tempo realiza dois fenómenos sobre o panorama de uma era. Primeiro
esquece pormenores e reduz o relato aos traços estruturais. Depois
concentra os actos e ideias de multidões no líder do momento. Por
isso, por muito que surpreenda, é provável que José Sócrates fique na
história de forma distinta daquela como o vemos, como o monstro que
vandalizou a família e a cultura portuguesas.

Em breve desaparecerão as questões que hoje dominam a política
nacional. Défices, escândalos, obras, reformas parecerão detalhes
ínfimos aos nossos descendentes. Aquilo que chocará o futuro são sem
dúvida as tentativas radicais e atabalhoadas na legislação da família.

Se virmos com atenção, é impressionante o número e alcance das medidas
de alguns meses. Em lugar destacado está a lei do aborto de 2007,
responsável pelo morticínio de milhares. Às próximas gerações não
passará despercebida a enorme fraude política de usar um referendo não
vinculativo sobre a despenalização para impor não só legalização mas
fomento com dinheiro de impostos. Deste modo, uma simples decisão
inverteu totalmente a atitude legal face à prática, da proibição à
promoção descarada.

O aborto é apenas um aspecto, de longe o mais sangrento, da vasta
investida recente contra a vida. A "lei da procriação medicamente
assistida" de 2006 assumiu um regime laxista e irresponsável na
protecção ao embrião humano, ultrapassando o pior do mundo. As leis do
divórcio de 2008 e uniões de facto de 2009 constituem enormes
atentados à instituição familiar, só comparáveis à campanha de 2010
pelo casamento do mesmo sexo. Mais influente, o Estado sob a capa de
educação sexual impõe às crianças e jovens a sua ideologia frouxa e
lasciva. A tolice atinge o paroxismo em detalhes ridículos, como as
praias de nudistas onde se anuncia regulamentação. Em todos os casos
fez--se a coisa de forma apressada, ligeira e arrogante, à maneira dos
tiranos de antigamente, sem respeito por instituições e articulados
seculares.

Tudo isto são só papéis, que se mudam facilmente. Mas, mesmo que
mudem, à distância tudo parecerá resultado de obsessão maníaca. Até
porque os efeitos nefastos são bem visíveis. Desde 2007, a mortalidade
ultrapassou a natalidade. Portugal é o país com menor fertilidade na
Europa ocidental, das mais baixas do mundo. Esta catástrofe
demográfica faz de nós um povo em vias de extinção e ameaça a nossa
herança e cultura. O número de divórcios é mais de metade dos
casamentos, enquanto a coabitação precária e os filhos fora do
casamento explodem, gerando lares esfarrapados, insucesso escolar, depressões, miséria, crime.

O futuro não compreenderá que o Governo não só não o note mas se
encarnice em agravá-lo. As gerações vindouras só o entenderão
atribuindo-o a um magno plano malévolo, como fazemos a Nero, Napoleão
ou Hitler. A teoria vácua da "modernidade" invocada em discursos, será
vista como capa para propósitos sinistros, cultos sexuais, taras
pessoais, desequilíbrios doentios.

Sobretudo será impossível convencer os longínquos do que para nós é
evidente. Todas estas medidas de profundo alcance foram tomadas mais
por descuido que desígnio, na distracção da conjuntura. Para quem
apenas pensa politicamente nos títulos do fim-de-semana, as mudanças
radicais na mais estrutural legislação são detalhes retóricos, meras
formas de polir os emblemas de esquerda embaciados pela política
económica. Por exemplo, nem sabem o que fazer do colapso demográfico.
Nestes ataques à vida e família, vê-se mais inconsciência que maldade,
irresponsabilidade que propósito, desdém que planeamento.

Mas, tudo considerado, os nossos netos são capazes de ter alguma
razão. Afinal, à distância vê-se o que a confusão do momento esconde.

in Diário de Notícias, 2010.04.26

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