“Na antiga Igreja dos três primeiros séculos, não havia outra festa além da celebração semanal do Mistério Pascal e a sua celebração anual, ou seja, a Páscoa tal como hoje a conhecemos” . Na celebração semanal e anual do Mistério Pascal, celebrava-se todo o mistério de Cristo, da Encarnação à glorificação de Jesus Cristo à direita do Pai. A Encarnação era celebrada como um momento – fundamental, é claro, mas um momento – do mais vasto mistério de Cristo, que é essencialmente mistério pascal. Foi no início do século IV que essa situação se modificou: surgiu o ciclo natalício, com a celebração do Natal e um tempo de preparação, o Advento.
É claro que quando pensamos no Natal, pensamos imediatamente no nascimento de Cristo: vêm-nos à mente os relatos bíblicos do nascimento de Jesus, dos episódios que o antecederam e o seguiram imediatamente, e que se encontram nos Evangelhos de Lucas e Mateus. Contudo, é redutor ver o Natal apenas como o aniversário do nascimento de Jesus. “O conteúdo primitivo da festa do Natal é a Encarnação do Homem-Deus, a sua manifestação na carne, ou seja, a sua concepção e nascimento” . Assim, “o conteúdo objectivo celebrado na solenidade do Natal, se é certo que parte, de facto, do nascimento de Jesus, é, na realidade, o mistério da Encarnação do Filho de Deus, com tudo o que ele encerra de comunhão de Deus com o homem na pessoa do Homem-Deus”. Por isso, nos escritos dos antigos autores cristãos, os Padres da Igreja, que nos deixaram algumas reflexões teológicas e muitas homilias de Natal, o mistério celebrado era a Encarnação e não apenas o nascimento como facto histórico; sublinhava-se, mais que o nascimento, o mistério que esse nascimento “esconde”: a vinda do Filho de Deus, que assume a nossa condição humana, anunciada desde há muito pelos profetas. Contudo, com o tempo, cada vez mais os olhares se voltaram para o presépio, para o nascimento, não esquecendo nunca, mas deixando por vezes na sombra o mistério que ele encerra.
Olhar o mistério celebrado no Natal, tal como nos é proposto pela Liturgia, obriga a alargar os horizontes. Leva-nos, antes de mais, a não separar Natal e Páscoa, Mistério da Encarnação e Mistério Pascal. Isto mesmo nos dizem já os textos bíblicos do nascimento de Jesus de Lucas e Mateus, se os lermos de forma não redutora. De facto, “os relatos da infância apresentam-nos a identidade de Jesus à luz do acontecimento pascal” . Não podemos, pois, ler estes textos como se se tratasse de umas crónicas: a sua finalidade não é apresentar um relato de acontecimentos, mas sim proclamar e cantar o Cristo Ressuscitado e Vivo, que Se fez um de nós. Pretendem dizer que Jesus é o Cristo, o Messias, desde a Sua concepção e nascimento. “As narrações destes evangelistas não devem ser lidas como se fossem «reportagens em directo» a contarem-nos como tudo aconteceu. Não têm como finalidade satisfazer a nossa curiosidade, mas são anúncio e catequese (...) Devem, portanto, ser lidos não como quem lê um jornal, mas como quem escuta uma mensagem importante” . Em Lucas e Mateus, estes capítulos são uma espécie de introdução, que mostra como a missão de Jesus foi antecipada profeticamente pelos acontecimentos que se deram à volta do Seu nascimento .
Daí também a necessidade de confrontar estes textos do nascimento de Jesus com outros textos bíblicos que nos falam do mesmo mistério, mas situando-o num contexto explicitamente mais alargado, e que nos são igualmente propostos pela Liturgia destes dias. Basta pensar no Prólogo do Evangelho de S. João, proposto para a Missa do Dia do Natal: o evangelista diz-nos que aquele Menino recém-nascido, em Belém, conforme o texto de Lucas lido da Missa da Meia-noite, é “a Palavra” (Logos = Verbo = Palavra) que já existia junto de Deus e que era Deus; que era luz e vida dos homens; e que se fez carne e montou a sua tenda entre nós, veio habitar connosco. Na mesma Missa do Dia, a Segunda Leitura, da Carta aos Hebreus, situa a Encarnação no longo percurso da história da salvação. No mesmo sentido, temos o hino cristológico da Carta de S. Paulo aos Filipenses, que, embora não pertencendo aos textos bíblicos da Liturgia do Natal, nos revela o mistério da Encarnação do Filho de Deus, neste contexto mais alargado da história da salvação, como momento necessário do mistério Pascal (Fil 2, 5-8). A Encarnação, neste hino cristológico, aparece enquadrada no movimento global do mistério pascal; pertence ao “abaixamento” de Deus, em Jesus Cristo seu Filho, que começa com o seu fazer-se homem, e que culmina com a sua morte na cruz.
Por isso, apenas como exemplo, os Prefácios do Natal não se fixam no facto histórico do nascimento de Jesus, mas referem o grande mistério da Encarnação que este realiza:
Prefácio do Natal I – “... Pelo mistério do Verbo Encarnado, nova luz da vossa glória brilhou sobre nós, para que, contemplando a Deus visível aos nossos olhos, aprendamos a amar o que é invisível”.
Prefácio do Natal II – “... No mistério do seu nascimento, Aquele que, por sua natureza, era invisível, tornou-se visível aos nossos olhos. Gerado desde toda a eternidade, começou a existir no tempo, para renovar em si a natureza decaída, restaurar o universo e reconduzir ao reino dos céus o homem perdido pelo pecado”.
Prefácio do Natal III – “... Por Ele [Jesus Cristo] resplandece hoje para os homens o mistério da Encarnação redentora: a nossa fragilidade é assumida pelo Verbo, o homem mortal é elevado à dignidade imortal e, unido a Vós em comunhão admirável, trona-se participante da vida eterna”.
Em qualquer dos três prefácios da Missa, para o tempo do Natal, sublinha-se, mais que o nascimento de Jesus, o mistério da Encarnação e a sua importância para nós. E esta é outra das características da celebração litúrgica do Natal (e em geral, de qualquer celebração litúrgica): celebramos um acontecimento histórico, que aconteceu uma única vez, isto é, o nascimento de Jesus, em Belém, há 2000 mil anos; celebrar esse acontecimento não faz com que ele se repita, mas actualiza para nós o seu sentido e os seus efeitos salvíficos É graças à celebração litúrgica que nos tornamos de algum modo contemporâneos desse acontecimento único; podemos vivê-lo nós próprios. Por isso, a liturgia repete, neste tempo, à saciedade, “Hoje”: “hoje, Cristo nasceu para nós”; “hoje, cantam os anjos”; “nesta noite... neste dia...” Graças à celebração litúrgica, “não devemos dizer, tristemente, que dois mil anos nos separam dos acontecimentos da salvação, mas que dois mil anos nos unem a eles” .
Advento
Esta celebração festiva do mistério da Encarnação exige um tempo de preparação, que nos disponha a vivê-lo convenientemente: o Advento. Trata-se de um período curto de quatro Domingo, que começa no Domingo mais próximo do dia 30 de Novembro e prolonga-se até ao Natal (Normas sobre o Ano Litúrgico e o Calendário 40).
A palavra “advento” (do latim adventus) significa “vinda” ou “chegada”. Os romanos acreditavam que, uma vez por ano, as divindades vinham ao templo que lhes era dedicado; o termo “advento” servia para designar esse acontecimento. Mas o termo era usado igualmente para designar a visita do imperador a uma cidade. Compreende-se, pois, que na linguagem cristã a palavra tivesse sido adoptada para referir a “vinda de Cristo, o Senhor” no fim dos tempo (em grego parusia) e a sua vinda até nós, assumindo a nossa humanidade. O tempo do Advento é, assim, o tempo de preparação da vinda do Senhor: vinda na Encarnação (Natal), mas também a sua vinda gloriosa no final dos tempos (parusia). Trata-se, no fundo, de uma única realidade: a vinda histórica de Jesus, há dois mil anos, no seu nascimento, foi o começo da contínua vinda do Senhor, até ao fim dos tempos. Estas considerações estiveram na origem do tempo do Advento. Assim, segundo as Normas sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, “o Tempo do Advento tem dupla característica: é tempo de preparação para a solenidade do Natal, em que se comemora a primeira vinda do Filho de Deus aos homens; simultaneamente é tempo em que, comemorando esta primeira vinda, o nosso espírito se dirige para a expectativa da Segunda vinda de Cristo no fim dos tempos. Por estes dois motivos, o Advento apresenta-se-nos como um tempo de piedosa e alegre expectativa” (39).
Esta última indicação é importante: este não é um tempo penitencial, como a Quaresma. É tempo de sobriedade, mas é também “tempo de piedosa e alegre expectativa”. É claro que há um apelo contínuo à conversão, mas no sentido de nos prepararmos interiormente para a vinda do Senhor, que veio, vem e virá.
Como em todos os tempos litúrgicos, um elemento fundamental para perceber o seu sentido é a Palavra de Deus, as leituras que a liturgia nos propõe ao longo deste período. Ora, nos Domingos do Advento “as leituras do Evangelho têm uma característica própria: referem-se à vinda do Senhor no fim dos tempos (primeiro Domingo), a João Baptista (segundo e terceiro Domingo), aos acontecimentos que prepararam de perto o Nascimento do Senhor (quarto Domingo). As leituras do Antigo Testamento são profecias acerca do Messias e do tempo messiânico, tomadas principalmente do livro de Isaías. As leituras do Apóstolo apresentam exortações e proclamações de acordo com as diversas características deste tempo” (Ordenamento das Leituras da Missa 93).
Quanto aos dias feriais, há “duas séries de leituras, uma a utilizar desde o início até ao dia 16 de Dezembro, e a outra desde o dia 17 até ao dia 24” (Ordenamento das Leituras da Missa 94). Assim, é-nos proposta uma certa progressividade: “Na primeira parte do Advento, temos a leitura do livro de Isaías distribuída segundo a ordem do livro […] Os Evangelhos destes dias foram escolhidos tendo em conta a primeira leitura. A partir da quinta-feira da segunda semana, começam as leituras do Evangelho sobre João Baptista; a primeira leitura ou é a continuação do livro de Isaías, ou um texto escolhido em função do Evangelho. Na última semana antes do Natal do Senhor, apresentam-se os acontecimentos que prepararam de imediato o nascimento do Senhor, tomados do Evangelho de São Mateus (cap. 1) e de São Lucas (cap. 1). Para a primeira leitura, escolheram-se, tendo em conta o Evangelho do dia, textos do Antigo Testamento entre os quais se encontram alguns vaticínios messiânicos de grande importância” (Ordenamento das Leituras da Missa 94)
Três figuras principais emergem destas leituras como grandes figuras do Advento: o profeta Isaías, João Baptista e Maria. Isaías é o grande profeta da esperança messiânica. S. Jerónimo diria que Isaías era “o evangelista do Antigo Testamento”. Maria é o melhor modelo de vivência do Advento, precisamente por ter sido ela a viver de modo mais intenso o primeiro Advento. Na Anunciação, Maria manifesta toda a sua disponibilidade ao plano de Deus, mostra uma confiança total na Palavra de Deus, apesar de não compreender “como será”. Como refere a Constituição sobre a Igreja, Lumen Gentium, “com Maria passada a longa espera da promessa, cumprem-se os tempos e inaugura-se a nova economia da salvação” (55). O período do Advento e Tempo do Natal são os mais marianos de todo o ano litúrgico. João Baptista é uma das figuras marcantes do tempo de Advento: é o Precursor do Messias, o arauto da sua chegada, aquele que prepara os corações para acolher o Senhor que vem. Filho de uma estéril, o seu nascimento fora já sinal da chegada iminente dos tempos messiânicos. O momento alto da sua vida foi, contudo, o da realização da sua missão de Precursor, convidando no deserto à conversão e à espera vigilante, tal como testemunham os quatro evangelistas.
“Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”. A voz profética de João, o profeta no limiar do Antigo e do Novo Testamento, clama: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas”. O apelo à conversão é o núcleo da sua mensagem, como será depois o início da pregação de Jesus. Não é possível acolher aquele que vem, sem um esforço real de conversão, sem essa mudança de mentalidade, de direcção. A vinda do Senhor está iminente. Não se pode perder tempo. Por isso, as palavras do Baptista aparecem marcadas pela urgência, pela intensidade, pela violência. A conversão é necessária hoje. É necessário produzir agora frutos de arrependimento e de verdadeira conversão, isto é, de mudança de direcção em todos os aspectos da vida que signifiquem afastamento de Deus, ou resistência à sua acção.
P.e Carlos Cabecinhas
(Especialista em Liturgia)