Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Palavras omitidas, vidas empobrecidas

por Zulmiro Sarmento, em 30.05.11

Nos últimos tempos andámos a celebrar canonizações e beatificações de santos que nos dizem respeito mais de perto. Foi São Nuno de Santa Maria, os Pastorinhos de Fátima Bartolomeu dos Mártires, Alexandrina de Balazar, Irmã Rita Amada de Jesus e agora João Paulo II e a Irmã Maria Clara do Menino Jesus, fundadora das Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição.

As causas referentes a cristãos portugueses a decorrer neste momento, em Roma, são muitas: Padre Américo, Irmã Luiza Andaluz, Padre Joaquim Brás, Sílvia Cardoso, Irmã Teresa de Saldanha, Irmã Wilson, Irmã Maria da Conceição Rocha, Irmã Lúcia de Jesus, Padre Cruz, além de outras, mais e menos antigas que, agora, não me vêm à memória. Mesmo não as recordando todas, porque de facto há mais, dá para ver que são muitas. Não sei se todas as causas chegarão a bom êxito, dada a complexidade dos processos e a espera de um milagre comprovado, cuja falta pode arrumar algumas delas no baú das boas recordações.

Ao falar de santidade é preciso, porém, esclarecer e desfazer confusões. Quando se aponta a honra dos altares, como horizonte de santidade, pode esquecer-se que a santidade não é privilégio de alguns, mas a vocação comum de todos os baptizados. Como filhos de Deus, são chamados a participar, desde agora, da Sua santidade. Para aí se devem orientar sempre a sua vida e acções do dia a dia, qualquer que seja a condição social, idade, cultura, língua, raça ou estado. Logo no início do itinerário da vida cristã há que pensar o que verdadeiramente justifica o pedido de Baptismo por parte dos pais ou do próprio baptizando é a vontade de ser santo, a decisão de ser de Deus. Se é mais fácil perceber esta vontade e desejo num catecúmeno adulto, ela deve estar, também, na decisão e no pedido dos pais, quando se trata de baptizar uma criança, e deve acompanhá-la ao longo da vida. Educar na fé até à maturidade faz-se neste horizonte e com este sentido.

Por outro lado, o facto de vermos muitos religiosos e religiosas e de alguns padres e leigos já nos altares como modelos de santidade, não pode fazer esquecer a multidão de santos anónimos, jovens e adultos, que nas diversas comunidades cristãs dão testemunho de seriedade evangélica e de vida impoluta, no meio das dificuldades das tarefas familiares, profissionais e sociais. Nestes se pode encontrar e ver a santidade como ideal normal de vida. Ao longo dos anos tenho encontrado pessoas comuns, sem nada de pieguice, que os santos nunca foram piegas, que denunciam vidas onde o amor de Deus sempre ocupou o primeiro lugar, traduzindo este amor num generoso e disponível serviço aos outros, sem barulho, mas com eficiência, respeito e verdade.

O caminho da santidade é o caminho do amor que se vai purificando, se vai tornando cada vez mais gratuito, oblativo e contagiante. Quem se sente amado e procura retribuir de graça o que de graça recebeu entende bem que este é o ideal cristão, caminho aberto para todos.

Os cristãos que mais me marcaram na vida não foram sempre os mais eruditos mestres da cultura humana ou mesmo teológica, mas gente humilde e simples que me permitiu perceber, de modo claro e prático, o que é a sabedoria do Espírito. Muitos deles, sem letras humanas, mas com muita humildade, que é sempre o caminho certo que leva a Deus, à compreensão do Seu mistério, à realização da Sua vontade, ao serviço aos outros. Gente que aprendeu na vida, pela fé animada pelo amor, o segredo da confiança e da entrega sem limites, nem condições.

Lamentavelmente hoje fala-se pouco de santidade, aponta-se pouco a santidade como ideal de uma vida cristã, esquecendo-se que “santo é o cristão normal”. Não se tem conseguido clarificar, suficientemente, o conceito de santidade, que tem menos a ver com a honra dos altares, e mais com o viver diário de um filho de Deus. Quem assim ainda não entendeu, apesar dos anos de catequese, tem reacções imprevistas que fazem pensar.

Dois casos que ilustram as omissões que limitam, a ponto de se contentar e resignar a aves de capoeira de voos rasos, quando se tem capacidade para ter voos de águia.
Na homilia, momentos antes da crismação, perguntei a uma jovem que se ia crismar: “Tu queres ser santa?” “Ai, credo, que não é para tanto!” Foi a resposta espontânea que ouvi ao meu desafio. Ouvi há dias um bispo amigo contar que, no fim de uma celebração, com a sua bênção, disse à jovem acólita que acabava de o servir: “Deus te faça uma santa”. Ela, como que indignada, gritou: “Santa, não, senhor Bispo!” Ambas pensaram que se lhes propunha o altar ou o nicho do templo. Os verdadeiros santos nunca tiveram, como ideal a atingir, o altar ou o nicho…

As omissões indevidas geram sempre uma pobreza de horizontes. Ser santo tem apenas a ver com a fidelidade a Deus, no seguimento de Jesus Cristo, que convidava a fazer caminho com Ele, levando a cruz do dia a dia, com critérios do Evangelho e não meros gostos pessoais.

O mundo precisa, cada vez mais, de testemunhas que, pelo seu encontro pessoal com Cristo, mostrem a felicidade deste encontro e proponham aos outros o caminho para uma igual experiência.

Será que aos mordomos das festas, para as quais tem sempre de haver um santo, porque de outro modo o povo não contribui, já alguma vez foi dito, de modo a que ouçam e entendam, onde está a razão porque o seu santo é homenageado e festejado? E lhes foi dito também que alguns dos conjuntos que contratam para estas festas a preços escandalosos, em detrimento da necessidades das populações, mais vilipendiam os santos com suas brejeirices, que os honram e respeitam pela discutível competência? E ao povo que aplaude o lixo que estes conjuntos espalham na festa, já se disse da sua incoerência como cristãos a homenagear os seus santos?

A santidade é um projecto de todos os dias, de gente normal e coerente que, por um esforço de perfeição, mostra e convida a prosseguir sem desistir.

Haja quem o diga, porque há muita gente que nunca o ouviu de modo a entender e a guardar, a fim de lhe mover o coração e a vontade, e entrem assim nesta apaixonante aventura.

D. António Marcelino

ECCLESIA

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 01:08

Para os pais portugueses...

por Zulmiro Sarmento, em 24.05.11

Exortação do senhor Bispo de Santarém aos responsáveis pela educação das crianças, adolescentes e jovens:

 

 

Estão em curso as matrículas nas Escolas. Os pais e encarregados de educação, que são os principais e mais influentes educadores, mostram-se cada vez mais empenhados no desenvolvimento integral dos seus educandos.

Este crescimento harmonioso que todos desejamos não se realiza apenas através da inteligência, da aquisição de competências ou da obtenção de resultados; a educação do espírito, a educação para a beleza e para a cultura, para a ética e para a moral, a educação para os afectos, também concorrem para o desenvolvimento das potencialidades dos mais novos.

A educação para a ‘pessoa’ alcança-se com o conhecimento e com a aprendizagem de uma atitude interessada e construtiva, com o exercício da honestidade e da responsabilidade pelo bem comum, com o cultivo da alegria e da boa relação. 
Só conseguiremos alcançar uma educação integral e harmoniosa com o contributo conjugado de todas as forças vivas da sociedade: da família e encarregados de educação; das escolas; das comunidades cristãs; das associações culturais e desportivas; dos meios de comunicação social, etc. A educação global não se alcança apenas com os programas do “Ministério da Educação” - embora estes sejam fundamentais, mas com a colaboração empenhada e complementar de pessoas e instituições apostadas em construir uma sociedade mais justa e fraterna.

A Igreja Católica sempre se dedicou à educação de todas as idades (infância e adolescência, juventude, adultos e idosos) e ao desenvolvimento de todas as dimensões da pessoa humana: cognitiva, ética, afectiva, cultural, espiritual.

Esta preocupação pela plenitude da pessoa humana levou à criação do serviço de educação moral nas escolas públicas através da disciplina da “Educação Moral e Religiosa Católica” (EMRC). Não é ensino confessional, como a catequese, mas transmissão dos valores humanos e das referências que constituem o nosso património cultural de matriz cristã: compreensão do mundo e do homem, história e papel das religiões, participação activa na comunidade, promoção da solidariedade, educação para a responsabilidade, para a alegria e para a boa relação.

Procurem os pais exercer o seu direito de matricular os filhos na disciplina da educação moral (EMRC) desde os primeiros anos da escola. O primeiro ciclo do básico é muito importante por ser o alicerce do percurso escolar. Até aos dezasseis anos pertence aos pais fazer a matrícula. Após essa idade são os educandos que fazem a opção. A frequência é facultativa mas, quando pedida, a oferta é obrigatória da parte dos estabelecimentos de ensino. Se os pais desejarem as escolas não deixarão de responder.

A crise que nos preocupa não é só económica mas também ética. O egoísmo é maior, as fraudes aumentam, as desigualdades são mais gritantes, o respeito pela dignidade do outro parece diminuir. São os próprios fundamentos éticos da sociedade que estão hoje em questão. A educação moral e religiosa escolar pode ser um bom contributo para vencer a crise moral e incutir uma atitude construtiva e responsável perante a vida.

Santarém 12 de Maio de 2011

+ Manuel Pelino Domingues, Bispo de Santarém
ECCLESIA

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 01:33

Crucifixos no ‘pátio dos gentios’

por Zulmiro Sarmento, em 22.04.11

 

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu, no final da semana passada (mais precisamente a 18 de Março, vésperas do dia de São José), que o uso de crucifixos nas salas de aulas não viola o direito à educação nem colide com a liberdade de os pais darem a educação que acharem mais correcta para seus filhos.

A decisão de quinze dos dezassete juízes deu, assim, razão ao governo italiano, que em Janeiro do ano passado tinha apresentado um recurso contra uma deliberação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos de Novembro de 2009. Nessa altura o tribunal, com sede em Estrasburgo, tinha dado razão a uma italiana de origem finlandesa que defendia serem os crucifixos nas escolas uma violação do direito a educar os filhos de uma forma laica.
Por outro lado, decorreu, no final da semana passada (24 e 25 de Março), em Paris, o primeiro encontro internacional do ‘Pátio dos Gentios’, estrutura do Vaticano para o “diálogo entre crentes e não crentes”. Servindo-se de uma figura do Templo de Jerusalém onde podiam entrar todos os homens, crentes ou não crentes/pagãos, judeus ou gentios, esta iniciativa da Santa Sé pretende abrir ao diálogo entre as várias culturas, povos, línguas e nações.
Tentamos agora abordar estas duas questões com horizonte...

1 - Diálogo como forma de estar
O ‘Pátio dos gentios’ insere, no século XXI, num processo decorrente do Concílio Vaticano II, mas que alguns cristãos/católicos nem sempre têm entendido correctamente... como se ainda estivessemos em maré de cristandade.
A escolha de Paris para realizar este primeiro momento do ‘Pátio dos gentios’ é simbólica pela diversidade cultural que significa e pelas entidades que chamou a participar: Unesco (cuja sede está na capital francesa), a universidade de Sorbonne e o Instituto católico de Paris... em ordem a discutir, no mundo da cultura, as ‘Luzes, religiões e razão comum’.
Não podemos esquecer que foi da cultura francesa – concretamente a sua revolução de 1789 – que muito mudou no mundo. Também a miscigenação de culturas está patente no espectro sócio-político francês e, por arrastamento, europeu.
A curto prazo – neste ano de 2011 – outras iniciativas decorrerão: colóquios – da Primavera, em Bolonha e de Outono, em Estocolmo; escrita, em comum, de peças de teatro ou a construção de obras de arte, os encontros entre povos que saíram do ateísmo de Estado e procuram novos caminhos, na Albânia.
Quando alguns se entretêm com minudências e tricas, haja quem tenha horizontes e discuta-se o que é essencial e dá razões para viver... dignamente.

2 - Sinais comprometedores
Quem tem medo do crucifixo? Por que fazem tanta questão de o retirarem das escolas? Será por vergonha ou por incómodo? Por que se fez tanto barulho para a retirada dos crucifixos e agora tudo passa despercebido? Foi por que a decisão foi desfavorável aos agnósticos e laicos? Até onde irá o cinismo dos descrentes? Não lhe faltará cultura democrática para tentarem impôr as suas ideias sem acatarem as outros outros?
O crucifixo faz parte da nossa cultura ocidental. Por isso, seria uma aberração termos de submeter-nos à ditadura capciosa de certos democratas... sem memória nem cultura.
Temos de saber estar neste mundo avesso à noção de Deus – excepto se esse for ele mesmo e os seus apaniguados – e sabermos alicerçar as razões da nossa esperança, pois não basta usar ou apresentar o crucifixo como se fosse um adereço supersticioso, mas antes ele terá de ser um sinal de compromisso para assumirmos a fé que professamos e pela qual damos a cara... mesmo que nela nos batam por causa de Jesus.

Está na hora de levarmos para o ‘pátio dos gentios’ o sinal da cruz e a cruz como sinal de vida e de vitória!

A. Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)


Agência ECCLESIA

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 04:54

Media: Vaticano convoca bloguistas católicos

por Zulmiro Sarmento, em 20.04.11

 

Encontro marcado para o dia 2 de maio quer facilitar comunicação entre as duas partes

 

D.R.

Cidade do Vaticano, 08 abr 2011 (Ecclesia) – O Vaticano convocou um encontro de bloguistas católicos, no próximo dia 2 de maio, numa iniciativa conjunta dos Conselhos Pontifícios da Cultura e das Comunicações Sociais.

Em comunicado, os responsáveis pela iniciativa explicam que o encontro tem como objetivo “permitir um diálogo entre bloguistas e representantes da Igreja, partilhar experiências de quem trabalha diretamente neste campo e compreender melhor as necessidades desta comunidade”.

Os blogues, páginas da Internet da autoria de pessoas ou grupos (denominados «bloggers», bloguistas), são compostos por opiniões e notícias, em forma de texto e multimédia, frequentemente abertas à interação dos leitores através da publicação de comentários.

No Vaticano vão ser apresentadas iniciativas que a Igreja está a promover para “entrar em contato com o mundo” dos novos meios de comunicação.

Segundo o programa divulgado pelos Conselhos Pontifícios, os trabalhos do encontro vão estar abertos a uma “discussão geral” por parte dos participantes, incluindo um painel com cinco bloguistas, representantes de várias áreas linguísticas.

Outro painel vai oferecer testemunhos de pessoas ligadas à “estratégia comunicacional” da Igreja, com destaque para as iniciativas que visam assegurar “um compromisso efetivo” no mundo dos blogues.

Entre os presentes vão contar-se o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, o arcebispo Claudio Celli, presidente do Conselho Pontifício das Comunicações Sociais, e o padre Federico Lombardi, diretor da sala de imprensa da Santa Sé.

Este encontro acontece um dia depois da beatificação de João Paulo II, aproveitando a previsível presença em Roma de vários bloguistas católicos, que se podem inscrever através do mail blogmeet@pccs.it.

OC

Agência ECCLESIA

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 05:48

A Dívida Soberana - Sete mandamentos para atravessarmos a crise

por Zulmiro Sarmento, em 20.04.11

O pão multiplica-se quando aceita ser repartido. A gramática da Vida é a condivisão

 

D.R.

1º - A primeira de todas as dívidas soberanas, e certamente a mais fundamental, é aquela que cada um de nós mantém para com a Vida. Essa dívida nunca a pagaremos, nem ela pretende ser cobrada. Reconhecer isso em todos os momentos, sobretudo naqueles mais exigentes e confusos, é o primeiro dos mandamentos.

2º - Se a maior de todas as dívidas soberanas é para com um dom sem preço como a vida, cada pessoa nasce (e cresce, e ama, luta, sonha e morre) hipotecada ao infinito e criativo da gratidão. A dívida soberana que a vida é jamais se transforma em ameaça. Ela é, sim, ponto de partida para a descoberta de que viemos do dom e só seremos felizes caminhando para ele. É o segundo mandamento.

3º - O terceiro mandamento lembra-nos aquilo que cada um sabe já, no fundo da sua alma. Isto de que não somos apenas o recetáculo estático da Vida, mas cúmplices, veículos e protagonistas da sua transmissão.

4º - O quarto mandamento compromete-nos na construção. Aquilo que une a diversidade das profissões e as amplas modalidades do viver só pode ser o seguinte: sentimo-nos honrados por poder servir a Vida. Que cada um a sirva, então, investindo aí toda a lealdade, toda a capacidade de entrega, toda a energia da sua criatividade.

5º - A imagem mais poderosa da Vida é uma roda fraterna, e é nela que todos estamos, dadas as nossas mãos. A inclusão representa, por isso, não apenas um valor, mas a condição necessária. O quinto mandamento desafia-nos à consciência e à prática permanente da inclusão.

6º - As mãos parecem quase florescer quando se abrem. Os braços como que se alongam quando partem para um abraço. O pão multiplica-se quando aceita ser repartido. A gramática da Vida é a condivisão. Esse é o mandamento sexto.

7º - O sétimo mandamento resume todos os outros, pois lembra-nos o dever (ou melhor, o poder) da esperança. A esperança reanima e revitaliza. A esperança vence o descrédito que se abate sobre o Homem. A esperança insufla de Espírito o presente da história. Só a esperança, e uma Esperança Maior, faz justiça à Vida.

José Tolentino Mendonça

 ECCLESIA

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 03:03

Uma entrevista. Uma jovem. Um projecto de vida com Jesus Cristo

por Zulmiro Sarmento, em 16.04.11

Entrevista à cantora Católica Claudine Pinheiro

 





 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O Portal Cristo Jovem conversou com a Claudine Pinheiro no dia seguinte ao seu concerto do Festival Jota. Partilhamos aqui contigo essa conversa para que possas conhecer um pouco melhor a voz do livro /cd “Água Viva”.


Portal CJ: Em primeiro lugar, quem é a Claudine Pinheiro?
Claudine Pinheiro: Eu tenho 29 anos, trabalho nas Edições Salesianas, pertenço ao Movimento Juvenil Salesiano e sou animadora de grupos de jovens no Colégio Salesiano do Porto.

Portal CJ: Como é que começou o projecto “Água Viva”?
C.P.: Tudo começou com o facto da minha irmã ter feito Erasmus em Espanha, em Sevilha. Lá conheceu os CD’s da irmã Glenda. No regresso trouxe-me um de presente, o “A solas com Dios”. Eu gostei muitas das músicas e fui partilhando com algumas pessoas do centro de catequese do qual eu faço parte. Num baptismo cantamos o tema “Tu és a Água Viva”, e a recepção da comunidade foi muito bom e muito caloroso. Todos se deixaram tocar tanto pelas músicas da Ir. Glenda que comecei a pensar em gravar um disco em português com aqueles temas. Achei que era interessante levar mais longe estas músicas.
Falei com o Pe. Rui Alberto, que tinha entrado na altura para a direcção de produção das Edições Salesianas e propus-lhe a edição do CD. Contactámos a editora espanhola “Produções de La RAIZ”, gravei uma demo da canção “Tu és a Água Viva” com um colega meu, o João Paulo, e enviamos. Eles gostaram e começou todo o processo de escolha das músicas e gravação do CD.

Portal CJ: E isso foi em que ano?
C.P.: Isto tudo começou em 2002 quando a minha irmã me ofereceu o CD. A gravação começou no final desse ano e demorou cerca de dois anos a ser gravado. Acabou por ser editado em Junho de 2004.

Portal CJ: Este não é um “CD Normal”, uma vez que a acompanhar o CD está um livro que é vendido em conjunto. Como surgiu essa ideia?
C.P.: A ideia surgiu da parte do Pe. Rui Alberto, em conversações com a editora espanhola. Numa das reedições do CD “A Solas con Dios”, este incluía um extra com algumas propostas pastorais que a Ir. Glenda tinha elaborado, para cada um dos temas. Nós achámos este projecto muito interessante. Além disso pensamos que seria importante para o mercado, para os nossos agentes pastorais, um subsídio deste tipo, com propostas para rezarem as músicas individualmente ou em comunidade. Lançar “apenas” o CD deixar-nos-ia a todos mais pobres.

Portal CJ: A quem destina este projecto?
C.P.: Eu contava que o CD fossem maioritariamente absorvido por um público acima dos 25 anos, mas tenho-me apercebido que tem sido usado em todas as faixas etárias, a partir do 7º, 8º anos. Todas as músicas, sobretudo “Tu és a Água Viva”, são muito bem recebidas e há muitos temas que são usados em diversos contextos de oração e em retiros. Já encontrei grupos de adultos que adoptaram o livro /CD “Água Viva” como itinerário de um ano de catequese. Já encontrei seminaristas, Convivas que fizeram retiros com a ajuda das músicas e das propostas que estão no livro. Portanto, acabou por ser útil a muitas pessoas, o que é óptimo!

Portal CJ: O concerto que deste no Festival Jota teve algumas alterações em relações aos outros que tens dado até aqui. Como surgiram os concertos “Água Viva” e como foram evoluindo?
C.P.: Os concertos sugiram naturalmente... Quando gravei o CD nunca foi meu objectivo iniciar os concertos de oração, até porque, pessoalmente, desconhecia que se fizessem este tipo de encontros. Organizei um concerto de apresentação e lançamento, que foi feito na Feira do Livro do Porto. Passados 15 dias ligaram-me de Mangualde para saber se eu poderia ir lá cantar as músicas. Um pouco surpreendida aceitei.... Comecei os concertos com o Miguel Vilela (guitarra), que me continua a acompanhar até hoje, e pelo João Paulo ( baixo acústico e teclas), que entretanto teve de abandonar o projecto. Depois de Mangualde foram surgindo mais convites de pessoas que escutavam o CD ou que ouviam falar dos concertos.
Quantos às “alterações” de que falavas, a principal diferença esteve na produção do concerto, sobretudo no facto de, pela primeira vez ter um coro pela Ana Manuela e pelo João Pedro. A sua presença tornou o concerto mais emotivo, deu mais força e qualidade às músicas. O esforço de produção e um empenho extra deveu-se à “exigência” e empenho que implicavam uma presença no Festival Jota.




Portal CJ: No concerto de ontem, conseguiste criar na capela do Santuário um ambiente totalmente diferente do que se viveu no resto do Festival. Como é que te sentiste ao ver uma capela cheia de pessoas que, à uma hora da manhã, estavam ali dispostas para te ouvir a ti e à mensagem que transmites?
C.P.: Antes de dizer o que senti vou pegar nalgumas coisas que disseste... Acho que a decisão de fazer o concerto na capela foi uma decisão acertada da minha parte, seriamente discutida com a organização do Festival. As músicas da Ir. Glenda pedem uma outra intimidade que se perderia no palco e noutro ambiente mais “solto”, mais exterior. O facto de estarmos dentro da igreja ajudou a tranquilizar e acalmar as pessoas, deixando-as mais receptivas à música e à ambientação do santuário estava muito bem preparada pela organização. Além disso tivemos (Edições Salesianas) a oportunidade de investir numa iluminação cuidada. O resto, sinceramente, eu acho que é tudo Graça de Deus. Há ali um momento em que não sou eu, em que não são as pessoas, é toda uma oração que se cria através das músicas e que têm o mérito todo deste projecto. A Ir. Glenda tem a capacidade de musicar de forma muito simples passagens da bíblia, mas com uma intensidade muito grande. O que eu sinto é um profundo agradecimento a Deus, sinto-me abençoada por ter a oportunidade de poder proporcionar estes concertos.

Portal CJ: Ontem foi um ponto especial para o projecto “Água Viva”?
C.P.: Para mim foi sem dúvida, porque foi a primeira vez que estive integrada num grande festival de música católica. Já tinha actuado no primeiro Mulifestival David, hoje Multifestival Gaudeo, mas os contornos e objectivos da actividade são diferentes. Aqui pude estar ao pé de nomes como a Banda Jota, que tem um nome há vários anos... Esta presença foi sinal que o percurso que eu tenho feito já tem alguma “validade” e algum reconhecimento por parte do publico. O facto de ter sido uma proposta diferente dentro do Rock e do Pop, stilo que compôs a maioria do cartaz, foi para mim importante!

Portal CJ: Achas que se inicia uma nova fase no projecto “Água Viva”?
C.P.: O que eu gostava mesmo era que se iniciasse um novo projecto! Este já tem três anos e, como disse, nunca tinha tido a intenção de ter assim um projecto musical, de fazer concertos de oração com o livro /Cd “Água Viva”. Mas agora sinto-me impelida a fazer um segundo projecto dentro desta linha, porque as pessoas vão pedindo, e eu sinto que as pessoas precisam de música nesta área de oração. Os concertos de oração são importantes para as comunidades onde eles se realizam, por isso mais do que uma “nova fase”, pode ser um ponto de partida e motivação para eu tentar ir mais longe...

Portal CJ: Esse novo projecto será também com músicas da Ir.Glenda?
C.P.: Não. A ideia, para já, é editar músicas originais... Talvez, quem sabe, algumas versões de temas de outros grupos, como os Brotes de Olivo, grupo espanhol de quem gosto muito. Mas estou a procurar que as músicas sejam originais.

Portal CJ: As Edições Salesianas têm sido pioneiras e até mesmo únicas a fazer este tipo de concertos de oração. Como surgiu esse projecto?
C.P.: Como editora católica, creio que somos a única que está a promover, de forma tão organizada e “sistemática”, os concertos de oração, formação e animação. Para além do “Água Viva”, as Edições Salesianas têm o projecto “N’Ele” e “Músicas para a catequese” que passam pela interpretação ao vivo das canções dos cd’s com o mesmo nome. Com os concertos que fui fazendo, a editora, na pessoa do Pe. Rui Alberto, foi detectando que na área da pastoral há pessoas que precisam de ajuda e formação. Assim, passamos a aliar a esses momentos de formação, novas formas de evangelizar e catequizar através da música!

Portal CJ: E a aceitação tem sido boa?
C.P.: Sim! A prova disso é que são sempre as pessoas que nos pedem os concertos, porque ouviram falar ou porque estiveram num concerto e querem organiza-lo na sua ou noutra comunidade.

Portal CJ: Enquanto artista e colaboradora das Edições Salesianas, sentes que a música, esta nova fase da música cristã que se está a viver em Portugal, pode ajudar a aproximar os jovens da Igreja?
C.P.: Eu penso que sim! A música pode ser um bom instrumento, mas não chega! Quem a escreve e interpreta tem de ser autêntico e acreditar naquilo que está a cantar. A música pode ser uma forma de os chamar, e aqui no festival foi de facto uma forma de chamar e de convocar jovens. Mas não bastou só chamar os jovens para estarem nos concertos. Os jovens não são tontos e não se deixam manipular de forma fácil. A música pode ser importante para os atrair, mas depois é preciso que a proposta seja coerente e seja também apelativa.



Portal CJ: Há quem diga que a Igreja está desactualizada, no entanto penso que será mais a forma de comunicação da Igreja que está a ter dificuldades em se adaptar a esta nova sociedade. Consideras que a Igreja está a ter dificuldades em comunicar com os jovens de hoje?
C.P.: A questão da comunicação e da juventude são duas áreas que me são muitas queridas, justamente porque tenho formação em Comunicação e estou ligada à Família Salesiana, cuja vocação é a educação dos jovens.
Eu creio que a Igreja não está assim tão desactualizada quanto isso. Tem havido actividades muito interessantes, só que, se calhar, continuamos a privilegiar os sectores mais conservadores em vez de estarmos a apoiar estas novas iniciativas. Há muitas propostas, como é o caso do Portal Cristo Jovem e de duas rádios católicas na Internet. Há também grupos católicos na área do Pop e do Funk que começam a nascer... Aqui no Festival Jota, tivemos “O teu palco” que esteve sempre com gente disponível a tocar e a cantar. As coisas estão a acontecer e a nascer, talvez seja tempo das pessoas mudarem os clichés, e deixarem de usar sempre a mesma conversa, os mesmos argumentos. Se há tempo em que a mensagem de Jesus Cristo está actual é hoje, porque as propostas lançadas aos jovens em nada diferem da essência da mensagem de Jesus Cristo, que apelava à autenticidade, à fidelidade, ao amor...Portanto mais actuais do que isto não poderíamos ser!

Portal CJ: Estamos a terminar esta entrevista, queres dizer alguma coisa em jeito de remate?
C.P.: Quero dar os parabéns ao Portal Cristo Jovem, agradecer a oportunidade de partilhar o meu projecto e desejar-lhe as maiores felicidades.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 05:24

Jovens que se juntam...

por Zulmiro Sarmento, em 15.04.11

 

Composta por sete amigos da Cidade de Setúbal, esta banda formou-se em Outubro de 1998, fruto do desejo de um grupo de amigos de partilhar com os homens a experiência de unidade, amizade e amor proporcionada pela vivência da fé em Jesus.

Nasce assim uma música de intervenção actual, que procura chamar a atenção das pessoas para os outros, de modo a darem valor às pequenas coisas maravilhosas que acontecem e, com uma atitude e espírito positivo perante a vida, instaurar a revolução do amor.

O nome Terceira Margem surge da visão de cada homem como um rio, cujas duas margens são Jesus e o Espírito Santo, que delimitam e dirigem o seu curso. A Terceira Margem é o Pai que está no Céu, fonte de toda a vida.

Em Dezembro de 2006, a banda lançou o seu primeiro cd, intitulado )De mãos Vazias(. Dois anos depois, em Dezembro de 2008, surgiu “Meu Tudo”, o seu segundo trabalho.

Em Novembro de 2009, a banda viu reconhecido o seu trabalho pela Associação Cultural Kerygma, que instituiu os Prémios Kerygma da Música Católica, sendo galardoada com o prémio Melhor Artista/Grupo do ano de 2008.

No seu já longo percurso de evangelização através da música, a banda sempre se pautou pela diversidade sonora, explorando os caminhos do Pop-rock, numa fusão com o Hip-hop, Funk e Reggae.


http://www.terceiramargem.pt/

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 05:07

A Quaresma e o riso

por Zulmiro Sarmento, em 02.04.11

FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

 

 

 

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 20 de Março de 2011

 

    1. A crise mundial, a complicadíssima situação social e política do país, a turbulência no mundo árabe e a tragédia que se abateu sobre o Japão devem ser assumidas pelo espírito desta Quaresma. Em regime cristão, no entanto, está desaconselhada a exibição da virtude. Na Quarta-Feira de Cinzas, o Evangelho de S. Mateus diz muito claramente: “Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto para que os homens não percebam que jejuas, mas apenas o teu Pai que está presente no segredo” (Mt 6).

    Por outro lado, o imperativo divino, “sede santos, porque Eu, o Senhor, sou santo”, realiza-se em atitudes muito concretas, resumidas no mandamento: “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lev 19). No Novo Testamento, tornar-se próximo é aproximar-se de quem precisa, só porque precisa, seja qual for a sua nacionalidade, a sua religião ou o seu ateísmo (Mt 25).

    Nietzsche acusava os cristãos de andarem sempre com cara de Sexta-Feira Santa. Para que a Igreja não se torne uma tristeza, tem de se lembrar que, segundo S. João, na revelação de Jesus Cristo, tudo é para que a nossa alegria seja completa, na transfiguração do quotidiano.

    Quem entendeu e viveu, como ninguém, o evangelho da alegria foi São Filipe Neri (1515-1595), o santo humorista, “o meu santo”, como lhe chamou o luterano Goethe, autor do “Fausto”, santo da devoção do recentemente beatificado cardeal Henry Newman.

    2. Pensava-se que a velha Florença já não tinha mais nada de que se pudesse admirar. Vira Dante compendiar o mundo, do Inferno ao Céu, na “Divina Comédia” e Maquiavel redigir o seu desencantado receituário para viciados em política. Fora palco da arrebatada pregação de Savonarola que acabou queimado em praça pública. Assistira ao esplendor e à derrota dos Medici. Vestira-se de esplendor com Miguel Ângelo e Leonardo Da Vinci. Teve santos, heróis e génios. Pensava conhecer tudo o que a arte, a sabedoria e o poder têm para oferecer aos seres humanos, mas faltava-lhe, ainda, experimentar algo que pode reavivar os corações envelhecidos: “o sorriso de Deus” que Filipe Neri descobrira no convento de S. Marcos (1).

    Ele nasceu num século conturbado, da Reforma Protestante e da Contra-Reforma, mas também de espantosos santos e muito diferentes: Teresa de Ávila, Pedro de Alcântara, João da Cruz, Camilo de Lelis, Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Carlos Borromeu, Caetano de Thiene, Francisco de Sales, Thomas More, John Fisher e Pio V. Este incarnou a vontade férrea de aplicar o Concílio de Trento, enfrentando o turbilhão das fúrias que despertou e o pântano das resistências passivas. Em seis anos, realizou a reforma da cúria romana, publicou o primeiro Catecismo universal, dirigido aos párocos, o Missal dos fiéis e a Suma Teológica de S. Tomás. O seu grande defeito era a sua obsessiva seriedade. Não sabia rir, como dizia o embaixador de Veneza junto da Santa Sé.

    Com esse feitio, era natural que fosse incapaz de compreender o estilo alegre, brincalhão e soberanamente livre de Filipe Neri. Chegou a tomar a decisão de fechar o Oratório – essa tertúlia espiritual e cultural, esse grupinho de alegre santidade – que só a intervenção de S. Borromeu conseguiu impedir.

    3. Qual era o “pecado” de S. Filipe Neri? Brincar com tudo e com todos. Brincar com Deus, com os pobres e com os ricos, com Papas, príncipes e, sobretudo, com a cúria romana. Quando morreu Pio V, que o tinha perseguido de todas as maneiras, passou a usar um manto desse Papa, mas virado do avesso. Teve sorte com os sucessores desse pontífice, Gregório XIII e Clemente VIII, que não se cansavam com as suas piadas e partidas. Nunca sofreu de papolatria.

    Não queria ser padre, nem pregador, nem religioso com votos públicos ou privados. Queria ser de Deus e de toda a gente em santa liberdade. Não conseguia entrar nos métodos autoritários da Contra-Reforma ou Reforma Católica nem no estilo dos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola que insistia para que ele entrasse na Companhia de Jesus. Com humor despeitado, comparava Filipe Neri a um sino: “Assim como um sino de paróquia, que chama todo mundo para a igreja e permanece no seu lugar, este homem apostólico faz os outros entrarem na vida religiosa e permanece de fora”.

    Abriu, de facto, o caminho a muitas vocações de jesuítas, dominicanos, teatinos, etc., mas quando foi ordenado padre e o seu Oratório autorizado, recomendava aos superiores: “se queres ser obedecido, dá poucas ordens”. Recusou-se, como padre, confessor e pregador, a seguir os modelos mais consagrados e, para disfarçar o seu fervor e devoção, até na missa, no confessionário e na pregação fazia rir. Sem humor, não sabia viver o amor de Deus e do próximo nem as suas devoções. Era a sua respiração humana e sobrenatural, tudo fazendo para que ninguém desse por isso.

    No momento em que, de novo, na Igreja, se procura voltar a um certo dogmatismo e a um pietismo, ora rançoso ora pomposo, importa redescobrir que o amor sem humor perde toda a graça, passa a uma obrigação, quando lhe pertence ser uma humilde jubilação da alma e um alívio das dores do mundo. 

 

1. Guilherme Sanches Ximenes, Filipe Neri. O sorriso de Deus, Quadrante, São Paulo, 1998

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 05:46

Construir sobre a rocha

por Zulmiro Sarmento, em 15.03.11

FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

 

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 6 de Março de 2011

 

1. Não se lêem os textos do Evangelho como tratados de qualquer ciência ou técnica. Como textos simbólicos que são, foram escritos para dizer outra coisa. Quando, hoje na Missa, S. Mateus põe na boca de Jesus as vantagens de construir sobre a rocha e os inconvenientes de edificar sobre a areia, ninguém espera, dali, um manual de construção civil. Mas que poderá e deverá esperar? Qual é a construção sobre a rocha a que Jesus se refere?

De uma forma imediata e usando a resposta mais convencional e disponível, poderíamos dizer que é a construção da nossa vida sobre a Palavra de Deus, supostamente contida na Bíblia. Aliás, a primeira leitura pertence a um sermão de Moisés, o grande profeta: “As palavras que vos digo gravai-as no vosso coração e na vossa alma, atai-as à mão como um sinal e sejam como um frontal entre os vossos olhos… Procurai pôr em prática os preceitos e normas que, hoje, vos proponho” (Dt 11, 18.26-28.32). São palavras que se tornam corpo na vida e fazem caminhar na justiça.

Para além do que a biologia ou as neurociências investigam acerca da condição humana – e sobre isso não se deve pedir nada à Bíblia ou à teologia – a metáfora “Palavra de Deus” significa que nós somos, de forma misteriosa, a preocupação de Deus e que o ser humano, animal de palavras, pode escutar aquelas que o interrogam sobre o sentido radical da vida: de onde vimos, para onde vamos e que andamos aqui a fazer. Sob o ponto de vista bíblico, o ser humano só desenvolve a sua humanidade na relação com a transcendência, na re-ligação com Deus, com os outros e, de forma harmoniosa, com a natureza, numa religião cosmoteândrica, na linha de Raimon Panikkar (1).

2. Jesus nota que as palavras de Moisés continuavam a encher a boca dos seus contemporâneos, mas não criavam raízes na alma nem no coração. Alimentavam uma religião de magia verbal que ele denuncia: “nem todo o que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino dos céus, mas só aquele que faz a vontade do meu Pai”. Acabará por fundamentar esta denúncia: “Os doutores da Lei e os fariseus instalaram-se na cátedra de Moisés. Fazei, pois, e observai tudo o que eles disserem, mas não imiteis as suas obras, pois eles dizem e não fazem”. Até aqui, esta recomendação vai servir para um adágio popular que atravessará os tempos: “Bem fala Frei Tomás! Fazei o que ele diz, não o que ele faz”. Jesus não fica por aí. Ataca os doutores e os fariseus pelas perversões interpretativas que acabam por “colocar fardos pesados e insuportáveis aos ombros dos outros, mas eles nem com um dedo lhes tocam”. Este é o resultado da substituição da complexidade da experiência humana, religiosa e cristã pela invocação de Deus em vão.

Tudo pode ser pervertido. Quando Moisés, para garantir, no quotidiano, a presença da palavra divina, propõe, “atai as palavras à mão como um sinal e que sejam como um frontal entre os vossos olhos”, em vez de um alerta, de um aviso, forja-se um amuleto, um instrumento de propaganda, de auto-elogio, anulando a simbólica religiosa: “Tudo o que fazem é com o fim de se tornarem notados pelos homens. Por isso, alargam as filactérias e alongam as orlas dos seus mantos. Gostam de ocupar o primeiro lugar nos banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas. Gostam das saudações nas praças públicas e de serem chamados 'mestres' pelos homens” (Cf. Mt 23, 1-7).

3. É um exercício demasiado simples – e algo perverso – ler os textos do Novo Testamento, deslocando o olhar e o ouvido para “aquele tempo”, para há dois mil anos, observando o ridículo do ritualismo que Jesus critica na religião dos seus contemporâneos, ou procurando equivalentes no judaísmo rabínico mais ortodoxo. Se não se tratar de uma investigação histórica – que tem as exigências do seu método –, mas apenas de uma apreciação religiosa, estaremos a reproduzir o farisaísmo que Jesus criticou. Nesse caso, o Evangelho deixa de pertencer às novidades que permanecem novas como se fosse criado neste instante, deixa de nos interpelar, de nos pôr em causa, de ser uma luz sobre o nosso tempo e sobre as nossas motivações, para se tornar um véu sobre a realidade.

Criticamos aquele legalismo ritual e os seus amuletos, mas, por vezes, repetimos e criamos algo ainda mais ridículo: certas normas jurídicas e litúrgicas, rituais, roupas de papas, bispos, padres, religiosos, alfaias litúrgicas, imagens, “devoções”, etc., como se tudo isso fosse vontade de Deus. Jesus critica os amuletos que substituíam a responsabilidade ética e social, a rectidão do coração e das obras.

Na literatura teológica, uns perguntam qual será o futuro do cristianismo; outros, qual será o futuro da religião; outros ainda, qual será o futuro da Europa, mas agora, todos perguntam qual será o futuro de um mundo em convulsão. Como diria Ortega y Gasset, “o que verdadeiramente se passa é que não sabemos o que nos passa”.

Tanto as religiões como as ideologias seculares não podem evitar a pergunta: que se passa connosco? Que bases e que desígnios presidem às nossas construções?

No Carnaval, as máscaras servem para cobrir as máscaras de todos os dias. A Quaresma deve servir para as arrancar e encontrar o Rochedo que nenhuma tempestade poderá abalar.

 

(Cf. Opera Omnia Raimon Panikkar, Fragmenta, Barcelona)

in Público de 06.03.11

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 03:07

Ficamos sem fala...

por Zulmiro Sarmento, em 05.03.11
Citação:
 
«Como diz o escritor Víctor Hugo: "Faz-se caridade, quando não podemos impor a justiça". Porque não é caridade o que se precisa. A justiça vai às causas. A caridade aos efeitos. Eu não digo que não se deve ajudar com um prato de sopa ou um abrigo, as pessoas que estão nas ruas. Há urgências. Eu faço isso, mas a minha consciência não fica tranquila, porque penso que devemos lutar contra as causas estruturais que mantêm essas pessoas na injustiça. O mais triste é que as pessoas já se começam a habituar à injustiça. E eu digo-lhes: Acordem! Tenham vergonha! Indignemo-nos todos contra a injustiça!»


 

Bispo francês Jacques Gaillot
 
A luta dos povos árabes, com a qual nos solidarizamos totalmente, tem a ver com esta frase de J. Gaillot, bispo francês, demitido da Diocese de Evreux a 13 de Janeiro de 1995, por causa da sua acção em favor dos pobres e por assumir posições corajosas de acordo com aquilo que a ortodoxia católica defende, mas que a real-política não permite que se vá adiante com tais mudanças. Daí os castigos.
 
Mas, o que interessa para o caso desta refelxão... Quem sabe se estas revoltadas dos povos, não é o resultado de anos e anos de caridade? – A injustiça estruturada é fruto do açambarcamento que alguns fazem dos bens que são destinados a todos. Este roubo legal, mais tarde ou mais cedo, resulta na ira da maioria que se cansou de ser espezinhada pelo aguilhão da ganância que nunca se farta… Porém, os povos fartaram-se de serem injustiçados e, por isso, estão nas ruas a lutar pela sua dignidade. Um aviso, para todos os países, incluindo o nosso e a nossa região, onde impera a injustiça estruturada e a caridade muitas vezes é mais um elemento para apaziguar consciências. Serve muitas vezes como instrumento para não atacar o que deve ser atacado. Serve para calar os que gritam por justiça e alimentar ainda mais a pobreza.
 
Até quando este estado de coisas? – Esperemos que os nossos governantes se inquietem profundamente com esta revolta dos povos árabes e que vejam nisso um reflexo do que poderá cair-lhes em cima se não tiverem coragem de encetar novos rumos, que levem à prática da justiça. É esta a lição que devemos tirar daquilo que está acontecer às portas da Europa. No fundo, que chegue o dia em que todas as acções estão em conjugação absoluta com a justiça que ataca as raízes dos desequilíbrios sociais e não com a caridade que alimenta as consequências. É isto que está realmente em causa. Como proclamou o poeta António Aleixo: «Vós que lá do vosso Império / prometeis um mundo novo, / calai-vos, que pode o povo / qu'rer um Mundo novo a sério». E não é que às vezes quer mesmo!...
 
JLR

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 05:30


formar e informar

Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

Pesquisar no Blog  

calendário

Maio 2017

D S T Q Q S S
123456
78910111213
14151617181920
21222324252627
28293031



Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2009
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2008
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2007
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D