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A chamada UE já não sabe para que nasceu. A promovida divisão entre a Europa rica e a Europa pobre - divisão reproduzida também dentro de cada país – fabricou a burocracia que esvaziou o seu desígnio primeiro. Esquecida da responsabilidade solidária, parece que nenhuma refundação a poderá salvar. Continuaremos na dúvida se vale a pena discutir a dívida.
Por outro lado, com a recusa, ao longo do tempo, em resolver o conflito israelo-palestino, sucederam-se, no Médio Oriente, loucas intervenções norte-americanas e europeias. O Ocidente, de alma vazia, confrontado com as estratégias terroristas de poder político-religioso (daesh), discute na Europa, a partilha dos refugiados. Nos Estados Unidos e no norte europeu crescem os desejos de muralhas salvadoras.
Agradeci este rápido percurso. Observei que, perante ameaças de guerra ou de catástrofes, nunca há dinheiro para as soluções razoáveis e baratas. Surgem sempre financiadores da estupidez desumanizante e nunca faltarão propostas de negócio depois do desastre. O sofrimento humano não conta e os mortos não se queixam.
Recorde-se que, no povo judeu palestino, desde os finais do séc. I a. C até ao séc. II d. C., surgiram diversos movimentos libertadores, directamente políticos ou proféticos. Eram, por isso, variadas as figuras messiânicas: chefe político libertador, em geral de ascendência de David; um profeta proclamando a vontade de Deus e actuando com sinais específicos ou, ainda, a de sacerdote à frente da nova e definitiva comunidade teocrática, com Deus como único soberano.
Segundo as circunstâncias e no meio de tantas propostas polémicas, é normal que os judeus que reconheceram em Jesus de Nazaré o Messias tivessem o cuidado de reconfigurar a originalidade de Jesus como Cristo, como Messias[i].
A celebração da Eucaristia estava enquadrada numa nova forma de entender e praticar a vida cristã, nas suas diferentes comunidades, como se pode ver na narrativa dos Discípulos de Emaús[ii].
Não era apenas, nem sobretudo, a reprodução de uma cerimónia estereotipada. S. Paulo, que apresenta a narrativa mais completa da Ceia do Senhor[iii], fez também o protesto mais acutilante contra a prática de descriminação social na celebração da Eucaristia, que ele próprio recebeu e transmitiu à comunidade de Corinto.
As comunidades joaninas celebravam, como todas as outras, a Ceia do Senhor em termos muito próximos da narrativa transmitida por S. Paulo. No entanto, no 4º Evangelho, a Ceia termina com o gesto que exprime a transformação que a Eucaristia semanal deve produzir nos seus participantes: a prontidão para o serviço[iv]. Quando se diz: fazei isto em memória de Mim, com o Lava-pés afirma-se que a memória da Igreja terá de ser, no futuro, a reinvenção desta prática e não apenas uma colecção de ritos. Daí a discussão com Pedro, que não estava a gostar nada do programa incluído no gesto despropositado do Mestre. Ao referir apenas o Lava-pés dos discípulos, enuncia-se a lei geral do Cristianismo: a árvore conhece-se pelos frutos.
O Papa Francisco compreendeu que era preciso pôr a Igreja a mexer, como Maria Julieta Mendes Dias e António Marujo intitularam o 4º volume da selecção das minhas crónicas[v], cuja realização só tem sido possível pela sua grande competência e extraordinária dedicação. Recolheram muitos anos da hospitalidade do Público e de esforço empenhado de Guilhermina Gomes.
O gesto chocante de Jesus, próprio de um escravo, tinha sido neutralizado pelo ritual. O Papa Francisco restituiu-lhe a força de interpelação. Ao questionar a sua solenidade aos pés de gente, aparentemente, pouco recomendável, fez dele a bússola da Igreja.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 20.03.2016
[i] Senén Vidal, Evagelio y cartas de Juan, Mensajero, Bilbao, 2013; Daniel Boyarin Le Christ juif, Cerf, 2007; Cadernos ISTA, Messianismo: ontem e hoje, nº 14, 2002
[ii] Lc 24, 13-35
[iii] 1Cor. 11,17-29
[iv] Jo. 13
[v] Frei Bento Domingues, O.P., Francisco o Papa que põe a Igreja a mexer, Temas e Debates, 2016